quinta-feira, 31 de março de 2005

The Turn

Se há coisas que não gosto de fazer é rever provas de livros. Concentrado no mais inadvertido e imponderável, deixo passar tudo. Até mesmo duas palavras iguais e seguidas.
Num momento destes o que vale é ter sentido, pela primeira vez este ano, aquele quase bafo de verão que parece entranhar-se nas pedras de granito.
Coisas da terra

Caro MacGuffin: andamos sempre desencontrados. Fiz desse espírito de abertura do espaço público alguns anos de agenda (vim morar para Évora há mais de uma década e, entre 1997 e 2001, não deixei de intervir, de modo independente, nas páginas dos jornais). Tinha um objectivo: ajudar a fazer sair os comunistas da Câmara local, sinal do subdesenvolvimento da cidade e da região. Depois, até participei nas culturas. Agora saí. Estou noutra. Casa aqui posta, mas a aura muito longe daqui. A milhas. Estou fora dessa nova agenda. Andamos sempre desencontrados!
Revista Brasileira

Antes de pensar em partir de avião, nada melhor do que sobrevoar a letra de alguns dos blogues brasileiros que mais frequento. Há sempre eclectismo e rasgo q.b. que superam a modorra da nostálgica praia lusitana.

O Alexandre Soares Silva começa por nos segredar uma espécie de tratado sobre como melhorar os ventos literários. Por cá, garanto, essas palavras foram lidas com suma atenção:

"(...)a maior parte dos livros, não só da literatura brasileira, mas da literatura mundial, melhoraria muito se tivesse pelo menos um dos seguintes elementos: um crime num quarto fechado, um detetive excêntrico, um gorila, um gigante, um duelo, um fantasma, uma ninfomaníaca – é triste a falta de ninfomaníacas na literatura da catinga – um pirata, um corsário, um chinês malvado, uma batalha naval, um homem atormentado treinado para matar usando objetos do cotidiano (como canudinhos) e, sei lá, diagramas de Go. Eu também gosto muito de romances com mapas de cidades, ou planos de casas ou palácios. Olá."

Já agora, após esta avalhanche meteórica, uma notícia triste: a 27 de Março acabou um grande blogue, o Literatus.
Andrea: como é que foi isso possível? Explique-se lá!

A Prosa Caótica, por seu lado, deu-nos a ver, num dia destes, o outro lado da escrita. Por imagens:

Há inscrições e inscrições. Esta soa a vida, a lisura, a liquidez adiada. Embora a folha branquíssima e marmórea de Mallarmé esteja, neste caso, bem calçada e dobradinha.

O Alfarrábio de Paulo Bicarato dá-nos uma lição de música que bafeja novidade:

"Domingão à noite, depois da reunião de família, tradicional na Páscoa, e eu começo a dar uma zapeada na TV. Gratíssima surpresa dar de cara com o Ensaio, da TV Cultura, que trazia o (até então desconhecido) Grupo Arirê. Quatro moças mais-do-que-simpáticas, com vozes e repertório de primeiríssima linha. Fiquei fã da Gabriela Rossi, Mônica Olivetti, Selma Boragian [foto] e Virgínia Rietmann —o quarteto feminino que se dedica basicamente à execução de Música Popular Brasileira de bom nível, acompanhadas geralmente por violão e percussão. O que caracteriza os arranjos vocais e as interpretações do Arirê são a criatividade e o refinamento."

Agora que a música é uma moda viva da blogosfera portuguesa (A Ursa também já entrou na moda e até esclareceu que o "Raibow Lorikeet é uma espécie de periquito colorido"), nada melhor do que esta actualização.

A Maria, "futucando-me" ontem (obrigado!), "entre as chuvas de Março fechando o Verão", dá evidência ao óptimo (e, já agora, muito galego) Sovaco de Cristo. Travessias felizes. Vejam bem:

"Futucando a lista de blogs recomendados pelo Luís, encontrei o desde o sovaco de cristo. O autor é um galego que conta as vicissitudes de se morar numa cidade como o Rio. Hilárias as histórias. Reproduzo um texto sobre a inesquecível experiência de se andar de ônibus por aqui. Muito bom !

De ônibus e camelôs

O pior de se sujeitar à inércia do conhecido é que aí se fica realmente à mercê do desconhecido. A primeira vez que subi num ônibus no Rio entrei pela porta dianteira, como se estivesse na Corunha, em vez de o fazer pela porta traseira. O motorista olhou para mim, sem se importar muito, sem se importar nada, na realidade. Meteu primeira, fechou a porta e saiu correndo. Enquanto eu, totalmente perdido, desnorteado, comprovava com vergonha que o cobrador estava na parte de atrás, mão sobre mão, meio dormido. Agarrei-me como pude, assumindo com a maior dignidade possível as olhadas dos passageiros, que se perguntavam alguma coisa que eu daquela nem imaginava. Ninguém me reclamou o dinheiro, a viagem saiu de graça. Também não adiantou nada, estava no ônibus errado."

A Sílvia, por seu lado, continua a produzir o seu infindável intertexto poético como se fosse, ela mesma, a força motriz de uma rebentação sem fim:

"e quando a vida nos deixa os minutos/na mão como se os tivéssemos/colhido há pouco/frescos/mas ainda não saboreados?"


Não sei como responder à tua pergunta. Há sempre um lapso no deambular poético que nos concede apenas o lance do que não é dito.


A confissão mais secreta aparece subitamente no Letteri Café:

"Tenho plena consciência de que não sou o melhor dos pais. Falta agora meus filhos terem a mesma clareza em relação a serem os melhores filhos."

Outro não dito. Águas mais profundas do que pluviais. Mas eis que, contrariando o movimento de intimidades, a Adriana Paiva do Periplus ameaça agora mostrar-nos S. Paulo, feericamente e de moto:

"Nos próximos dias , começo a mostrar aqui essa São Paulo "remapeada" sob medida para meu desejo."

Por fim: Barney Martin é evocado no SubRosa, enquanto as insónias da Tabacaria dão, pela certa, muito trabalho à longínqua herança de Pessoa.
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
VIGÉSIMO SÉTIMO EPISÓDIO
(A decisão de Edmundo)

Edmundo sobe ao Chiado e traz consigo uma fixação desordenada, uma memória sem eco, um desalinho sem fim.
Nada lhe corre bem na vida.
Nem os negócios, nem as amizades, nem o habitual humor que parece ter trocado a ligeireza do dia a dia pela imagem de uma espera sem fim. Mas espera do quê, pelo quê?
Edmundo alarga o nó da gravata, revê a sua silhueta nas montras e permanece indiferente ao cheiro do chocolate quente que escala pelas montras da pequena leitaria.
Lisboa, neste dia de Janeiro, parece uma cidade admirada com os seus próprios temores e fascínios.
Sem saber bem o que fazer, Edmundo acaba por sentar-se numa mesa do canto da leitaria e toma subitamente uma decisão.

E lembra-se de Veneza como se existisse uma luz ao fundo do túnel nessa memória funérea. Lembra-se daquelas ilhas de cristal e ogivas, miríade de pedra e proporção.
Lembra-se das gôndolas, desses berços que ondulam com suavidade lunar.
Lembra-se da água horizontal a espelhar a maior angústia da vida.
Lembra-se da respiração do desencontro, da tragédia a sós, desse momento único em que Edmundo admitiu que tudo tinha acabado com Albe.

Uma tragédia é sempre uma história pessoal, é verdade.
E agora?
Depois da pulsão de morte veneziana, a decisão estava tomada.

Irremediavelmente.

(No próximo episódio, Albe, no seu apartamento parisiense, acaba também por tomar uma decisão)

Continua

quarta-feira, 30 de março de 2005

A voz ocasional de um poema

A minha editora (de romances) vai editar um pequeno livro com poemas de alguns dos seus autores para Feira do Livro de Lisboa. Tendo-me o convite batido à porta, eis o que saiu:

Vozes

Entram no mar e vêem a lua a dividir-se em vozes,
muitas vozes transparentes.

Era apenas uma flor que se arrastava
avermelhada
entre a força das ondas e a praia quase deserta onde o presente
é um tempo de cisnes que desce do futuro até aos cactos selvagens
das dunas.

Eram vozes, muitas vozes transparentes
quem sabe se apenas traços desaparecidos da areia
talvez perfis ou asas,
simples asas a envolverem esse dom sigiloso que descobriram
na boca calada da magnólia?

Vozes,
muitas vozes transparentes entre as tábuas fechadas
do porão alagado do navio
como se fossem aves alucinadas
a voar sem saída

Da fé espera-se tudo
até o areal nocturno saturado
de estrelas cadentes que entram
no mar e vêem a lua a dividir-se em vozes,
muitas vozes transparentes.
Fantasmas?

Na blogosfera, não são os autores dos blogues quem fala. Involuntariamente, os autores criam personagens diversas que espalham a sua voz, ou as suas vozes, pelos posts. Esses personagens devolvem-nos os traços dos seus criadores que, cada um de nós, interpreta fantasmaticamente.
A maior parte dos autores da blogosfera que eu imagino, em muitos casos amigavelmente, é, portanto, composta por fantasmas. Muitas vezes, esses personagens acabam por ser porta-vozes, muito pouco filtrados, da intimidade dos seus próprios criadores. Mas isso não significa que eles não sejam personagens que sugerem ser a boca e a escrita dos seus encenadores e autores.
E mesmo quando conhecemos um ou outro blogger, ao vivo, o halo fantasmático mistura-se sempre com a carne e osso que nos fala. Esta é uma fotogenia que terá saltado do início da imagem móvel (lanterna mágica, primeiros film makers de Brighton, Feuillade, etc.) e do reinado fotográfico de meados de oitocentos pré-disderiano para o coração destes traços imateriais e quase diariamente biográficos que são os blogues.
As guerras da música

Também desliguei as colunas do computador. Só as abro, e muito muito raramente, quando sei o que vou ouvir.
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
VIGÉSIMO SEXTO EPISÓDIO
(A incompleta redenção de Veneza)

Albe regressa a S. Marcos a sós.
Tudo ali se passou. É esse precisamente o nome da ausência. O devaneio do passado transformado em imaginação. Ou em delírio colado à ilusão de uma calma infinita.
Foi Edmundo que não apareceu e foi o violinista que, de viagem, já regressou a Milão.
Albe prepara-se agora para regressar a Paris, mas antes tudo faz por colocar os pés em terra e desvendar a serenidade com que, de vez em quando, os dois mouros se fazem ouvir na torre do relógio, entre S. Marco e a Calle Carppetto Nero.
Como se fosse bruma nocturna em pleno dia, a poderosa Senhoria que se ergue no topo de San Giorgio Maggiore, não só avista a involuntária solidão de Albe como parece anunciar a repentina claridade que desceu sobre a cidade.
E Albe, talvez menos inconsolada, só já pensa no iminente regresso a Paris: é a hora do comboio que se aproxima, são as bagagens, são os passos sem rumo e toda, toda a memória do Verão por remover-se. A esconder-se. A enterrar-se numa dor sem forma.
Ao entrar na Gare, o céu voltou de novo a coar e a chuva apareceu abruptamente.
Tudo na cidade se liquefaz, de um momento para o outro.
Depois o comboio deslizou com suavidade e partiu.
Rejuvenescida de uma perfeição inquieta, Veneza despede-se agora de Albe com os seus fios de ouro, com os seus vidros de jade, com a sua luz disforme e irradiante, com a sua voz de incompleta redenção.


