O Trevo de Abel – Episódio 31
Terceira Parte – O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
e
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Terceira Parte – O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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Sempre se disse nos Remolares e na zona do Conde Barão que tinha garras. Apesar da silhueta informe e bizarra que ostenta, uma longa cabeleira encaracolada invade-lhe os olhos, a fronte e a própria fermentação silenciosa da alma. Pouco fala e parcos são os sinais que dá de si a todos os outros. Talvez tivesse já sido arrumador, marinheiro ou cartomante, porventura aprendiz de pirata ou nómada, a bordo desta viagem do tempo que parece querer incendiar-se, dizem, na suavidade do Outono. Há quem espalhe a sete bocas que ele é um misantropo libertino, um devasso sem nome, um antigo mestre florentino. Até que nesse dia viu passar um táxi na Rua Nova do Carvalho.
No ar, é denso o fumo das castanhas. Terá garras ou talvez não. E... se as tem, encobre-as sem qualquer mansidão por sob a imensa sujidade de carvão que lhe mancha a pele, a aura e a deslumbrante expressão de uma saudade adiada. Às vezes, num repente assustador, ergue-se, voa, levanta-se, parece o verdadeiro génio da garrafa de Aladino que corre atrás de um eléctrico, ou então, serenamente, fica a olhar em frente para a fresca limpidez da montra da sapataria. Ou será uma retrosaria, uma pastelaria, um negócio decadente de fotocópias e atacadores? Tanto faz.
Nesta misteriosa Rua da Boavista de Lisboa, onde as fachadas se adensam de breu e as luzes amareladas e foscas iludem a mansidão nocturna, ele anda para trás e para a frente e, neste vaivém constante, arrasta o corpo globuloso como se fosse um imenso cilindro de metal, mãos sob a imensa capa feita de jornal, pano-cru, ou tela baça de corcel perdido. Apesar de lúgubre, cavernoso e sem piedade alguma nos gestos, mesmo para o rude sabor de inesperadas alcateias, é certo e sabido que traz sempre consigo o enorme e já famoso maço de folhas escritas. Por isso lhe chamam o Isaías.
De manhã à noite, escreve, rabisca, desenha sobre papel de embrulho, blocos de almaço, cartolina de caixa de chapéus ou sapatos. A letra é larga, redonda, cheia de folgas e rebentos, prolonga-se em traços obtusos, oblíquos e finos que esquecem as linhas, os rumos do olhar, a ordem. Dizem que, um dia, ele deu em maluco por ter perdido os mandamentos divinos que lhe haviam sido comunicados por instâncias do limbo. Todas as madrugadas, apesar dos traumas e da vida que leva, Isaías lê tudo o que escreveu no dia anterior com uma ansiedade que o atira de novo, rejuvenescido, para o cais entretanto molhado pelo encantamento do sol que volta a nascer. Dia após dia, até que, de novo, se senta no poial de pedra vulcânica, diante do quiosque onde os jornais, líquidos de gracejo e de tinta, já luzem diante de mil e um transeuntes. Assim costuma estar, descansado como um felino em suspenso, até àquele dia em que viu passar um táxi na Rua Nova do Carvalho.
Tem garras ou talvez não, dizem as más-línguas. Há mesmo quem o tenha visto miar, ou rugir como lince selvagem e depois espreguiçar-se por sob o nastro metálico da ponte, ali para os lados da amena Cruz de Alcântara da sua criação. Há mesmo quem o tenha visto trepar pelos mastros de um navio tailandês, carregado de tigres de papelão e audazes nautas do fim do mundo. Há quem diga, pelo perfil, que é a reencarnação exacta do poeta. Talvez de Tolentino, Elísio, Nobre, Chiado ou até Cesário. Há quem segrede que dantes adorava bifes com grãos de pimenta verde. E é verdade que, na primeira Terça-feira de cada mês, um senhor alto e magro, antigo padre no Loreto, lhe paga um desses bifes em Santos-o-Velho.
Depois, depois... pouco fala e raros são os sinais que volta a dar de si aos outros. Todos os dias desce a D. Carlos e senta-se no velho poial da Boavista. Escreve, escreve e escreve. Persegue eléctricos, percorre o cerrado das noites e revê sempre o sol nascente, após a reescrita de toda a bainha do universo. Dizem que já foi rei de Portugal, fadista e grão-mestre em Malta. Mas, agora, francamente, está cansado da vida mais pueril; nada sabe do milénio, da SIC, de Timor; convenhamos que fuma Definitivos e adula a curta asa dos pombos, no momento em que deposita um olhar lívido de morte sobre a árvore gigante que existe no Largo do Conde Barão. E ali terá ficado, para sempre, de lápis na mão e a olhar para mim, como se quisesse, já sem resistência, esconder as garras, o medo, a semente inaudita ou a loucura mais sadia que Lisboa tem.
