quarta-feira, 4 de janeiro de 2006

As "ciladas" da história

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Não sou nenhum apaniguado pelo fundamentalismo eco-patrimonial. Por vezes, chega a atordoar-me o excesso de vazio que povoa certas apologias radicais que apenas existem porque outras causas (relativas às engenharias de salvação universal) se diluíram com o tempo. Mas, tal como escrevi noutro post mais abaixo (sobre Pina Moura), há limites para tudo.
Pois bem, a casa onde morou Garrett vai ser demolida amanhã e, para hoje à noite, está marcada - por isso mesmo - uma vigília na Rua Saraiva de Carvalho. Garrett não foi apenas um pioneiro liberal, um poeta aventuroso, um dramaturgo com densidade, um escritor romântico e um político que deixou obra. Garrett é daquelas primeiras referências do Portugal moderno e cosmopolita que deviam habitar para sempre na nossa memória. Extravasou a nossa escala, tal como Eça e Pessoa, e está muito para além daquilo que, hoje em dia, se auto-designa (amiúde de modo corporativo) por "universo da cultura".
Estou cansado de filantropias facilitistas, mas hoje vou passar pela Saraiva de Carvalho (nem que seja em espírito).
Como evocação, deixo para a posteridade blogosférica este extracto de crónica do autor, retirado do jornal O Cronista de Julho de 1827 (nº21, 22-28):
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“Rara vez na história do Universo apareceu época mais importante, fértil de mais extraordinários sucessos, pejada dos mais transcendentes resultados: nunca o olho do observador político se volveu para o passado com mais espanto, nunca repousou no presente com menos quitação, nunca se estendeu pelo futuro com tanta incerteza. O homem de Estado, suspenso entre o porvir e o pretérito, sente fugir-lhe o momento actual” (...) “O povo português, que tem a ventura, sem exemplo na história modernam de ser guiado neste grande e magnífico certame por seu grande Rei, o povo português, digno desta glória por sua docilidade e moderação, caminha lento, é certo, rodeado de embaraços, por uma estrada minada, semeada de estrepes, bordada de ciladas, mas caminha todavia apesar de tudo isso".
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(Caro Manuel Pinho: o projecto até podia manter os T4s e o T3 previstos, mas a manutenção da fachada e de alguma inscrição referencial não fazia mal a ninguém. Estranhas "ciladas" da história!)