(No próximo episódio, Edmundo, regressado a Lisboa, parece querer tomar uma decisão definitiva sobre o rumo a dar à sua vida)

Continua

terça-feira, 29 de março de 2005

Parabéns
ao desmedido estímulo que nos chega, dia a dia, da Montanha Mágica
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
VIGÉSIMO QUINTO EPISÓDIO
(O violinista afogueado)


Depois, o jovem violonista e Albe caminharam demoradamente através do Campo dei Frarí e da Calle Lipoli. E, subitamente, Albe sentiu que podia abrir-se e revelar tudo o que havia acontecido. Como se o destino quisesse provar que a felicidade, às vezes, não passa de um mero acaso com morada certa.
Não sabe o narrador explicar o modo como este desafio se tornou em autenticidade plena. Mas a verdade é que Albe não temeu abrir-se e o jovem estudante de violino, por seu lado, silenciou as suas palavras, ouvindo-as, repondo-as no ritmo próprio, ecoando-as com uma graça inexplicável.
Foi a noite mais imponderável que Albe alguma vez sonhou viver em toda a sua vida.

*

Passaram mais dois dias e duas noites e Albe nem sabe por que razão se terá aventurado daquela maneira. Quando tudo se perde, é o desmoronado brilho da paixão que parece querer incendiar os actos mais inauditos, os rumores mais elementare e simples.
Ficará o pasmo, o reencontro de uma dor antiga que se perpetua na fixidez do olhar, um aceno desiludido, desenganado, mas sobretudo mordaz.
E assim foi: de um momento para o outro, uma serenidade imensa abraçou os gestos de Albe e fê-la enfrentar o arrepio daquelas duas noites sem futuro, sem nada.
Ficou o desmedido calor da carne. A despedida. A dupla despedida.
Para sempre.
Amanhã, Albe voltará a sentar-se em S. Marcos. Já estou a vê-la, de novo a sós, a inventar que nada, abolutamente nada, se passou. No Verão e neste afogueado início de Outono.

(No próximo episódio, ficar-se-á a saber como é que Albe acabou por abandonar Veneza)

Continua

segunda-feira, 28 de março de 2005

Novo folhetim no Minion

Depois da publicação de The Giant Cloud, tradução inglesa de A nuvem gigante, começa hoje a publicar-se no Minion o meu conto Wild Boar Eye (O olho do javali), em doze episódios (tudo traduções do Bernardo Palmeirim). Passem por lá.
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
VIGÉSIMO QUARTO EPISÓDIO
(O desconcerto de Albe)

Albe atravessou a cidade durante quase dois dias, de manhã à noite, e não descortinou Edmundo em lado nenhum.
Parou junto a montras e viu-se ingloriamente a segredar rimas antigas.
Caminhou quase sempre alheada à cidade que a seu lado fervilhava, subindo a Calle Pazienza entrando no Campo S. Margherita e, depois, levada pelo andar desconcertado, acabou por embarcar para o Lido.
Que bússola lhe emprestaria o destino? - pensava
O céu ripostava com o silêncio das grandes apoteoses wagnerianas: nuvens intensas, rápidas e a contrastarem com a luminosidade amarelada que ininterruptamente atravessou a chuva miúda e imprevista.
Foi então que um jovem estudante com um violino de baixo do braço espreitou o olhar de Albe.
Um olhar incógnito, intemporal, preso ao grená bacilento das paredes corroídas pela água.
Ao reentrarem no cais junto à Salute, as fachadas surgiram anoitecidas e a sós, como se nada se passasse, mas ambos os nautas se entreolhavam e sorriam com uma candura que parecia congénita, incerta, mas natural. Tão estranha quanto inconfessável.
Veneza, cidade de extraordinários augúrios.

(No próximo episódio, ficar-se-á a saber até onde é que o imponderável teceu o destino veneziano de Albe)

Continua

domingo, 27 de março de 2005

Verão por uma hora

Heitor Villa-Lobos

Há muitas coisas que me ligam ao Domingo de Páscoa. Mas a mais importante é a mudança da hora. E logo a seguir é a "Ária (Cantilena)" da "Bachianas Brasileiras nº 5" que estou agora a ouvir.

sábado, 26 de março de 2005

UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica

Amanhã à noite, o folhetim voltará a ser publicado após uma breve interrupção motivada pelo período de Páscoa.
O país da orla da Páscoa

Hoje entrámos decisivamente no país dos coletes. Só não se sabe, se serão florescentes ou fosforescentes. Uns florescem por si ( como no país à Mourinho), os outros só alumiam de vez em quando entre a persistente obscuridade que é a da sua profunda alma (é como no país à José Gil).
Duas parasceses simétricas e sem procissão: apenas hábitos repentinos e massificados. Eis que chego à janela e vejo o bom português regressado do hipermercado mais próximo, a sorrir com ar alarve, e a ostentar o verde nada vago do seu orgulhoso colete. Só depois virá o dia ressurreição.

sexta-feira, 25 de março de 2005

Segredares de Páscoa

Uma bátega de chuva inundou o pátio durante dois minutos. Um caudal inesperado. Depois, num ápice, clareou o céu, refez-se o contraste da luz e eu juro que vi o mais pequeno dos gladíolos a sorrir.

quinta-feira, 24 de março de 2005

Segredar

Acabou de sair da terra, terá uns três centímetros de altura e já é uma hortense. O que terá ela a dizer?
O mesmo que este blogue.

quarta-feira, 23 de março de 2005

Culturas

Escreve o Bruno:

"Há imensa gente que vê novelas. Há imensa gente que tem blogs. Mas, curiosamente, as únicas expressões culturais que se vêm por essa blogosfera afora esmiuçam livros, poesia, cinema, teatro, ópera."

Cultura da visão ou cultura daquele que está para se vir?
A primeira é genuína e etimologicamente apocalíptica, enquanto a segunda é reflexivamente tensa, doce e agridoce ao mesmo tempo, sobretudo se conjurada de olhos bem fechados.

terça-feira, 22 de março de 2005

Entre mares e frutos

Estruturalmente pela blogosfera, conjunturalmente longe da blogosfera.
Regressarei em breve.

domingo, 20 de março de 2005

UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica

Devido ao período de Páscoa, o folhetim voltará a ser publicado no próximo domingo, dia 27 de Março.
(ver episódio de hoje em baixo)
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
VIGÉSIMO TERCEIRO EPISÓDIO
(O pesadelo de Edmundo)

A mulher de negro sorriu ao longe como que a despedir-se e Edmundo ficou estoicamente em suspenso a olhar para o fausto do iate, enquanto um dos oficiais fardados já levantava âncora e o gorgolhar do motor agitava águas.
E Edmundo, atordoado com o desapareciemnto de Albe e com a cintilante aventura da noite passada, voltava agora a perder-se na cidade. E na sua frente tudo pareciam visões de spleen: era o ouro visionário dos relógios, eram vultos em movimento, eram fachadas em câmara lenta.
Um desalento sem centro, sem perspectiva, sem brilho.
Perto do Ca'd'oro, junto ao Grande Canal, de novo o mercado antigo. É Campo Pescaria, átrio de colunas e do tempo ainda parado. Um imenso burburim que parece ampliar o desvario embala os passos rápidos de Edmundo. Errância pura, perdição. Indiferença.
Foi assim até ao fim, neste último dia de Veneza.
Sonhos de capa e máscara, milhares de albatrozes do alto mar a picarem o corpo indefeso de Edmundo, um fogo sem fim por baixo do alçapão que apenas se abre no momento em que Edmundo volta a acordar. Noite de altares barrocos, de morte lenta, de pesadelo com sabor a limos, ou a lodo, ou àquela espessa areia movediça que parece querer afundar o frágil equilíbiro do solitário português.
E no outro dia de manhã, quando Edmundo finalmente acordou, agitado e atordoado, disse de si para si e em voz muito alta:
- Mas que fiz eu, meu Deus?

(No próximo episódio, finalmente, ficar-se-á saber onde anda Albe)

Continua

sábado, 19 de março de 2005

Fat

Diz o Pedro: "Há uma importante tradição de gordos cómicos no cinema americano". E digo eu: daí o famoso ditado popular "It ain't over until the fat lady sings" (i.e., "Até ao lavar dos cestos é vindima", "Ainda a procissão vai no adro", "Ainda há-de passar muita água debaixo das pontes", etc., etc. Aceitam-se, naturalmente, outras propostas de tradução).
Parabéns MacGuffin!

"O venturoso, o justo ou o/ Desejado jaguar/ Que em vez de caça/ Fez dos ossos o seu segredo/ Para que concordasse o mar/ Com o longínquo porão de Giraldo."

(poema anónimo descoberto, sob a calçada, em frente da casa onde o Contra a Corrente nasceu)

sexta-feira, 18 de março de 2005

UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
VIGÉSIMO SEGUNDO EPISÓDIO
(A noite de seda)

Já no Campo S. Apostoli, a enigmática mulher de negro desviou-se repentinamente para a esquerda e levou Edmundo pela mão na direcção de um pátio cheio de arcarias, buganvílias e janelas em mármore rosa.
Longa foi a noite e a concórdia dos anjos naquela câmara de seda onde os lençóis eram todos bordados com largas asas de albatroz.
E porquê?
No outro dia, uma empregada que soletrava um dócil Italiano de sotaque albanês serviu o pequeno-almoço a Edmundo e entregou-lhe uma carta. O português abriu-a apressadamente e entreviu breves palavras escritas com caligrafia apressada:

“Vem ter comigo às 11h ao Rio de Noale. Hás-de ver-me pela última vez. Foi celestial”.