Até àquele sábado em que viu passar um descuidado táxi na Rua Nova do Carvalho.
Nunca soube por que raio tive que ir a Lisboa nesse dia, mas o médico, sempre tão prestável com as minhas gripes e males reumáticos nas pernas, não é pessoa a quem se possa dizer que não. Para além do mais, também me fui habituando a sentar à sua mesa, todos os dias ao meio-dia, já que a moda do chá de limão era muito glosada, assim como, entre a gralha das conversas das senhoras, o meu silêncio se tornava também cúmplice da muito estima que sentiam por mim. Não fosse o diabo tecê-las e eu tivesse que conduzi-las a Lisboa ao Santa Maria ou ao Telhal, é coisa que nunca se sabe. De qualquer modo, ao ter passado fugazmente pela capital, adorei cruzar todas aquelas ruas onde não voltava há tanto, tanto tempo. Não fosse eu Adão, Caim e agora Abel, tudo ao mesmo tempo, e era caso para dizer, de dentes à mostra e sorriso folgado de verdadeiro júbilo, - foi mesmo coisa de outra vida! Por outro lado, diga-se que estou já tão longe daquela Lisboa onde, a cada esquina e por trás de cada cortina, pode de facto habitar um dos herdeiros dos Coimbras, o Correia e, se calhar, a máfia do Barça à procura ainda do defunto e velho Caim!
Quando, já descontraído e mais leve do que o normal, voltei a Belas, antes de estacionar o carro na praça, vi-a a atravessar o jardim do coreto, deambulando em frente do cinema velho, a Leonor. Devia andar a congeminar acerca do tempo perdido, dos azares que teria tido na escola ou na cozinha, se calhar andava ali apenas a espreitar os pombais. Saí do carro, andei em direcção ao pequeno lago dos peixinhos dourados e, sob a folhagem do caramanchão, pus-me a olhar para a encosta do Senhor da Serra. É um verde que podia fazer inveja aos altos de Sintra, não fosse a catacumba à mostra que foram construindo, ano após ano, em betão, ferro e asfalto na esquadria de colinas, entre burros mansos, velhas cascatas e moinhos aéreos. E ela ali a passar por mim, ditando perfumes e pegadas invisíveis, como quem não quer a coisa, meio errante meio princesa, talvez reconhecendo-me por causa do nosso primeiro contacto, há alguns dias; ou talvez não indo além do vulto ou do fantasma que eu seria a seus olhos, mas, eis que num repente próprio da gentileza de Belas, me disse boa tarde. Depois, repetiu-o e sorriu. Correspondi ao cumprimento como pude e regressei ao táxi, visivelmente perturbado, para depois a perseguir com os meus olhos, qual ávido voyeur e aventureiro de débeis certezas e mil alarmes secretos. Ela seguiu pela Avenida da Marinha e virou logo à esquerda, junto ao Restaurante do Faria, decerto pela Cândido dos Reis. Desapareceria por essa esquina como um espectro sem corpo e eu, com os olhos apontados e fixos nos pombais, aquelas caixas azuis claras com porta, janela e telhado, pregadas ao cimo do tronco dos plátanos, para onde Leonor olhava - ou seria afinal para as nuvens? - E eu esboçando a desordem, chamemos-lhe o encontro fortuito, mas mesmo assim muito desejado.
Foi um dia cheio de serviço, um dia ofegante, apesar do ir e vir rápido entre camionetas e motorizadas através destas ruas apertadas e cheias de ruído; buracos sem aviso resgatados por avejões de impermeável amarelo e laranja a colocarem fibra óptica debaixo do chão; ultrapassagens suicidárias em vielas e estradas de arrabalde; enfim, cargas e descargas de fofos e marmeladas de Belas e ainda autênticos comboios de TIRs cheios de mármore siciliano e calipolense de Pêro Pinheiro. Um dia ofegante por fora e por dentro que mais me fez lembrar, confesso, o caricato roubo de uma motorizada e o caminho intempestivo em direcção ao Cabo da Roca, naquela noite. Tinha acabado o primeiro tiroteio da minha vida, era ainda o Caim de meu nome lúgubre, e eu mortinho, completamente defunto, a ser carregado para a casa mortuária e a ser velado, quem sabe se por alguma das polacas ou russas, talvez até pela mãe do Porfírio. Um dia ofegante como esse em que ao mesmo tempo que me reconduziam - é o termo - aos Prazeres, eu aparecia ou reaparecia vivo, vivíssimo, em pessoa, deitado sobre uma motorizada roubada, a alta velocidade e a caminho do Cabo da Roca. Que vista de mar, aquela, tingida por uma espécie de filtro avermelhado, qual aurora boreal espelhando-se de um lado ao outro do horizonte, sobre as águas agitadas, rochas, cais imaginários, atalhos térreos e miradouros centenários; era uma autêntica visão filtrada pela vermelhidão do ar que coava a humidade suave dos faróis, que se reflectia no fragor e murmúrio das ondas, e que ainda caldeava as nuvens baixas desse Inverno.
