sábado, 12 de novembro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 29
Terceira Parte – O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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No ar, o terrível cheiro a alfazema pôs-me subitamente a descoberto, mas nem sei sinceramente face a quem, ou a quê. No meio deste cenário de areias e súbito deslumbre das aves na praia vazia, a verdade é que o candeeiro de vidro esbranquiçado ainda detinha, apesar de tudo, a sua velha imobilidade e carácter. Levantava-se como uma planta esguia no cimo do caule metálico já algo carcomido pela humidade do oceano. Há tantos anos que tudo se passou. Fosse como fosse, este mar é e sempre foi bravo, destemido, cheio de ondas altas, repetidas, seguidas, rebentando em espuma de cor verde ou estelar, ao longo de mais de cem metros; rebentando em espumas iradas e revoltas, num alarido de fustigação de rochas, algares e concavidades abertas pelas antigas piscinas de boa memória.
Nestas terras ao norte do Cabo da Roca, os casinos foram morrendo a pouco e pouco e as casas de habitação tornaram-se refúgios de uma guerra talvez perdida, sem vivalma ou vestígio balnear ou outro. Sobra um casal alemão e, do outro lado, uns três reformados a vaguearem entre o antigo quiosque e o único restaurante de peixe agora aberto. As nuvens fundem-se com a poderosa aura oceânica e ditam a solidão do longo Inverno que aqui parece ter ancorado de vez. Olho subitamente para baixo e revejo o semi-círculo murado onde ainda se resguarda o antiquíssimo carrossel. São os mesmos quatro cavalinhos a preto e branco que andam sempre à volta. E quando o vento agora os torna a empurrar, ouve-se aquele rugido ou fragor muito fino que me faz lembrar os miúdos de bibe e a cara dela, esbelta e agitada, como que a tentar, de algum modo, impor disciplina, respeito, sensaborias.
Lembro-me que o eléctrico partia muito cedo de Sintra e que, ao longo da bela e impetuosa descida, eu via os plátanos recurvados sobre os vales, os azulejos da cooperativa de Colares, os pinheiros cerrados, as mélias, e, depois, no final, à direita, a gare minúscula da Praia das Maçãs. Ainda lá está essa estação de fadas com porta ateada às minúsculas janelas, rodapé azul e telhal abraçando horizontes de cal e os quatro globos das esquinas. Era uma espécie de cuba árabe sem cúpula. Chegava sempre cedo e cedo corria até à ordenada floresta de cactos de flor vermelha, por trás dos quais se adivinhavam as ondas e, mais em cima, a varanda recortada pelas piscinas naturais. E ela, sempre ela.
Foi talvez há quarenta anos e eu teria os meus catorze ou quinze. Punha-me em cima do muro, abismado pela paixão, espreitava e via os três gaiatos acabadinhos de chegar, ainda de camisola e sandálias por descalçar. Estava ali em cima do muro, sem idade, como agora encostado à parte de trás do meu solitário táxi. Arrumavam depois a um canto os baldes de borracha, as inúteis pás, sacos de revistas; toalhas de várias cores e uma bola azulada que quase sempre deixavam cair no areal. Ela trazia um chapéu de sarja que é um algodão forte e macio da mesma cor que o roupão turco, atado por um cinto que lhe fazia sobressair as linhas, a ondulação delicada do corpo. Quando se despia, nesse momento em que estou ainda e agora a espreitar, o fato de banho logo surgia a condizer, brilhante, diluindo-se na neblina com que esta praia esconde os raios solares e o frémito violento das suas vagas.
Do outro lado da Praia das Maçãs - diziam os raros pescadores que Eva, em fuga, tinha aqui deixado a maçã ingloriamente roubada no paraíso -, no morro mais elevado e escarpado, uma casa de rés-do-chão continua a sinalizar este mistério da nostalgia do Verão. Olho para lá agora do mesmo modo que, nesses tempos recônditos, aí descansava o olhar antes de ganhar coragem para descer. Quase sempre, era ela quem me via nas escadinhas e, atenta, mandava-me suspender a marcha com a palma da mão. Depois entretinha os garotos, acariciava-os e acorria até ao pé de mim; vinha sempre com aquele ar de quem se quer livrar da vida arrumada que o trabalho, um dia, impôs. Dizia-me com as palavras entornadas em sorriso - Olha, vamos a Sintra. Ao menos, estamos juntos durante a viagem de ida e volta. Não podemos parar a meio, pois os miúdos são pequenos e tenho que os levar para casa à hora de almoço. Não, hoje a mãe deles e as tias foram para Lisboa, estou sozinha. Vamos?