Edmundo correu até ao cais e, quando se acercava do verde esvaído das águas, viu a mulher de negro ao lado de um homem cinematográfico que fazia claramente lembrar James Bond em versão veneziana.
Hesitou no que fazer, mas deteve-se.

Suores frios, loucura aventurosa e o desejo perversamente glacial.

E agora, Edmundo?

(No próximo episódio, saber-se-á tudo o que se passou no Cais do Rio de Noale. E, para além do derradeiro pesadelo veneziano, continuará no ar a pergunta: e Albe, onde andará?)

Continua
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
VIGÉSIMO PRIMEIRO EPISÓDIO
(A mulher de negro)

Depois de passar três dias e três noites desesperadamente a procurar a efígie ou o perfume de Albe, Edmundo percebeu que tudo tinha acabado de vez.
Mero amor de Verão, devaneio puro. Uma melancolia espessa, densa, sem molde.
O tempo nunca tem razão, já se sabe, mas não deixa de ser verdade que confessa, entre ócios e desprazeres secretos, pequenos acenos, breves avisos e bruscos sinais.
E quando Edmundo tomava café numa das esplanadas quase vazias de S. Marcos, eis que uma mulher vestida de negro lhe pega nos braços e o leva a dançar pelo vazio dos mosaicos, num rodopiar sem fim, numa vertigem inesperada, numa fogosidade inexplicável. E agora?
Não, não era Albe. De modo nenhum.
A mulher tinha os olhos esteitos, muito negros e os cabelos cobertos por um lenço lilás escuro onde se estampavam duas largas asas de albatroz.
Edmundo nem falou, mergulhado que estava pelo súbito enigma.
Sem falarem um com o outro, deambularam depois pelas ruas apertadas do centro, já sem vivalma àquela hora, desde a Calle Spadaria ao Campo de S. Salvador.
Daí inflectiram em direcção aos correios e passaram depois a ponte do Rialto.
E viram-se névoas sobre águas, murmúrios precisos, passos largos e mãos dadas.
Edmundo jura que terá então ouvido a grande gargalhada no covil mais escuro da sua alma.


(No próximo episódio, Edmundo vai continuar a sentir o suave fardo da surpresa, a imensa carga da admiração e sobretudo o peso do espanto. Por trás da angústia do desencontro, acende-se agora a luz do mais feérico torpor. E Albe,onde andará?)

Continua

quinta-feira, 17 de março de 2005

Na rota da seda

A espreitar com alguma candura a singular beleza de um blogue persa.
Notícias da Primavera

No dia 27 de Fevereiro apareceram as primeiras flores brancas na ameixoeira do meu pátio. Eram muito tímidas e ponteavam um contraste único com a cor de chocolate ressequido que consumia o retiro invernal da árvore. Hoje, dia 17 de Março, essas ínfimas flores começaram a soltar-se dos ramos e a espalhar-se com alguma voragem pelo relvado e pelos canteiros. Entretanto, uma súbita folhagem verde clara envolveu sofregamente os braços da ameixoeira e cercou as últimas flores que mal chegarão a cumprir três semanas de vida. Que tenham vivido com felicidade é o que espero!
Que teria dito Oakeshott sobre o 09/11?

Oakeshott sempre denunciou o móbil científico, ideológico ou social que pudesse gerar a ilusão de uma perfectibilidade salvífica, ou tão-só só a enunciação de evoluções ditas necessárias. De algum modo, na óptica do autor, o tempo da história e do devir acabaria antes por gravar-se nas disposições que se fossem pragmaticamente conservando (instituições, hábitos, discursos, etc.). Da mesma maneira que uma moeda é aceite enquanto tem valor, já o dizia Peirce, também muitas instituições sociais acabariam por acatar essa mesma inclinação, esse mesmo acomodamento, esse mesmo conforto. Mas não seria dramático encarar grandes mudanças e mesmo transições drásticas, desde que não impostas por mecanismos de "engenharia social", guiados por esquemas ou caricaturas simplificadoras.
Creio que há aqui um interessantíssimo pragmatismo que transcende a antiga metafísica conservadora, sempre presa à imanência e à transcendência de todo o tipo de legados. Em Oakeshott, há um certo prenúncio do tempo que o autor nunca chegou a viver. Pode até dizer-se que a desagregação deleuzeana é observada por Oakeshott a partir da agregação. O que em Deleuze é prenúncio da futura rede (o rizoma, a transversabilidade autónoma entre sistemas, o devir) é em Oakeshott o sintoma de tudo aquilo que resulta e que se conserva para além desse jogo teórico: o presente, um agora-aqui desligado da ficcionalidade linear e ideológica do destino.
É pena que Oakeshott não tenha tido a oportunidade de testemunhar a ponta final do século XX. Há nessa ponta final dois aspectos centrais que têm sido o ponto de partida de alguns dos meus livros. Por um lado, a entrada em cena, na prática, de uma nova hipertecnologia global e, por outro lado, a falência radical dos chamados grandes códigos referenciais que, desde o alvor da modernidade, haviam mobilizado verticalmente os diferentes sectores das sociedades ocidentais.
Neste novo tempo, o modo instantâneo com que histórica e insistentemente se exigiram e reivindicaram os mais variados "pontos-ómega" (o desígnio da perfectibilidade - a expressão é de Chardin) escatológicos, utópicos ou ideológicos (fossem os seus agentes Fraticelli, Jacobinos ou revoltosos de Conrad) regressa agora ao coração do presente e acaba por projectar-se nesse novo mise en abîme que é o simulacro dos aparelhamentos contemporâneos. O futuro desenhado por esses "grandes códigos" esvai-se e, simultaneamente, reflui em direcção ao presente povoando-o, pacificando-o e desligando-o da revolução em nome de uma pura ficcionalidade.
O corpo, os fluxos e a rede tornam-se em peças de um novo jogo social que fez da década de noventa um espaço diferente, respirável, são e carregado de positividade.
E, depois, é essa a minha maior curiosidade, que teria dito Oakeshott acerca do 09/11?
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
VIGÉSIMO EPISÓDIO
(Onde andaria Edmundo?)

Albe fez do Outono uma galeria de pressas. Era ainda só dia 21, ainda faltavam largos minutos para o meio-dia, e já Albe posava face a S. Marcos. E assim ficou durante horas e horas. O tempo nunca tem razão, é verdade, mas como adivinhar o estranho e insuspeito rosto do tempo?
A verdade é que, depois, e tal como acontecera a Edmundo, Albe perdeu-se pelas ruas tentando avistar o figurino e a pose do amado. E nada. Empresa totalmente em vão.
Desesperadamente viajou até ao Lido e percorreu ínsulas, orlas e fios de areia luminosos. As horas passavam e as águas mantinham o seu espelho irrespondível: desde o largo da Gran Viale S. Maria Elisabella, resguardando-se na ofuscante visão do Canale di S. Marco, até à tranquilidade dos arcos e arcadas da Riva degli Schiavoni, passeio quase já nocturno que acabou por unir as memórias do centro ao Giardini Pubblici e ao Parque delle Rimembranze. Um esplendor.
Tão distante já ia Albe do seu presente desencontrado que até se esqueceu de render alvíssaras ao generoso S. Giorgio.
Nas derradeiras horas do dia, Albe parecia imobilizada junto à aura da Piazzale Bucintoro.
Cansada, acabou por pernoitar num pequeno hotel do Canale della Giudecca.
E perguntava insistentemente a si própria: onde andará Edmundo?
O que se teria passado?


(No próximo episódio, Edmundo terá a maior surpresa da sua vida. E, entretanto, fica a pergunta: para onde encaminhará Albe a sua inexplicável e imprevisível errância?)

Continua
Enfrentando o segno

Grande conclave entre o Miniscente e JP Coutinho nos arrabaldes de Paris. O que faltou em fé terá sobrado em natureza humana. Vivemos, de facto, numa época em que a nobreza habita nos interfaces e já não na nostalgia de Gance ou de Vico. Estava óptimo o pastel de nata lusitano.

quarta-feira, 16 de março de 2005

UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
DÉCIMO NONO EPISÓDIO
(A penumbra fria da ausência)

Quando Edmundo viu a gare de Mestre, sentiu uma pequena vertigem. Depois, a pouco e pouco, a sereníssima cidade foi aparecendo no meio da Laguna. Um fio entre águas a prenunciar este dia 22 de Setembro de 1968. O comboio pára finalmente na estação de Veneza às 10 e pouco da manhã. Passaram entretanto horas e horas e o português mais não fez do que esperar desalentadamente à porta da Catdral de S. Marcos. Onde andaria Albe?
Depois Edmundo perdeu-se. Seguiu pela Calle Traghetto, pequena via que desce a nascente, na direcção do Canale Grande. Rente às paredes do Palácio de Dandolo, o nosso homem foi-se arrastando com o olhar sempre preso ao abismo com que a rua subitamente acaba no minúsculo cais de S. Toma. Onde andaria Albe?
A vista é demorada e irrespondível: cruzam-se ao fundo embarcações, recortes esguios surgem e esvaem-se; pequenos mastros, sombras, um vapor rasteiro contemplado do outro lado do Canale Grande pelas janelas do Moncenigo. A luz é difusa, amplia-se na estreiteza da rua, pemumbra fina que os passos atravessam até ao fim. Quando o empedrado acaba e a água de novo começa, toda a cidade parece revisitar-se na súbita imagem. Onde andaria Albe?
O estranho dia continua e parece libertar aquela respiração do Outono que sucede às primeiras chuvas. E a impaciência torna-se enigmaticamente redentora, quase fugaz, ilibando-se aos olhares indiferentes dos transeuntes. Onde andaria Albe?
Edmundo acaba por refugiar-se num pequeno hotel perto do Rialto. Ao longo de horas e horas, cruza impiedosamente a cidade de um lado ao outro, tentando desvendar vultos, perseguir silhuetas, auscultar perfis. E nada. Nada de Albe. Nenhuma varanda ou janela de hotel dá aos olhos de Edmundo a imagem mais esperada. Nenhuma. Onde andaria Albe?
A sereníssima urbe cintila na sua navegação ritual, segredando por ínvias lendas e marés desconhecidas o que Edmundo não pode sequer imaginar.
Que se terá passado?

(No próximo episódio, Albe aparecerá perdida em Veneza. E perguntar-se-á: porquê?)

