sábado, 4 de fevereiro de 2006

Sábado de vislumbres

Há mais ou menos vinte anos, como sempre fazia em Amesterdão, abri o matutino Volkskrant (o suplemento literário saía aos sábados) e li um poema de Maurice Gilliams. E já não sei bem porquê, foi a primeira e única vez que ousei traduzir um poema de Holandês para Português. Hoje não seria capaz de traduzir nem um único verso (o próprio nome do poeta, como grande parte dos nomes de escritores e de livros, já se evaporou da minha cabeça). A vasculhar papéis, encontrei o feito e achei graça. Fica aqui para a posteridade, sobretudo para meu prazer e também, claro, para algum risível a que os literatos mais circunspectos e cirurgicamente rigorosos têm direito:
e
Het is een land grijsaards na de zomer,
Hier geeuwt de heide in haar gal van zonde;
Het bruine der eiken heeft de geur der honden,
Het dorp gloeit in zijn klokken van october.

É um país de terra cinzenta após o Verão,
Boceja aqui a urze na sua bílis de pecado;
O castanho dos carvalhos tem o halo dos cães,
Escandece a aldeia nos seus relógios de Outubro.
e
Agora, vou continuar a escrever (estou a descrever uma mulher que terá cabelos cor de mel, cor daqueles crepúsculos de Outono entre plátanos já meio despidos, cor do ocre líquido que acompanha as resinas. Um cabelo espesso como lã, levemente encaracolado e abundante. Não sei ainda o nome que ela irá ter, mas sei que coleccionará luvas de cor clara (de todas as formas e tamanhos); até no Verão, vai ser esse um dos seus deleites da vida. Imagino-a magra e alta, silenciosa, talvez professora de educação visual, de desenho ou de arte, não sei ainda. Uma mulher divorciada e sem filhos a quem vai acontecer qualquer coisa de extraordinário. Mas isso já eu não posso contar: agora trata-se ainda e apenas de construí-la, de senti-la e de a fazer andar sobre folhas de loureiro. Acho que lhe vou comprar um cesto de vime. E vou depois querer vê-la a andar sobre o asfalto muito negro em dia de azedume. Uma personagem começa pelo vislumbre e acaba nunca se sabe bem onde. Talvez nunca acabe. Mas esquece-se, mais ano menos ano. Tal como eu já esqueci Maurice Gilliams)