Contrafeitos e em fila pouco indiana, os miúdos seguiam à nossa frente na direcção do quiosque. Antes de chegarmos à gare, cheios de expectativas e silêncios, o homem das batatas fritas e o dos gelados Olá e Rajá hipnotizavam a garotada, um simples escudo bastava. Para trás, ficaria a água a crescer na boca, a vista das areias escuras, cor de salmão, talvez de limbo, onde corriam banheiros entre toldos armados ao vento e algumas barracas na retaguarda, de lona insistentemente branca e de tédio. O eléctrico retirava-nos subitamente desta história arrastada e atirava-nos para o intolerável coração do olhar com que nos dávamos e guardávamos, um ao outro; face a face, ante a mornidão do ar que, pelas janelas e portas abertas, nos embatia no rosto, na admiração, no mar silencioso de afazeres a esbater-se nas pontas do chapéu de sarja e nas folgas do roupão que Leonor tentava prender com os dedos. Tentava, mas não conseguia e assim passavam por nós, aquietos, eucaliptos reclinados, choupos em linha, arbustos acamados, pinheiros bravos e mansos, moradias cor de barro, moinhos perdidos e, junto ao céu, o castelo dos mouros e um palácio majestoso do ignorado rei artista, de seu nome Fernando.
Ao chegar a Sintra, mudávamos de linha e voltávamos a descer. Perto do quiosque da Praia das Maçãs, despedíamo-nos sem grandes marcações e, de imediato, eu ia sentar-me nas rochas ao pé do mar ou subia ao morro oposto ao da povoação. Tinha os meus amigos e porventura uma escassa colheita de passatempos para desfrutar, mas preferia descobrir motivos de interesse nos sortilégios que me rodeavam: fazia das manchas na rocha um mapa de cidades, das algas a baterem em mínimas crateras cenas de naufrágio e salva-vidas, das escaladas ao desfiladeiro a sul da praia subidas pelo Everest. A avó Maria Alba que tinha visões dizia que eu estava talhado para coisas fora do comum. Via-me a tocar realejo sobre as nuvens em países longínquos, via-me de foguetão entre o céu e a terra, via-me a atravessar o mar com as minhas próprias braçadas. E eu acreditava naquilo e corria por estes areais pedregosos e observava a natureza, os sinais marcados nas mós abandonadas, os gestos imprevistos dos homens e sobretudo a vista desabrida do mais alto dos penhascos. Era assim a minha vida até que a paixão, nesse prolongado estio, me bateu à porta. Era a primeira vez e viera com força. Era, de facto, um verdadeiro enxame percorrendo-me o esófago, a laringe, os músculos das pernas. A náusea.
Nunca falava disto com ninguém, nem mesmo em Lisboa para onde regressava antes do sol se pôr. De repente, via-me mais discreto, mais parado que o normal, sem vontade de comunicar com os rapazes da minha Rua da Junqueira. Comecei mesmo a desconfiar que a avó Maria Alba podia ter razão, já que descobria neste meu estado sintomas de alguém que estava verdadeiramente talhado para coisas fora do comum. Deixei de brincar com barquinhos e carros de papel, deixei de dar as minhas corridas até aos jardins de Belém, deixei-me de futebóis com os de Alcântara e de Santa Cruz. Agora só queria era ir para o Rossio apanhar o comboio, duas a três vezes por semana, pois o dinheiro não dava para mais. A minha mãe Marieva estranhava, mas, quando estendia a roupa e vinha à janela, olhava-me com aquele versado olho de atalaia de quem percebe e simultaneamente teme o que vê.
Conhecera Leonor na estrada das Azenhas do Mar, entre as casas de pedra e vidro que olham ávidas o mar e os miradouros selvagens que caem sobre a magnífica rebentação. Tudo se passou num final de Julho, quando, ao longo desse declive de maresia e iodo, eu corri, uma vez, atrás dela e dos miúdos com a bola na mão. Ao fim e ao cabo, salvara a bola e o esquecimento que não me pertenciam. Devo confessar que, na altura, pensei que ela era a mãe dos gaiatos e não uma estudante - como eu - que uma família endinheirada encarregara de tratar dos filhos. Vi que ela se ria para mim, ou de mim? O riso, no entanto, manteve-se em Agosto. E em Setembro. Deixei de aparecer ao pé da casa e passei a marcar a piscina ou a zona das barracas como lugar de encontro. As viagens a Sintra e algumas raras escapadelas eram o mel perfeito desses dias longínquos. O diabo e o verdadeiro inferno, durante esses dias de ouro, confundiam-se com os miúdos e pouco mais. Diga-se a verdade.
Hoje, tanto tempo depois, aqui estou ao fim de uma tarde de Fevereiro, perto da minha nova terra, a olhar para o mar. Por que assombro ou maldição se repete a vida dentro da vida? Uma após outra, eclipsando-se, elas sucedem-se; umas nas outras, desocultando-se, elas trazem-nos ao olhar os mesmos casos e sombras.
Assim pensava o taxista Abel, uns dois anos depois dos acontecimentos da Gago Coutinho.