Continua
*
(publicação da versão Inglesa no blogue Minion)

terça-feira, 15 de março de 2005

Ground Zero

Hoje o New York Times cita esta máxima do Governador Pataki:

"This is sacred ground"(...)"We wanted to have cultural institutions that would reflect our pride, our courage."(Governor Pataki)

É interessantíssimo constatar o papel que a “cultura” tem hoje em dia. Sempre que se empossam governos, há dúvidas quanto à lógica da existência de um ministério (menos para as corporações da área). Sempre que se discutem orçamentos, há dúvidas quanto às estratégias a adoptar (património e preservação da memória versus criação contemporânea).
Mas sempre que se evoca seja o que for que abala profundamente a sociedade, lá vem a “cultura”. Lá vem essa “cultura”, cujo valor neo-divino repõe o homem mais comum como um novo deus a procurar em cada um de nós. O “orgulho” e a “coragem” alegados por Pataki inserem-se nesta nova predestinação dos simples mortais.
E neste caso, que é o caso do 09/11, eu abandono a excelência do meta-discurso, e apoio ilimitadamente a ficcionalidade de uma qualquer salvação terrena.
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
DÉCIMO OITAVO EPISÓDIO
(A caminho de S. Marcos)

E quando, no dia seguinte, voltávamos da tourada, pela noite, e as estradas eram muito compridas, mal iluminadas e sem fim; nesse dia seguinte, indo à frente o pai da Albe a conduzir e a mãe no lugar do morto, salvo seja, com a música que era de persistente paso doble muito alto e vibrante; nesse dia, à noite, de regresso de Girona e, ao passarmos por La Bisbal, Parlavà e Torrebella de Montgrí - embora, nesses tempos, todas estas terras só se pronunciassem em Catalão e pela calada da noite; nessa noite de luar infindo, repita-se, estando eu preenchido pela selecta memória dos passos dos cavalos, das pegas acrobáticas e ainda dos mil motores de combustão que me iam arrebatando a alma; nessa noite, volto a repetir, pela calada serena do banco de trás, onde abundava uma clara penumbra de desejo e de tentação, acabei por empurrar a minha mão pelas tiras do banco e assim alcancei a mão de Albe.

E como Albe me apertou os dedos, as linhas da vida, as vias do destino e até os próprios pulsos; e com que tenacidade eu contracenei a tal deslumbramento ! E como parecia a felicidade ser apenas aquele momento ímpar, prestes a resumir-se, depois, à sua peregrinação vivida e celebrada ! E como foi decisivo o grande toureio a cavalo de Samuel Lupi e a maravilhosa pan do meu ford escort !
Estava escrito.
Foi então que em segredo nós dois combinámos: encontramo-nos em Veneza no primeiro dia de Outono em frente da Catedral de S. Marcos.
Estava escrito.


(No próximo episódio, ir-se-á entender por que razão o destino nem sempre prescreve o que o desejo entende ser sua constelação)

Continua
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(publicação da versão Inglesa no blogue Minion)

segunda-feira, 14 de março de 2005

Novidades sobre o futuro dos folhetins

Depois de amanhã, a versão inglesa do folhetim atinge o seu vigésimo e último episódio. A versão portuguesa há muito que se afastou da matriz original e assim continuará por mais uns dias. No entanto, depois de alguma euforia inicial, era bom que os leitores do Miniscente voltassem a sentenciar qualquer coisa de mais palpável acerca da intriga.
Seja como for - e esta é a boa notícia do fim desta segunda-feira -, já se preparam novos folhetins.
É bem possível que o Miniscente passe a apresentar esta rubrica com razoável estabilidade. Fica o aviso. E agora... toca de novo a colaborar!
Gil e Mourinho: os dois portugais

Penso que a relação José Gil - Mourinho, uma relação metaforicamente best seller, mereceria uns tantos comentários (e talvez até mais do que isso).
O que em Gil é sol, em Mourinho é lua: no primeiro há constatação do medo ("indeterminação da vontade", "vulnerabilidade", etc.), enquanto que no segundo há uma espécie de determinação virtual (na medida em que contribui para transformar demasiadas potencialidades em crença. Só que, após o vórtice, semeia desacertos e desgraças).
Gil mostra-se muito sereno e confessa a cadência do fado alheio que é também o seu (o chamado "familiarismo do mundo português" ou a burocracia lusa como "aparência de acção"), enquanto Mourinho atira para o ar palavras de ordem em fogo, desfere golpes em várias direcções, mobiliza mundos sob a forma de um agir muito real e acaba inevitavelmente por gerar proximidades entre infernos e afinidades.
Gil cria à sua volta o fascínio que resulta da atracção voluntária (os portugueses compram o seu livro para saber quem são, para saber se têm medo do escuro, para saber se estão certos de si), enquanto Mourinho prefere criar um tipo de fascínio fantasmático e intempestivo que vive da ideia de um abismo sem rede por baixo.
Gil não vale tanto pela consequência dos seus actos, mas sobretudo pela explicação cristalina da normalização lusitana (a tensão entre o "pólo disciplinar" e o "pólo do controlo", etc.), enquanto Mourinho vale sobretudo pela dimensão pragmática que pode ser testada: resultados, vitórias e transformação do "jogo" numa quase asserção.
(a continuar... como nos folhetins)
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
DÉCIMO SÉTIMO EPISÓDIO
(A confissão das estrelas)

E juntos batemos palmas aficcionadas, comemos churros, ouvimos galantarias, provámos cheiros de ervas doces e vimos mulheres com folhos de cores vivas e homens proféticos, com a tês morisca do Ebro, de calças justas e olho entreaberto para esta arte da devoração e da perdição que é a tourada.

Foi durante o encontro da véspera, no bar Avuello, que eu confessei a Albe que não podia ir a Girona. O que me dava muita pena. O carro, embora praticamente novo, tinha-se avariado. Eram as velas, era a bateria, nem eu sabia bem. Para mim, um motor era e continua a ser uma espécie de milagre, movido a explosões mais ou menos controladas, ao contrário da verdadeira deriva de explosões que se ateia e assola numa pega de touros. Para mim, um motor sempre tinha sido um espanto qualquer, alimentado ainda por cima a vapores de gasolina, ao contrário da autêntica errância de explosões que me estava a invadir o segredo da paixão, esse véu, ou essa realíssima pega, onde a voz se vai transformando num presságio de puro desejo, sem guia e sem leme.

E eu a falar do projecto do livro das tauromaquias lusas e nas velas do carro, diante da fanta naranja e das areias da praia e Albe já a sorrir, em sigilo completo. Quem havia de dizer ?

Albe voltou a sorrir, mas já não eram apenas as vocações; era também o corpo morno que dançava sem mexer, era a coluna a eriçar-se, eram as estrelas que se confessavam à volta dos calores do ilíaco, era o tremeluzir do cedro do Líbano que se agigantava em frente do bar como que a querer entrar no areal, era a certeza inefável de que nada iria ficar como dantes, era o estranho rosto de Edmundo desavindo com o tédio do mundo e adivinho de um coro de luas a vir, eram os pulsos a navegar pelo tampo da mesa, era o cotovelo a roçar no cotovelo durante um terno terramoto de segundos e, ali em frente, sempre a fanta naranja e o creme nívea, as sandálias de couro e a ilusória docilidade do Mediterrâneo, para além das areias finas de L´Escala.


(No próximo episódio, ir-se-á entender por que razão o destino aparece escrito onde menos se espera)

Continua
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(publicação da versão Inglesa no blogue Minion)

domingo, 13 de março de 2005

Frase do dia

"Intentionally misleading comparisons are becoming the dominant mode of public discourse. The ability to tell true analogies from false ones has never been more important." (Adam Cohen)
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
DÉCIMO SEXTO EPISÓDIO
(A paixão poética pelas pegas de touros)

Com se nos conhecêssemos, há muito, eu diria que a coisa era quase inexplicável, vi-o a andar na minha direcção, meio a falar sozinho, tal era o ar pródigo do sorriso e das sílabas a transbordarem, a atropelarem-se umas às outras.

- Nós levamo-lo a Girona e vamos consigo, então o que acha da ideia ? - e eu admirado com tal prontidão, a ver ao longe a Albe, por trás do pai que quase me abraçava com a inesperada proposta, a rodopiar sobre si própria, a abrir a flor da face num contentamento invulgar, a acenar sobre a justeza da solução.

- Agradeço muito, mas... como posso eu aceitar uma proposta dessas ? - E Albe a abrir os braços, o pai a olhar-me no fundo dos olhos, a mãe sentada na cadeira de lona com o Match a fazer de leque.

- Está bem, está bem, então eu aceito, mas com uma condição: serão os três meus convidados para a tourada ! - e o senhor e a senhora Granet logo disseram que sim, em uníssono, a revelarem complacência e agrado imediatos.

- O Edmundo contou-me que a tourada à portuguesa é completamente diferente da espanhola, pai ! - Atirou ainda Albe, antes da partida e da minha longa explicação acerca da pan que tomara conta do ford escort.
Ao início da tarde, seguimos os quatro para ir ver o toureio a cavalo de Samuel Lupi e a pega à portuguesa que ia curiosamente ter lugar na praça de touros de Girona, a alguns quilómetros da nossa praia de L´Escala.

Eu tinha metido na cabeça escrever um livro sobre pegas de touros. Era uma obsessão que me perseguia, há muito. Advinha daquele momento, fora do tempo, em que tudo pode e vai acontecer entre o imenso desafio dos iniciados e timoneiros e o grande touro das salinas, altivo e negro, a responder ao repto e a começar a correr sob o rumor da multidão, sob o calor da tarde impiedosa, sob a nuvem de poeira que já se encapelou no ar e é vê-lo, agora, ao touro, de narinas abertas, de cascos em ziguezague, os ferros amotinados como espigas de sangue e, na frente, o cabo forcado do mundo com as mãos na anca a tecer o momento do embate, do encontro, do istmo fatal; parece uma infinidade esse espaço entre touro e homem, entre batida e letargia, entre tudo e nada, é a hora h, outra vez, nascida da palavra sem som, de onde o maior dos rugidos ecoa, por fim, como num parto, para que homem e touro, abraçados entre cornos e braços, no tumulto único da criação, acabem juntos por vencer o signo da vida, o sortilégio da fortuna e o feitiço dos fortes.
Grande festa, a da pega de touros !