No ar, é denso o fumo das castanhas. Terá garras ou talvez não. E... se as tem, encobre-as sem qualquer mansidão por sob a imensa sujidade de carvão que lhe mancha a pele, a aura e a deslumbrante expressão de uma saudade adiada. Às vezes, num repente assustador, ergue-se, voa, levanta-se, parece o verdadeiro génio da garrafa de Aladino que corre atrás de um eléctrico, ou então, serenamente, fica a olhar em frente para a fresca limpidez da montra da sapataria. Ou será uma retrosaria, uma pastelaria, um negócio decadente de fotocópias e atacadores? Tanto faz.
Nesta misteriosa Rua da Boavista de Lisboa, onde as fachadas se adensam de breu e as luzes amareladas e foscas iludem a mansidão nocturna, ele anda para trás e para a frente e, neste vaivém constante, arrasta o corpo globuloso como se fosse um imenso cilindro de metal, mãos sob a imensa capa feita de jornal, pano-cru, ou tela baça de corcel perdido. Apesar de lúgubre, cavernoso e sem piedade alguma nos gestos, mesmo para o rude sabor de inesperadas alcateias, é certo e sabido que traz sempre consigo o enorme e já famoso maço de folhas escritas. Por isso lhe chamam o Isaías.
De manhã à noite, escreve, rabisca, desenha sobre papel de embrulho, blocos de almaço, cartolina de caixa de chapéus ou sapatos. A letra é larga, redonda, cheia de folgas e rebentos, prolonga-se em traços obtusos, oblíquos e finos que esquecem as linhas, os rumos do olhar, a ordem. Dizem que, um dia, ele deu em maluco por ter perdido os mandamentos divinos que lhe haviam sido comunicados por instâncias do limbo. Todas as madrugadas, apesar dos traumas e da vida que leva, Isaías lê tudo o que escreveu no dia anterior com uma ansiedade que o atira de novo, rejuvenescido, para o cais entretanto molhado pelo encantamento do sol que volta a nascer. Dia após dia, até que, de novo, se senta no poial de pedra vulcânica, diante do quiosque onde os jornais, líquidos de gracejo e de tinta, já luzem diante de mil e um transeuntes. Assim costuma estar, descansado como um felino em suspenso, até àquele dia em que viu passar um táxi na Rua Nova do Carvalho.
Tem garras ou talvez não, dizem as más-línguas. Há mesmo quem o tenha visto miar, ou rugir como lince selvagem e depois espreguiçar-se por sob o nastro metálico da ponte, ali para os lados da amena Cruz de Alcântara da sua criação. Há mesmo quem o tenha visto trepar pelos mastros de um navio tailandês, carregado de tigres de papelão e audazes nautas do fim do mundo. Há quem diga, pelo perfil, que é a reencarnação exacta do poeta. Talvez de Tolentino, Elísio, Nobre, Chiado ou até Cesário. Há quem segrede que dantes adorava bifes com grãos de pimenta verde. E é verdade que, na primeira Terça-feira de cada mês, um senhor alto e magro, antigo padre no Loreto, lhe paga um desses bifes em Santos-o-Velho.
Depois, depois... pouco fala e raros são os sinais que volta a dar de si aos outros. Todos os dias desce a D. Carlos e senta-se no velho poial da Boavista. Escreve, escreve e escreve. Persegue eléctricos, percorre o cerrado das noites e revê sempre o sol nascente, após a reescrita de toda a bainha do universo. Dizem que já foi rei de Portugal, fadista e grão-mestre em Malta. Mas, agora, francamente, está cansado da vida mais pueril; nada sabe do milénio, da SIC, de Timor; convenhamos que fuma Definitivos e adula a curta asa dos pombos, no momento em que deposita um olhar lívido de morte sobre a árvore gigante que existe no Largo do Conde Barão. E ali terá ficado, para sempre, de lápis na mão e a olhar para mim, como se quisesse, já sem resistência, esconder as garras, o medo, a semente inaudita ou a loucura mais sadia que Lisboa tem.
Até àquele sábado em que viu passar um descuidado táxi na Rua Nova do Carvalho.
