quarta-feira, 16 de novembro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel - Episódio 33
Terceira Parte: O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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Foi no meio de lapas, algares, pedras maceradas pela ondulação e estranhos sinais inscritos nos estilhaços da arriba dados à luz pela maré baixa que a língua de areia se abriu. Vimo-la a partir das bóias de salvação, tábuas brancas engalanadas de pneus velhos e uma âncora desenhada a carvão. Tentámos alcançar a estreitíssima língua de areia, qual oásis entre a tormenta e a liquidez que nos despertaria os sentidos, o alarme do olhar. Pé ante pé, diante de salpicos e da aragem agreste que sobressaltava o corpo envolto em toalhas, em fervor antiquíssimo. O mês de Setembro desse ano longínquo parecia agora fechar-se, para sempre, com ilimitada saudade de tempos vindouros e também com o antecipado adeus que um certo silêncio já anunciava. Pela frente, a cadência infernal das ondas parecia disputar a bandeira vermelha que o vento sacudia, em ira de luas vivas e equinócio, com a mesma força com que a brancura azulada dos toldos, das cadeiras de braços e das barracas se agitavam no meio do areal praticamente deserto. Era um mar encapelado que desafiava a estreita língua de areia que o capricho das erosões fazia aparecer no termo da falésia; era o sopro da ventania a levantar, mais atrás, os apetrechos da praia e da própria estação balnear que parecia de vez acabar.
Continuo por trás das janelas das águas-furtadas à espera que Leonor chegue a casa a qualquer momento, abrindo a boca, a plasmar memórias e deixando o bafo colar-se nas pequenas vidraças quadradas da guilhotina da janela. Com o dedo, desenho diagramas sem sentido, riscos e folhas talvez de trevo, linhas rectas e uma maçã a adivinhar-se pelos contornos que conduzem o dedo a secreto porto. A vida é uma forma a compor-se a todo o momento, iguaria em expansão, essência talvez a esbater-se. Foi nesse Setembro, diluído já em miragem, numa voragem a esfumar-se, e onde o mais fértil dos mundos começava e acabava ao mesmo tempo, que nos deitámos como verdadeiros náufragos do desejo sobre a apertada língua de areia. Estávamos agora abraçados com a tentação mais desmedida e os meus dedos a desviarem a alça do fato de banho de Leonor, a unha sobre a virilha invicta e depois a folga, a abertura, a fissura magnífica e tanto sal, areia molhada, grão pastoso e algas e mais algas entre lábios, olhos e dedos navegando sob o soutien, ou sob o elástico de pano dos meus calções. A pele eriçada, desconhecida, estirada na palma da mão cada vez mais aberta; os olhos revirados, a lua no ocaso das marés vivas e o zum zum do mar tão próximo e ameaçador. Ri-me muito alto e atirei dois pedaços de madeira que as ondas tinham arrastado até à raiz do penhasco, da arriba negra e carcomida. O zum zum do oceano a rebentar, a crescer.
Até que a grande onda atolou o acto e nos mergulhou em súbito pânico. Vertigem brusca de quem espreita para além de. E os meus olhos à janela das águas-furtadas desenterrando essa miragem vivida há tantas vidas, eras e naufrágios sem mar. Se ela imaginasse que era eu, aquele Adãozinho tenro e ainda sem fibra! Talvez fosse esse o primeiro dos meus inexplicáveis naufrágios, generoso e sem qualquer bóia, nem corda de salvação, mas arrojado. Da casa azul, em frente, sai a irmã da Dona Olga com os seus óculos de tartaruga e vestido azul-escuro; é, pois, quase meio-dia e meia, hora de encontros no café. No céu, a luz tímida diz-me que a espera é breve, tranquila como a retina em catadupa inesperada. Limpo as vidraças lentamente com a manga do casaco e, ao descer as escadas, ouço ao longe a chave na porta. É Leonor, apressada, pergunta-me se também quero ir ao café da praça. Pois claro, é hora do chá de limão. Depois de almoço começa o meu turno, há tempo, espreguiço-me e ela a olhar-me fixamente como se fosse sigilosa adivinha, pitonisa de qualquer coisa remota, autêntica, desvelada há muito, mas sem nome próprio.
E o mar brutal avançando sobre nós nesse tempo sem fundo e depois, sem apelo, a dor súbita, imprevista e medonha ao embatermos nas rochas por umas duas vezes; nada do outro mundo, apenas o susto, o limite, ou o alívio de tornar a ver a onda a refluir. Levantamo-nos e os corpos mal resistem, e os gestos a perderem-se, e as vozes que dizem Leonor e Adão, Adão e Leonor; mal de nós se o intervalo entre as vagas for pequeno. Subitamente, a água em forma de espiral parece absorver-nos e enrola-nos os passos, as pegadas já translúcidas, a força com que nos detemos colados aos rochedos. De relance, vejo o fato de banho de Leonor trilhado, rasgado por cima da perna, talvez já na cintura. Entre as duas vagas fugimos sem saber onde pôr os pés, os braços, a névoa do olhar e a outra. Reparo subitamente que tenho sangue nos artelhos e Leonor, atónita, tem os olhos enlevados, aturdidos; queixa-se do braço, dos rins, da pancada, da vida sôfrega ou do instante inacabado.