(No próximo episódio, vamos ter palmas aficcionadas, churros, galantarias românticas, tragos de erva doce e muitas… muitas mulheres com folhos de cores vivas)

Continua
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sábado, 12 de março de 2005

Sábado poético


Jim Sanborn

Hoje recomendo, como actualizações da semana, os posts Outra Lisboa, hoje, Preciosismos (já agora, obrigado Marion!) e Intimidades da casa.
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
DÉCIMO QUINTO EPISÓDIO
(Crer na liberdade das estrelas)

António Romeu levantou-se com ar algo lunático e respondeu apressadamente a Edmundo que, a pouco e pouco, foi abandonando o tom circunspecto:

- Exactamente. Foi o que tu, à tua maneira, fizeste naquele tempo. Mas eu decidi ir mais longe e, portanto, orientar o meu leme na direcção da liberdade total, sem limites. Se é que isso existe. Mas quero experimentar. Sem o fazer, nunca o saberei.

- Ao ouvir-te, vou também confessar-te uma coisa.

- O que é?

- Naquele tempo, como tu dizes, também eu devia ter deixado de vez os negócios. Devia ter vendido aquela merda toda. Hoje, à parte a vida que tenho, e dela não me queixo, confesso que sou feliz, mas a verdade é que, às vezes, tenho que tomar comprimidos para dormir... apenas por causa do raio das tipografias! Já viste bem isto?

- Percebo, percebo muito bem. E ainda estás a tempo para acabares com isso tudo. A vida são três dias e dois deles são apenas para separar o trigo do joio. Ele são vocações e herança, vontades e cegueira, desejos e acatamento, liberdades e inércia, etc, etc... é ou não é?

- Como voltaste, outras vez, a ser um puto, pá! Quem... havia de dizer!

- É genético, talvez. Lembras-te dos barquinhos de papel, no Rio Nabão?

- Se lembro. Aquilo é que foram as nossas descobertas.

Nesse dia, à noite, fui jantar fora com a Albe e os nossos dois filhos, a Ester e o Isaías. À beira do Tejo, nem uma brisa, nem uma embarcação, nem um ruído, mas apenas aquela sensação de estarmos a dois, para sempre, no bar Avuello, à briga com todo o tédio do mundo, como se fôssemos adivinhos de um coro de luas e o nosso terno terramoto de segundos tivesse sido, mais do que paixão, um lúcido encantamento.


(No próximo episódio, voltamos a 1968 e Edmundo, mergulhado naquelas confusões que se tecem entre amores e expectativas indefinidas, acaba por levar a família de Albe a assistir a uma estranha tourada…)

Continua
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(publicação da versão Inglesa no blogue Minion)

sexta-feira, 11 de março de 2005

Pensar Madrid


Le Figaro

Tal como a sida, a meados de oitenta, veio acabar com uma sociedade hedonista que reatava a errância dos sixties associada a um halo pós-moderno, também o hiper-terrorismo de escala (11-S e 11-M) veio acabar com uma sociedade que tinha aliado, nos anos noventa, o optimismo do globário tecnológico à superação positiva da guerra fria.
Sei que algum grau de hipérbole apenas realça a verdade essencial dos factos.
Hoje em dia, o fim do deslumbramento e a nostalgia da felicidade confundem-se com a formação de novos horizontes de compreensão que se estão a formar, a pouco e pouco, visando enfrentar e enquadrar o mundo à nossa volta.
Embora existam factos positivos em relação há um ano, sobretudo no Médio-Oriente, o certo é que lembrar Madrid volta a ser, em 2005, a redescoberta de uma condição fundamental que coincide com a defesa intransigente da liberdade. É essa a única via democrática que existe para obstar à barbárie e à monstruosidade terroristas.
Preciosismos

Há coisas que não necessitaríamos de dizer aos mais próximos e a nós mesmos, mas dizemo-las talvez por rumor próprio. A ameixoeira do meu quintal também não precisava de ser tão exuberante para confessar a todos os que a olham aquela beleza que sobressai das imensas flores brancas com que agora nos brinda. Mas fá-lo para emprestar à sua irreflectida expressão algum rumor poético, algum brilho próprio, algum suplemento de doce lapso à sua existência. E isso, às vezes, pode ser tudo.
A “esquerda” das exigências: o embuste

Dizem os jornais que o grosso da oposição a este governo se situará à esquerda.
É bem possível.
Há, no entanto, um argumento que parece querer cimentar este facto e que tem a sua origem no mais recente discurso do PCP e do BE.
Com efeito, estes dois partidos argumentam, às vezes de maneira quase imperativa, que o PS “tem que” fazer isto ou aquilo, porque uma “larga maioria” dos portugueses confiou o seu voto “à esquerda”.
Este aceno está impregnado de falácias. Resumi-las-ia em apenas três:
a) o PCP e o BE desejariam com este embuste enquadrar o voto do PS nos desígnios que são os seus como se a palavra “esquerda” fosse um denominador comum a três, o que toda a gente sabe que não é minimamente verdade;
b) o PCP e BE tornam, deste modo, a “esquerda”, não numa geometria de valores, como deveriam defender nas suas próprias perspectivas programáticas, mas no mero “incipit” instrumental de uma narração onde tudo e todos se reduziriam a uma categoria monolítica e inevitavelmente sujeita a uma minoria.
c) o PCP e BE esquecem deliberadamente que a palavra “esquerda” (com que argumentam) não é senão a “esquerda” que existe na linguagem dos respectivos partidos e que nada tem a ver, portanto, nem com os propósitos do governo de Sócrates, nem muito menos com o programa e com a praxis eleitoral do PS que, como se sabe, ancorou claramente ao centro.
Que fazer?

O PS tem hoje a responsabilidade de aproveitar a maioria absoluta para levar a cabo as reformas que ninguém até hoje conseguiu fazer.
Trata-se de reformar e optimizar o estado no sentido da eficácia, transformando a letargia e a inércia generalizadas numa ética de iniciativa e de desejada participação.
Trata-se de conter a despesa, sem ceder ao ruído dos corporativismos e, consequentemente, pôr o país a viver ao nível daquilo que tem, rentabilizando tecnologicamente as suas estruturas e meios humanos.
Trata-se de regenerar radicalmente a justiça.
Trata-se de premiar a educação e dela fazer um terreno de eleição para o mérito.
Trata-se, numa palavra, de restituir a confiança, agindo.
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
DÉCIMO QUARTO EPISÓDIO
(A confissão intempestiva)

- Vamos lá, desembucha ! - repetiu Edmundo.
António voltou a sentar-se, olhou de novo para a janela do quarto e contou quase tudo em três tempos.

- O que se passou, pá, é que eu ganhei a lotaria. Não contei esta merda a ninguém, podes ter a certeza disso. Vais ser o único a saber. E espero que sejas mesmo o único a saber. Não contes, portanto, a ninguém. Segredo com segredo se paga. Devia-te isto, há muito tempo. Não me perguntes porquê, mas há coisas que um tipo deve estimar até ao fim da vida e, para mim, na sensaboria de vida que levava, lá na terra, só muito tarde é que percebi tudo o que significava, naquele tempo, a tua ruptura, a tua coragem e, em primeiro lugar, a tua fidelidade para comigo. São pequenas grandes coisas que devem ser estimadas, não achas ?

- Eu concordo... e só agradeço. Nem estava preparado, agora, para ouvir tais coisas, devo dizer-te. - António levantou-se, aproveitou a segunda grande pausa do verdadeiro conclave e continuou:

- Quando soube que estava rico, decidi desaparecer. Não dei grandes explicações, mas apenas os sinais que achei suficientes, lá em casa, e vim logo para Lisboa. É uma decisão minha. Acho, para dizer a verdade, que já criei os meus filhos, que a família é uma vaca sagrada, que os amigos do dia a dia são umas lapas, que os clubes e as paróquias são as mamas estéreis do povo e que o emprego de funcionário público era, já há muito, a minha morte lenta. Por isso, decidi manter o anonimato e parti. E mais, decidi que vou ficar aqui a viver, no hotel, enquanto tiver dinheiro, e já se sabe, deito-me às horas que quero, como às horas que quero, durmo com quem quero, faço a dieta que quero, faço o horário que quero, bebo e sonho com o que me apetecer e... mais nada. Até ao fim da minha vida vai ser assim: viva a liberdade ! - António Romeu pousou o copo, encostou-se ao vão da imensa vidraça e deu largas a um desmedido sorriso, de orelha a orelha, folgazão, mordaz, jubiloso, inesperado.

- Quer dizer que nunca mais vais... regressar ao Ribatejo ?


(No próximo episódio, António Romeu continuará a contar a sua própria e inusitada história. Edmundo ouve tudo e, depois, há-de ainda olhar o Tejo que, de cor da tinta da China, se abre para além das docas…)

Continua
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(publicação da versão Inglesa no blogue Minion)

quinta-feira, 10 de março de 2005

Hoje:

Perguntas acerca da função dos blogues em geral e dos literários em particular no Minion, Labirintos de Deus e do Diabo no Minitempo e A Mitologia dos desaires no Minibenfica.
Círculos

Hoje de manhã ficou a saber-se que, no Quadratura do Círculo da Sic-Notícias, José Magalhães vai ser substituído por Jorge Coelho. É uma boa notícias a bem do programa, mas também a bem do próprio futuro membro do governo socialista.
A questão é que José Magalhães, ao longo dos anos, teve sempre uma intervenção mais papista do que o papa e, nesse sentido, foi muitas vezes incapaz de relativar fosse o que fosse que não corresse de feição ao seu campo político, rectilíneo e dogmático na defesa e dicotómico e muito pouco ecléctico na oposição (ainda, no programa de ontem à noite, a prestação de Magalhães foi, no mínimo, surreal ao não querer admitir um facto que todos vimos e ouvimos: o compromisso de Sócrates em não aumentar impostos e a possibilidade aberta nesse sentido pelo indigitado mas ainda não empossado ministro das finanças)
A verdade, por outro lado, é que Magalhães era um residente ancestral do programa, desde os inícios do antigo "Flash-Back". E, por isso, para o bem ou para o mal, irá deixar saudades. Mas não tenho dúvida, por outro lado, de que o programa mais "tradicional", mas também mais referenciado na área da (nossa pobre) discussão política irá, apesar de tudo, melhorar. Esperemos sinceramente que sim.
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
DÉCIMO TERCEIRO EPISÓDIO
(O início de uma confissão)

Mas por que me tinha eu posto, em plena suite do Penta, a falar de paixões com o António ? - Não faço a mais pequena ideia. Mas, a certa altura, o tipo mudou de expressão, fez aquela cara dos grandes conclaves e pactos solenes, assoprou uma nuvem de fumarada em forma de zepelim, sorriu e confessou que eu lhe tinha dado, na vida, o que ninguém lhe havia dado. Ou viria a dar. A exclusividade de um segredo.

Era verdade.