Nunca soube por que raio tive que ir a Lisboa nesse dia, mas o médico, sempre tão prestável com as minhas gripes e males reumáticos nas pernas, não é pessoa a quem se possa dizer que não. Para além do mais, também me fui habituando a sentar à sua mesa, todos os dias ao meio-dia, já que a moda do chá de limão era muito glosada, assim como, entre a gralha das conversas das senhoras, o meu silêncio se tornava também cúmplice da muito estima que sentiam por mim. Não fosse o diabo tecê-las e eu tivesse que conduzi-las a Lisboa ao Santa Maria ou ao Telhal, é coisa que nunca se sabe. De qualquer modo, ao ter passado fugazmente pela capital, adorei cruzar todas aquelas ruas onde não voltava há tanto, tanto tempo. Não fosse eu Adão, Caim e agora Abel, tudo ao mesmo tempo, e era caso para dizer, de dentes à mostra e sorriso folgado de verdadeiro júbilo, - foi mesmo coisa de outra vida! Por outro lado, diga-se que estou já tão longe daquela Lisboa onde, a cada esquina e por trás de cada cortina, pode de facto habitar um dos herdeiros dos Coimbras, o Correia e, se calhar, a máfia do Barça à procura ainda do defunto e velho Caim!
Quando, já descontraído e mais leve do que o normal, voltei a Belas, antes de estacionar o carro na praça, vi-a a atravessar o jardim do coreto, deambulando em frente do cinema velho, a Leonor. Devia andar a congeminar acerca do tempo perdido, dos azares que teria tido na escola ou na cozinha, se calhar andava ali apenas a espreitar os pombais. Saí do carro, andei em direcção ao pequeno lago dos peixinhos dourados e, sob a folhagem do caramanchão, pus-me a olhar para a encosta do Senhor da Serra. É um verde que podia fazer inveja aos altos de Sintra, não fosse a catacumba à mostra que foram construindo, ano após ano, em betão, ferro e asfalto na esquadria de colinas, entre burros mansos, velhas cascatas e moinhos aéreos. E ela ali a passar por mim, ditando perfumes e pegadas invisíveis, como quem não quer a coisa, meio errante meio princesa, talvez reconhecendo-me por causa do nosso primeiro contacto, há alguns dias; ou talvez não indo além do vulto ou do fantasma que eu seria a seus olhos, mas, eis que num repente próprio da gentileza de Belas, me disse boa tarde. Depois, repetiu-o e sorriu. Correspondi ao cumprimento como pude e regressei ao táxi, visivelmente perturbado, para depois a perseguir com os meus olhos, qual ávido voyeur e aventureiro de débeis certezas e mil alarmes secretos. Ela seguiu pela Avenida da Marinha e virou logo à esquerda, junto ao Restaurante do Faria, decerto pela Cândido dos Reis. Desapareceria por essa esquina como um espectro sem corpo e eu, com os olhos apontados e fixos nos pombais, aquelas caixas azuis claras com porta, janela e telhado, pregadas ao cimo do tronco dos plátanos, para onde Leonor olhava - ou seria afinal para as nuvens? - E eu esboçando a desordem, chamemos-lhe o encontro fortuito, mas mesmo assim muito desejado.
Foi um dia cheio de serviço, um dia ofegante, apesar do ir e vir rápido entre camionetas e motorizadas através destas ruas apertadas e cheias de ruído; buracos sem aviso resgatados por avejões de impermeável amarelo e laranja a colocarem fibra óptica debaixo do chão; ultrapassagens suicidárias em vielas e estradas de arrabalde; enfim, cargas e descargas de fofos e marmeladas de Belas e ainda autênticos comboios de TIRs cheios de mármore siciliano e calipolense de Pêro Pinheiro. Um dia ofegante por fora e por dentro que mais me fez lembrar, confesso, o caricato roubo de uma motorizada e o caminho intempestivo em direcção ao Cabo da Roca, naquela noite. Tinha acabado o primeiro tiroteio da minha vida, era ainda o Caim de meu nome lúgubre, e eu mortinho, completamente defunto, a ser carregado para a casa mortuária e a ser velado, quem sabe se por alguma das polacas ou russas, talvez até pela mãe do Porfírio. Um dia ofegante como esse em que ao mesmo tempo que me reconduziam - é o termo - aos Prazeres, eu aparecia ou reaparecia vivo, vivíssimo, em pessoa, deitado sobre uma motorizada roubada, a alta velocidade e a caminho do Cabo da Roca. Que vista de mar, aquela, tingida por uma espécie de filtro avermelhado, qual aurora boreal espelhando-se de um lado ao outro do horizonte, sobre as águas agitadas, rochas, cais imaginários, atalhos térreos e miradouros centenários; era uma autêntica visão filtrada pela vermelhidão do ar que coava a humidade suave dos faróis, que se reflectia no fragor e murmúrio das ondas, e que ainda caldeava as nuvens baixas desse Inverno.
Foi de facto um dia ofegante, esse em que me reencontrei com Leonor, face a face.