terça-feira, 21 de março de 2006

A poesia a bordo do seu dia

e
Hoje, Dia Mundial da Poesia, há festa ali na Casa Fernando Pessoa. Lá estarei. Há programa ao fim da tarde (18.30h) e mais à noite (21.30h). A minha pequena homenagem pessoal a este dia número um da Primavera faz-se pedindo licença ao Luís Quintais para que autorize a publicação no Miniscente do seu belíssimo poema “Azagaia, árvore, sombra” (já agora, devo dizer que há novidades sobre Roma no post de baixo):
ee
"Há objectos que perseguem a nossa infância,
depois, vida fora, esquecem-se os seus mágicos nomes,
a sonhada utilidade que os anima.
e
Poderíamos pressenti-los dentro de nós,
e isso sucede, por instantes, quando o fundo que os obscurece/
se ilumina de repente
e
e os distinguimos a contra-luz.
Silhuetas animam-se na memória. Uma breve,
quase acessória, viagem no tempo começa.
e
Em África, na casa onde nasci, e depois de casa em casa
- eram frequentes as mudanças -
o meu pai pendurava uma azagaia na parede.
e
Sempre a mesma azagaia. Era um objecto nobre.
Marcava um hábito guerreiro: imaginar que a sustinha sobre a/
e
cabeça, que a arremessava longe, trespassando a sombra
e
da árvore que se erguia no quintal,
Trespassava a sombra e não a árvore, repare-se.
E então a sombra, sob o sortilégio do imaginado arremesso,
e
começava a retrair-se e a afilar-se, desaparecia.
Com o desaparecimento da sombra
ficava apenas a árvore e a longa azagaia presa ao solo.
e
A sombra de uma árvore visita-me agora.
Vem nos meus sonhos recentes dizer-me que há um livro
nos sonhos, e que esse livro se escreve
e
com a linguagem crepuscular da memória.
Sei que se trata de uma sombra órfã.
Que se soltou das contingências de lugar e luz
r
para viajar no eterno. Sei agora que a substância da árvore
se aliou à substância da azagaia. Que ambas vibraram,
continuam a vibrar, juntas.”
e
(De A Imprecisa Melancolia em Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, Org. P. Mexia, O Contador de Histórias, C.M.T., 1997, Tomar)