Quando regressei àquele Portugal ainda a cheirar a fadâmedes, para rimar com a nossa Moçâmedes, tive a necessidade de contar a minha história fosse a quem fosse. E dei comigo a concluir que, do Minho a Timor, ao longo da imensa e ditosa pátria, apenas um amigo, para mais de infância, podia ser o receptáculo para tal desabafo. Sem grandes demoras, num fim-de-semana ainda de Agosto desse ano de 1968, subi até ao Ribatejo e contei tudo ao António Romeu, pormenor a pormenor, como se eu próprio tivesse saído na rifa de um argumento de estio do mestre Truffaut.

À época, lembro-me com se fosse hoje, ele ficou mais espantado e embaraçado do que eu agora estava, ali, em pleno Penta, revendo na cara do Romeu aquilo que eu não imaginava sequer que ele pudesse ser: um bon vivant que se desempregara e que havia deixado para trás a mulher, os filhos, o clube de futebol, a paróquia, os amigos de café, o barbeiro e tudo. Mas como ele nunca mais começava, de facto, a contar a história, eu abri a boca e quase me vi a gritar:

- Vamos lá, desembucha ! - António tornou então a sentar-se, olhou para o relógio, serviu-nos mais whisky e contou quase tudo em três tempos.

(No próximo episódio, Edmundo toma finalmente conhecimento da drástica decisão de António Romeu)

Continua
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(publicação da versão Inglesa no blogue Minion)

quarta-feira, 9 de março de 2005

Outra Lisboa, hoje

Uma fachada a sós (vidros foscos, inquietos, preenchidos pelo reflexo das nuvens do fim da tarde. E há ainda uma voz antiga, o véu, as portadas de ouro, um pássaro em diagonal e tanto musgo rasteiro diluído nas ombreiras calcárias). Por baixo, as arcarias submersas (pressupõe o olhar que está preso na sua própria turbulência, que é a da imobilidade). É o rio que se espalha, incólume e talvez ameaçador, sob a secreta gaiola de madeira onde a cidade sussurra e respira (no fundo das galerias romanas, o eco propaga-se como um coração sem fim: memórias de almirante, rosto sanguíneo, avermelhado, moldado pelo sal da sua interminável viagem). Por cima, alinhando aquela e muitas outras fachadas, surge um Boqueirão estreito e cheio de traços. Desordem: tinta negra, tempo ermo, vestígios de sujidade e o imenso palimpsesto de cartazes ao vento. O pássaro, o tal que descera e subira em diagonal quase perfeita, pousa agora no friso entre janelas. A fachada parece subitamente inclinar-se e o Tejo profundo aparece, por um segundo, a soletrar a maresia. Um momento único. Uma fio de luz tão efémero quanto anónimo. Uma âncora perdida no antigo cais sobre areias escuras e uns tantos corvos à volta. Deve ter sido assim, há muito, o que hoje apenas reluz na absolvida face do abandono.
Surpresa - 2

Dado o facto de o novo Miniscente dispor de inúmeros labirintos, não esquecer de visitar: "Biosfera", "Fotoesfera", "O Miniscente", "Livro de Visitas", a "Caixinha de surpresas" (por baixo do relógio) e, a seguir, um pouco mais abaixo, a omnipresente secção "Mais notícias".
Pensamentos & vodka

A única prova da existência do absoluto: continuar a admiti-lo.
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
DÉCIMO SEGUNDO EPISÓDIO
(A esperança após o silêncio)

Vi ali o instante de tudo ou nada, a hora H. Era aquele o momento preciso em que eu devia quebrar a minha inércia, o meu arrepio, o meu estorvo, para passar a esboçar e a pronunciar o tal gesto decisivo, o tal hiato irrepetível que fosse capaz de quebrar a fleuma da hesitação.
Mas quando ia avançar, Albe adiantou-se-me com a serenidade quase pré-rafaelita da sua expressão e disse: - Se se reparar bem, os problemas começam, quando se acaba um curso. Não é só uma questão de emprego e de ocupação, mas é, sobretudo, uma questão de motivação. E eu desconfio que tenha, neste momento da minha vida, qualquer motivação ou vocação especial para seguir uma carreira de advogada, está a entender ? - e eu a entender lindamente, a contracenar com gáudio e logo, de imediato, a acolher a generosa confissão com sábia proposta, já Albe partia para se sentar à mesa dos pais:

- Encontramo-nos, logo à tarde, na praia ? - Albe suspendeu o universo inteiro de ponta a ponta, silenciou a resposta, corou ao de leve e, no momento de avançar em direcção ao aquário, já à entrada da sala dos pequenos almoços, virou-se repentinamente para trás e disse:

- Às três, no Avuello. Está bem ?

Conseguira.
Faltava agora apenas destruir o resto do tédio e escalar a alta torre de marfim. Contra a minha desesperança. E nada iria ficar como dantes, confessavam-me as estrelas, o mar e a minha secretíssima nuvem.

- Mas que nuvem ?

(No próximo episódio, a história regressará ao quarto do Hotel Penta onde, muitos anos depois, Edmundo está prestes a ouvir a inusitada e inesperada confissão do seu amigo António Romeu. Nas terras catalãs do final dos anos sessenta, as estrelas ficam, por agora, em suspenso. Ficarão, porventura, à espera de mais umas quantas mensagens dos leitores. E ficarão igualmente encantadas, na sua luminosidade, com o novo céu e com os inúmeros novos limbos que o Miniscente passou a dispor desde ontem. Já os visitaram, por acaso?)

Continua
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(publicação da versão Inglesa no blogue Minion)

terça-feira, 8 de março de 2005

A ler

Um óptimo estudo de Hugo Neves da Silva sobre a blogosfera.

Distribuição etária dos blogueadores
Surpresa

Consegui não dizer nada e... temos aqui finalmente a grande surpresa de Março: um renovado template.
Não é ainda o definitivo Miniscente - V, já que, quando a minha página pessoal estiver pronta, é normal que uma outra formatação tenha que ser levada a cabo.
Tratar-se-á então de aparar detalhes, religar canais e repor algumas continuidades (e ainda abrir o blogue a estruturas mais fixas e menos removíveis: colunas de opinião, selecção de notícias, espaços para salvaguarda de posts especiais, etc.).
Para já, chamo a atenção para novos espaços a visitar. Ou seja, a partir de hoje existem áreas biográficas, galerias de imagens diversas, notícias de última hora, livros de visitas, um histórico do Miniscente, etc.
Convido todos os meus leitores, assim como todos os meus amigos blogueadores, a percorrerem com calma as novas vias, galerias e espaços que o Miniscente agora proporciona. A cor, também ela, vem prenunciar a abertura solar que a Primavera e o Verão prometem (meus reinos de eleição).
Tudo isto resulta do extraordinário trabalho e empenho do João Nogueira. Também ele, além do mais, autor de muitos dos elementos aqui presentes.
Não está mal



O critério justo e adequado para avaliar os chamados "livros do ano", segundo Benjamin Schwarz da The Atlantic.
A disputa dos vaticínios

Grande parte das esquerdas mais tradicionias e também alguns sectores, dir-se-ia prudentes, da direita e do centro-direita vaticinaram da forma mais negra a guerra do Iraque.
Há dois anos a esta parte que o discurso desta área difusa se tem mantido incólume e, naturalmente, tentando sempre, aqui e ali, encontrar na cena internacional sinais de coerência e confirmação.
No campo oposto, permeável aos que viram no 09/11 uma clara mudança de paradigma na cena internacional, e onde se agrupam desde “neo-cons” a liberais e a diversas franjas das esquerdas menos tradicionais, sempre houve a ideia, mais ou menos utópica, de que a desagragação criada no Médio-Oriente acabaria por ser benéfica a prazo.

O que se está a passar agora no Líbano poderá corresponder ao tipo de sinais que são esperados por este último tipo de vaticínios.
Mas ainda é muito cedo para respirar.
A coerência forçada sempre foi um mau princípio.
Seja como for, e como hoje alude alguma imprensa internacional, está aberta uma verdadeira guerra de vaticínios.

segunda-feira, 7 de março de 2005

UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
DÉCIMO PRIMEIRO EPISÓDIO
(Ver o caminho e, por vezes, não o reconhecer)

Passou esse minúsculo décimo de segundo e eu ainda a pensar que já não tinha quaisquer expectativas ou esperanças para a minha vida. E que seria absoluta miragem pensar noutros voos ou tentações.
Olhei em frente e a vida pareceu-me enredada numa névoa estranha.
Cheguei a pensar que seria demasiado celestial partir de coche dourado nos braços da desejada Albe e serenamente sobrevoar os Apeninos, as montanhas sagradas de Kufa e os quase inacessíveis altos de Afrodite.
Havia uma inércia que me descia pelos braços, uma descrença, uma desistência, um arrepio a sondar-me o olhar quase embaciado, um estorvo tardio a prolongar-me a inutilidade do sorriso.

E Albe, completamente alheia a isso tudo, a redesenhar a sinceridade, a adiar a certeza e, afinal, a confessar-se de livro aberto:

- É verdade, todos nós devíamos conhecer as nossas vocações, antes dos estudos. Mas a vida é assim mesmo, é preciso começar por algum lado e aquilo que nos é oferecido está de tal maneira já preparado... e é tão estanque que poucas são as soluções e muitos os problemas que nos esperam, não é assim ? - E Albe, qual doce Dulcineia, ali a falar na minha frente e eu já mal a ouvia, enquanto a ligeira mácula de cansaço desaparecia, a pouco e pouco, muito devagar.

Ao fundo da sala dos pequenos almoços, os pais de Albe fizeram, entretanto, sinal de alvorada.
Albe respondeu ao chamamento com dois dedos no ar.

E eu vi ali o sinal de uma espera que era única.

Exclusiva.