Que sorte, mesmo assim, ter perdido de vista a língua de areia já ao longe; que sorte, apesar de tudo, ter revivido o prazer do abismo, afugentado pelo monstro vivo da natureza sem dó. E nós os dois, tantos anos depois, e sem podermos partilharmos sequer o passado, ali sentados no Café Parque, mal ainda haviam chegado as meninas de bata azul que trabalham na casa de saúde das irmãs hospitaleiras. Passados dois minutos, o médico atravessa a Praça e espreita para o lado da bomba de gasolina à espera que a revisão do carro esteja pronta. Junto ao Parque infantil, o jardineiro parou entretanto diante das ervas, da alfaia e do carrinho que faz lembrar o dos gelados nessa praia de antigamente. Parou o jardineiro diante do seu eterno canteiro e com ele deteve-se a ocultação do nosso olhar prolongado desde esse dia em que, na Praia das Maçãs deserta e plena de desejo bravio e enfurecido, nos conhecemos carne a carne. Cinco minutos depois, chegaram a Dona Olga e a irmã de braço dado. A meio do meu chá, a costureira da mulher do médico requisitou-me para ir a uma quinta no Sabugo e lá fiz a estrada de Pêro Pinheiro, antes ainda da minha hora.
Mas haverá uma hora marcada para fazer seja o que for? Perguntava-se Abel, enquanto descia ao largo do campo de golf e se lembrava de tudo. Era noite profunda e eu tinha ainda nos meus ouvidos o ruído seco das balas. A modorra nocturna da Gago Coutinho. O sol entretanto tinha nascido e eu, atemorizado, deixei atrás de mim o Cabo da Roca e toda a paisagem avermelhada e medonha de falésias e arribas. Sabia-me de novo transfigurado e ressuscitado; por isso, o horror e a fobia invadiram-me o espírito e a urgência de sobreviver a tais metamorfoses fantásticas e sem explicação. Como já acontecera uma vez, era preciso agora mudar de rosto, de gestos, de nome. Segui então para norte, como se fosse levado a reencontrar-me com este meu destino duplo: o da singular Belas e o da minha meninice de amores. A dada altura, estacionei a motorizada junto ao penhasco e, com a suada do mar a referver uns trinta metros mais abaixo - ainda a retenho com todo o seu alvoroço mortal -, corri em direcção à abandonada cabine telefónica. Era um casinhoto solitário, edificado na berma da maltratada marginal e onde eram visíveis os vestígios de antigas chamas. Puxei a porta de vidro para mim e, por milagre, ouvi o tinir constante do telefone. Meti moedas, rodei o número escrito por trás do cartão do Hotel Oriente de Barcelona. Falei com o mordomo de ares orientais e, à minha volta, sobre o tejadilho da cabine telefónica, começou a chover copiosamente. Juro que era uma chuva quase vermelha, assustadora. A voz compassada do meio filipino meio catalão lá me ensinou, com muita paciência, onde ir, onde me apresentar. Restavam-me os cheques do Porfírio e pouco mais. Foi numa destas quintas muradas junto ao campo de golf que acabei por entrar, devido à cunha do fiel mordomo. E foi assim que os meus lábios perderam espessura, que a minha face se estreitou ainda mais e que, por fim, a minha testa ficou mais ovóide e menos larga. Tinha agora uma face a dar para o triangular, compensada pelo cabelo mais curto do que fora apanágio em Caim ou em Adão. Atrás da orelha e sob o cabelo, as costuras acumulavam-se; era muita operação, muita mexida.
Aquilo tinha sido um acidente em pequeno, repetia eu a Leonor, em voz baixa de lençóis, sempre que ela passeava os dedos na minha cabeça. Leonor ouvia, ouvia, calava, mas repetia, com ar matreiro e sem o dizer sequer por palavras, - malandro, meu grande malandro, o matreiro és tu. Mas tudo isto eram sorrisos e gestos da pele, ternura leve e prazenteira, quando os corpos, a nu, enchem a casa e a aura perfeita onde chegam a habitar a dois. Foi nessa estranha casa-clínica que me deram novos papéis e me definiram a minha nova identidade. O meu destino era agora mais paroquiano, reservado, protegido. Taxista de boa memória. Abel de meu nome.