(No próximo episódio, Edmundo irá perceber finalmente que uma mudança está em curso. É algo que vem de fora e que o cerca de forma inapelável. Um encontro decisivo aparecerá subitamente no horizonte e nenhuma desistência momentânea poderá já impedir o inevitável. Assim os deuses se proponham ajudar um destino aparentemente tão sibilino)

Continua
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(publicação simultânea da versão matricial em Inglês no blogue Minion)
Frase do dia

"O problema de fundo do país é uma invulgar capacidade de não estar no mundo." (Fernando Ilharco)
Violência

A remoção de imagens na catedral de Utreque marcou-me imenso. Mas quando um dia entrei na imensa AyaSofya, em Istambul, senti o mesmo estremecimento. Na Holanda ou na Turquia, uma idêntica voragem terá cruzado a história. E, num belo dia, eis que essa voragem de terror se pôs a apagar e a remover memórias passadas. Hitler, Mao, Estaline ou os mongóis no coração da Bagdade abássida disputaram taco a taco a mesma tara, o mesmo enigmático e violento desígnio.
E, hoje, na arena civilizada da democracia portuguesa, como é possível que um simples gesto de remoção e envio pelo correio possa, de algum modo, lembrar toda esta bizarra genealogia de factos?
Implosão radical

A mais inexplicável discussão partidária de que tenho memória: aqui.
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
DÉCIMO EPISÓDIO
(O humor e o drama na memória de Edmundo)

Estava cansado do impasse a que a minha vida tinha chegado e estava sem grande esperança e alento, no momento preciso em que decidi pedir a licença militar e a renovação do passaporte, para além da demorada passagem de segunda via da cédula pessoal e do bilhete de identidade.
Quando reuni toda a documentação, meti-me no escort que era novo e dirigi-me para a Costa Brava. Precisava desanuviar e, em primeiro lugar, escapar ao cemitério nacional. Foram três dias de longa viagem até à praia de L´Escala.

Para além do mais, tinha visto finar-se, bem dentro de casa e na própria pele, um daqueles casamentos do antigamente; daqueles cuja unção divina aspirava a um compromisso de eternidade, e de que o exemplo-mor e mítico era e é o matrimónio de Pedro e Inês que, em Alcobaça, se irão ainda levantar, um dia, um diante do outro, no fim dos tempos, quando o advento radioso do paraíso e dos seus mil limbos forem revelados por Deus Nosso Senhor.
Sem mais nem menos, naquele tempo de D. Salazar e Tomásio, ainda antes da fase do homem da regisconta, via-me eu, um cândido e tradicional dono de duas tipografias, condenado ao ultraje de um divórcio contra todas as santas leis e, como se não bastasse, poucos haviam sido os amigos, para além do António Romeu, que me entenderam a disjunção e sobretudo a fúria.
Depois de ver fugir das minhas hostes a Dª. Filipa para a casa do tio que era Bispo em Viseu, fugi definitivamente do Restelo e dei entrada no Bairro Alto dos mil amores, onde acabei por encontrar outra vida, outros prazeres e outros fadários já não a rimar com Tomásios.
Bons tempos de fandangos nocturnos, esses. Foi a minha segunda juventude. E mal eu sabia que muitas outras me esperavam.

Passou esse minúsculo décimo de segundo e eu ainda a dizer, entre dentes, para mim próprio, que estava cansado e sem grandes esperanças. E que seria miragem pensar noutros voos ou tentações.
Seria mesmo?



(No próximo episódio, Edmundo admitirá finalmente que existem novos sinais. Algo poderá estar prestes a mudar. Albe, na sua frente, parecer-lhe-á, cada vez mais, uma estrela a brilhar, um amor talvez possível, uma entrega inevitável mas ainda distante. E que medos o perseguiriam ao mesmo tempo?)

Continua
*
(publicação simultânea da versão matricial em Inglês no blogue Minion)

domingo, 6 de março de 2005

Intimidades da casa

Em poucos dias, a ameixoeira tornou-se num esplendor de múltiplas flores brancas. Há vida no pátio. A alvenaria sorri. Às vezes, ponho-me a olhor aqui do envidraçado do escritório para essa beleza serena e pergunto-me o que é que a árvore estará a querer dizer. Que rumores? (pena é a relativa sofreguidão que acompanha a vida do maracujá, da jovem buganvília e da recentíssima laranjeira).

sábado, 5 de março de 2005

UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
NONO EPISÓDIO
(A súbita expiação de Edmundo)
hoje on-line na primeira hora de domingo

- Tocou-me nas costas ao de leve, enquanto apontava para Albe, e sorria, sorria, de modo transbordante, e não se cansava sobretudo de insistir, sem que tivesse sequer sido inquirido para tal
- É a minha filha, é a minha filha ! - e eu, ali, sem mais, despojado de mim, a compreender, talvez, a mais velha lição de geometria e de óptica do mundo: uma recta une, no mínimo, dois pontos, mas pode aproximar, por impoluta ilusão, muitos mais.
Refeita a lição, voltei-me a sentar na cadeira de lona, mas, minutos mais tarde, a breve apresentação fez-me ver, ou reconhecer, uma menina de vinte e poucos anos e uns olhos ávidos de aura por cumprir, de candura, de impenetrável beleza. Chamava-se Albe.

E nós, imagine-se, a falarmos de vocações a uma hora daquelas ! Era já o rosto do tempo, diante de nós, a desafiar o tédio. O tédio de tudo o que ameaça tornar-se em descaminho, ou mesmo em perda, se, a certa altura, não aparecer um sinal, um gesto, um hiato súbito a minar a apatia, aliás natural, da hesitação.
Olhei para Albe e, durante uns segundos, brevíssimos e inenarráveis segundos, senti a justa noção do meu cansaço. Estava sinceramente cansado e sem grandes esperanças.

Estava cansado daquela Lisboa pindérica a cheirar a fardas cinzentas e a enxofre lentamente atiçado nos cais, de onde partiam barcos com magalas para Angola; estava cansado daquela Lisboa cheia de quixotadas submissas, licenças para isqueiros aos rodos e de fadâmedes para rimar com a nossa Moçâmedes, como diria o poeta; estava cansado daquela Lisboa a exalar perfume de iscas e a silenciar todas as polémicas e arrojos; estava cansado daquela Lisboa a explodir de hipocrisia enlatada e onde tudo era pequenino e franzino, com excepção da recente ponte sobre o Tejo, do suave Benfica, do Joaquim Andrade do Sangalhos e dos evidentes milagres de Fátima e arredores.

(No próximo episódio, Edmundo continua a descrever a descrença que a sua vida lhe alimenta, enquanto tenta descobrir na atmosfera das súbitas férias algum sinal que lhe aponte uma nova deriva, uma nova aventura, ou um novo recomeço. Mas faltava ainda muito, quase tudo, para que um pacto com o futuro se viesse a cumprir)

Continua
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(publicação simultânea da versão matricial em Inglês no blogue Minion)
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
OITAVO EPISÓDIO
(A sereia mágica e a grande surpresa de Edmundo)


O rasto do caravelle leva Edmundo a erguer a cabeça e, de súbito, a encarar o céu já limpo, liso de amplitude e devaneio. Fá-lo por instantes como que a adivinhar o silêncio possível, ante o vendaval de asteróides e cometas de quem brinca ao esconde-esconde, ao flecte-insiste, ao conta tu - conto eu.
Edmundo pousa agora o policial sobre a toalha e, nesse ápice quase sem duração, levanta-se da cadeira alongada e anda, durante alguns metros, em jeito de leve fastio, ou de ligeiro spleen, até acabar por atingir o limiar empedrado da piscina.

Foi nessa altura que os olhos de Edmundo se desfiguraram e que o cravo e a pianola se ouviram tocar no reverso da última nuvem que mais parecia uma estrela do mar. Foi também nessa altura que Edmundo, de um momento para o outro, se esqueceu do preço do papel, do telegrama, da tourada e até das velas avariadas do ford escort.
Sobre o rectângulo da piscina, num emaranhado de fios, suspendiam-se ao vento pequenas bandeiras triangulares, azuis e vermelhas. E ela ali, por baixo, a flutuar, a fundear de braços abertos ou unidos em aro límpido, puro, antigo. Sobre o azulado desvanecido, Edmundo fez com que o tempo parasse e continuou a vê-la de cima, de lado, ou com a ubiquidade que conduz as borboletas a escalarem pela mancha do esófago.
Um pasmo.

E ela a nadar, a nadar lentamente e a chegar, neste triz generoso da existência, ao lado oposto da piscina. Abraça-se às bóias, desliza, e, de repente, como se fosse em câmara lenta, faz adeus na direcção de Edmundo. Quase lhe responde o português com a mão, meio tímida, a soerguer-se; com os braços a abrirem o sorriso embaraçado que não chega a pronunciar.
E ela fica a rir-se nas calendas, ao longe, do outro lado do universo, a inclinar agora o rosto para a água, para Tebas, para Haifa, saiba-se lá para onde mais. Talvez a querer dizer que o tempo se enreda do mesmo modo que a lua se liquefaz nos mares enigmáticos do solstício.

Foi nesse assombro, confessa Edmundo a António, - Que o senhor acabou por vir ter comigo ! Era o pai dela, imagina !


(No próximo episódio, Edmundo conta a António Romeu o que se passou, nesse dia, com o pai de Albe. Mas não só. O próximo episódio dará também a conhecer o pacto que os dois apaixonados terão acertado nestes delongares do estio catalão)

Continua
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sexta-feira, 4 de março de 2005

UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
SÉTIMO EPISÓDIO
(Entre a memória pesada e a visão iminente)

A jarra é de cristal, alta e envidraçada, mais parece uma labareda suave a desafiar a vasta montra que dá para a piscina.
Edmundo avança, às nove em ponto, com passos largos, decididos, as mãos caídas nos bolsos das calças brancas, alvíssimas, e a memória perturbada com as encomendas das tipografias, com a avaria do carro, com a história da tourada, com a pródiga presença de nuvens neste dia canicular de Agosto.
Edmundo dispara os olhos fixamente na direcção do aquário e, depois, com agilidade, contorna a mesa cheia de talheres, pratos, sumos de cores fortes, gelo e uma verga recheada com pães do levante. Um sorriso para o empregado mais próximo imprime o eclipse raro de mais uma manhã que parece, diga-se a verdade, condenada ao mais puro anonimato das férias.

Passa um minuto das nove da manhã e Edmundo já está sentado à mesa, o guardanapo a cobrir o hábito de linho que veio um dia da Louisiana, o som dos miúdos no relvado a invadir o mundo como se fossem cometas e asteróides pouco preciosos; a paz do pequeno almoço a vaguear através de silhuetas informes que entram e fogem da sala, num serpentear de súbita excitação.
Edmundo parece mais estóico, volátil, como que desaparecido no meio do tufão, evadido no seio da turbulência deste hotel de Verão.

O suor faz das suas, é verdade, mas Edmundo já saiu, entretanto, para o relvado com os óculos escuros e um lenço obsessivamente branco a deslizar ao longo da testa. Decorre o ócio incerto da manhã e a cadeira de lona acaba por vir juntar-se ao policial, embora o ensejo, como se imagina, seja breve e sobretudo transitório como a vida.
Letra após letra, cena após cena, crime após crime, e Edmundo sempre a lembrar-se do preço do papel, do telegrama de Lisboa, da tourada e ainda, quem havia de dizer, da última nuvem que parece agora a esvair-se na direcção de Girona.


(No próximo episódio, Edmundo surpreenderá Albe a nadar nas águas da piscina, qual sereia deleitada pela intemporalidade das férias. Albe mantém aquele silêncio próprio das ruas do Bairro Gótico, quando se esvaziam e o mundo as entreabre de doçura espantada. E, subitamente, tudo parece ser possível)

Continua
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quinta-feira, 3 de março de 2005

Raízes da instantaneidade


Letteri Café

Às vezes, já me tenho perguntado por que razão recorro sempre à raiz "Mini" para baptizar os meus blogues.
Talvez haja duas razões sensíveis.
A primeira tem a ver com o próprio filme da memória: os velhos Minis que circulavam no meu tempo de liceu, entre a calçada luzidia e o fim do horizonte onde a perdição os fazia desaparecer para sempre.
A segunda, a mais deliberada talvez, a mais impertinente e menos racional, porventura, tem a ver com o nosso tempo.
Sobretudo porque este já não é o tempo em que Mallarmé sonhou com o livro total; porque este já não é o tempo em que Gaudí sonhou com a catedral total; porque este já não é o tempo em que Gance sonhou com o filme total.
Hoje, os novos Minis são omnipolitanos e dão-nos habitáculo e simulação, em todo o lado e ao mesmo tempo.
Até porque, no novíssimo filme da actualidade tecnológica, a imaterialidade (e a aura da divindade) tem um simples e apelativo nome: instantaneidade.
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
SEXTO EPISÓDIO
(António Romeu revela uma descoberta)


- Eu hoje percebo que tu estavas a desabafar, estavas ali a ver-te de fora da tua história e, ao mesmo tempo, estavas a ouvir-te a ti próprio a contá-la. Como se precisasses de, como é que hei-de dizer... de deixar de confundir a tua imagem contigo mesmo.

António fez então um breve compasso de espera, como que a dar a Edmundo o inesperado fôlego de uma resposta:

- Muitas vezes a paixão traz consigo uma verdadeira deformação óptica. Vemos na amada a nuvem e na nuvem vemos o nosso próprio rosto a rimar com a Atlândida... mas já viste isto? Eu, aqui, no Penta, sem saber ainda porquê, a falar contigo de paixões? Mas isto é o quê?

Em frente, António acendeu o charuto, levantou-se e caminhou até ao pé da janela. Edmundo acompanhou lentamente o amigo com o olhar e depois auscultou o sinal de uma explicação.
Fez-se a primeira longa pausa, desde que o inesperado encontro se iniciara.
António assoprou uma longa e longilínea nuvem de fumo, uma espécie de zepelim a dissipar-se no ar e depois sorriu:

- Esse dia, Edmundo, foi, para mim, um dos mais importantes de toda a minha vida. É que eu percebi, pela primeira vez, que alguém vinha ter comigo, não para me pedir isto ou aquilo, não para combinar uma coisa prática qualquer, não para beber um copo e queixar-se da vida, não para tramar fosse o que fosse, não para lembrar ou esquecer algum louvor ou azar, mas apenas e tão-só para contar e partilhar, a sós, um segredo. Já agora, a Albe chegou, alguma vez, a saber que tu me contaste a história toda, tim-tim por tim-tim ?
- Por acaso... não.
- Eu sabia disso. Pura intuição. E há coisas que um gajo não esquece. É por isso que meti na cabeça, desde ontem à noite, que tu tinhas de ser a primeira pessoa com quem eu havia de falar.
- Mas diz-me lá, pá ! Acerca do quê ? Desembucha !

António voltou a sentar-se, olhou para o relógio e encheu os copos com mais whisky. Como se nada se passasse. Até que.

(No próximo episódio, Edmundo regressa às memórias da sua paixão por Albe, naqueles dias longínquos de 1968. A revelação de António Romeu pode esperar. Assim o solicitam alguns leitores)

Continua

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quarta-feira, 2 de março de 2005

UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
QUINTO EPISÓDIO
(A inesperada confissão)
**
E depois veio a história, dessas que são raras, diga-se, feitas à custa da própria prática e sem quaisquer explicações ou reflexões a detê-las, ou a sustentá-las. António já se sentou no couro preto do sofá e, moldado que está pelo seu novíssimo e decisivo papel, porque há muitos que o não são, ei-lo agora a esfregar as palmas das mãos, uma na outra, e a relembrar o facto, talvez primeiro, que provocou este encontro:

- Tu foste o único tipo a contares-me um segredo que eu sei que partilhaste apenas comigo.

- É verdade. Isso é verdade.

- Lembro-me ainda como se fosse hoje. Vieste de Espanha todo cheio de energia, meteste-te no ford escort, era azul não era ?... E apareceste-me lá na terra, todo transfigurado, a contares-me a história da Albe. Tu não eras tipo de grandes confissões, de grandes sentimentalidades e pieguices e, de repente, estavas-me ali a contar tudo aquilo por que um gajo passa e que eu julgava, enfim, que se vive e devora, em certas circunstância, e que depois passa. Por outras palavras, vê lá se percebes o que eu quero dizer, eu nunca imaginei que tu me viesses contar os pormenores todos de uma dessas histórias de amor dos filmes e que, ainda por cima, te tinham acontecido a ti, na primeira pessoa. Não sei se te lembras disso como eu...

- Se lembro, se lembro...

- Nesse dia, estava um calor dos diabos, era vinte e tal de Agosto, faz agora pouco mais de vinte anos, e nós os dois ali à beira do rio... eu em silêncio e até um pouco atordoado e em estado de verdadeiro suspense e tu, bom, tu a falares como eu nunca te tinha visto, com um imenso brilho a sair-te dos olhos, com uma poesia dos diabos, com um sentido impressionante de cada detalhe, até parecia que a história que estavas a contar era assim uma coisa em que não se pode tocar, frágil, de veludo, e que estavas a mexê-la e a remexê-la, por uma única vez, fora da tua intimidade com a Albe. Não foi assim que se passou ?

- Já foi há uma eternidade, mas foi assim mesmo. Podes crer.

(No próximo episódio, Edmundo confessa que não terá contado tudo a Albe. E o amigo, António Romeu, tarda em revelar tudo sobre o estranhíssimo volte-face da sua vida)
*
Continua
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terça-feira, 1 de março de 2005

Ciberiraque

Pode ler aqui uma boa súmula de posts recentes com origem em blogues iraquianos. Garanto que vale a pena.
Estalo glacial

Pobres de espírito os que pensam que por trás de uma linguagem poética levemente barroca (e até superficialmente afectada) não existe uma espessa e subtil ironia.
Não é tanto por trás, como acontece na cenografia metafísica que oculta o superior teodolito da vida; é sobretudo na própria grelha que faz e desfaz o fole da linguagem que ri à gargalhada, enquanto avança, em várias frentes, numa aparente e dissimulada eminência.
A coisa saussureana e mais tarde todos os estruturalismos e os mecanismos greimassianos estão entre o que mais vilipendio, dada a pobreza que representam (o meu último ensaio, e não , é cristalino quanto a isso), mas uma certa actualidade tão "relativista" e "vitalista" quanto "microrealista" (e nostálgica do nunca vivido), não lhe fica atrás. Não por vontade própria, mas por pobreza de espírito. E inércia.
The Brain Floats

(...)
The brain floats on a lake of words
just as once the world was held
on elephant-back above a sea -
subversive rhyme suggests that herds

of metaphors with sharper beak
tear at the silence of unease;
a philosopher feels on his cheek
the tears of which he cannot speak.

(Peter Porter,
do poema "Whereof We Cannot Speak")
Parabéns

Para já... ao Blasfémias e ao Insurgente por razões diferentes. Um faz anos, enquanto o outro demonstrou raro eclectismo. E, depois, isto há coisas que têm que ser ditas, então não é que o João Nogueira não se lembrou de nascer a 29 de Fevereiro!?!
Alterando o imutável

Deus fazia as contas, como normalmente, e os negócios do mundo lá se iam fazendo. Mas, desta vez, parece que Deus corrigiu o que já estava escrito e selado nos decretos da providência divina.
UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
QUARTO EPISÓDIO
(Um estranho encontro)
*
António Romeu foi o maior amigo de infância de Edmundo e, precisamente vinte e um anos depois do radioso Verão da Costa Brava, a 13 de Agosto de 1989, decidiu transformar a sua vida numa verdadeira obra de arte.
A história começa no dia em que ganhou a lotaria especial de Verão. António manteve o anonimato e, sem grandes explicações, deixou a fobia da indústria das madeiras, abandonou a casa, a mulher e os filhos, virou costas ao café, à bola, ao bairro e a toda a rotina acumulada, durante anos e anos a fio.
Pela primeira vez na vida, António deixava a terra, assentava arraiais em Lisboa e, para que não perdesse pitada da vista da sua nova urbe, decidiu mesmo instalar-se, e em boa companhia, já se vê, numa suite panorâmica do Penta.
No próprio dia 13, António telefonou a Edmundo.
O encontro do boquiaberto coleccionador de tipografias com o velho amigo das embarcações de papel a deslizarem ao longo do rio, açude atrás de açude, como se fossem para a foz de um mundo perfeito, onde as cidades deviam ser de vidro e os aviões meros pássaros que acoplavam no parapeito aberto das janelas; o encontro de Edmundo com António agora com a realíssima Lisboa a seus pés e, pelo meio, com a imensa e infantil cumplicidade feita de moinhos de lama seca, bonecos de cartolina e jornais laborados com a prata dos maços de tabaco; o encontro entre os velhos amigos, insista-se, num dia de sol a rever outros gloriosos, acabaria por se selar com um inesperado e longo abraço; o anfitrião a pedir calma e a garantir a exclusividade do grande mistério da vida, ou do magno segredo, e dizia-o com o whisky a tremeluzir entre as pedras de gelo pontiagudas e os gestos a sublevarem a luz transversal que se abatia no soalho; e do outro lado, dir-se-ia contrafeito e imóvel, era Edmundo a tentar entender a euforia, a surpresa, o encanto, o nada que restaria a tanta evidência de pasmar.
E que teria Romeu para contar?
*
(No próximo episódio, confidenciam-se passados. Reveladoramente. Romeu contará o inexplicável. E Edmundo abrirá o coração e revelará muitas das coisas que se passaram, na Catalunha, naquele longínquo e singular ano de 1968)
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Continua
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(publicação simultânea da versão matricial em Inglês no blogue Minion)