sexta-feira, 4 de novembro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 21
Segunda Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Porto Brandão parece uma daquelas terras de Cabo Verde que olham para o mar com a lenta consolação da saudade e com a esperançada perdição do encanto. Contudo, o pequeno porto belo, situado ente ravinas, canaviais e petiscagens clandestinas, olha de frente para Lisboa, cabisbaixo e lento na sua arrumação, mas com o tédio e a delonga de quem assentou praça para conter ou até parar o tempo. Eis, pois, o local mais indicado para uma pequena casa alugada, numas das ruelas que vão dar à praça e de onde se avistam apenas, ou barcos cacilheiros que vêm e vão para Belém ou para a Trafaria, ou as tais esplanadas improvisadas para casais extemporâneos e ocasionais. Durante a noite, o rio tem a cor da tinta-da-china e nem a proximidade dos silos gigantes, dos galeões do petróleo e da própria ponte alada por fios de aço retiram a Porto Brandão a docilidade e a paz de espírito, condimentos ideais para dar livre pousada a duas polacas e uma russa que, bem alimentadas e tratadinhas, foram, desde o primeiro momento, o furão perfeito para o debutar do mais antigo e fértil negócio do planeta.
Quando, após um mês de labor e contactos discretos, Sara aportou em Lisboa, uma segunda casa filial acabava de ser estreada e alugada nos baixos da Rua das Flores. Passado mais um mês e três dias, pode dizer-se que a rotação entre Tejo e Catalunha se tornou perfeita, rotineira e sobretudo muito lucrativa. Caim recolhia o dinheiro e marcava os sucessivos voos para as meninas, fosse da Portela, Faro ou Sevilha, enquanto Sara, ou fazia lobby clássico e prático no Fenta, Capa e Fitz, ou marcava agenda para renovados contactos e encontros no estrangeiro. Às Segundas-feiras, patrões e empregadas descansam à japonesa, ou seja no estado da mais pura colegialidade, e passavam fins-de-semana em Sintra, Évora, Covilhã, Galiza e até uma vez nos Açores. Durante quase um ano, os dinheiros nunca faltaram, Sara e Caim mantiveram o seu fôlego sexual record e, por fim, as promessas de ouro sobre azul tinham-se concretizado perante uma certa admiração das meninas. Lisboa era um mercado por explorar, aparentemente sem concorrências à altura, pensava Caim.
Durante o dia, o antigo Adão atravessava a zona do Cais do Sodré até ao Campo das Cebolas, perto aliás da casa do reservado contabilista, e ostentava óculos escuros de grande porte, sempre de marca, para além de camisas razoavelmente abertas que permitissem avistar um rabisco por mais pequeno que fosse da tatuagem lilás. Caim familiarizara-se também com as figuras típicas da zona - vendedores de jornais, o dono da loja de animais do Mercado da Ribeira; marginais-poetas como o famoso Isaías, sapateiros ou arrumadores bósnios; quando não do próprio vale da Avenida de Ceuta e de Alcântara -, mas prezava sempre em não misturar, de forma nenhuma, aquilo que era com o trato normal de rua. Até porque a clientela das meio secretas Tágides de Ulisses era gente de nomeada, pelo menos na carteira, não tanto no nome. Portugal já não é - nem nunca foi - o que era. De qualquer modo, país adiado, suspenso na foz suave do Tejo - abismada e amaldiçoada pelas colinas da capital - Portugal parecia ser, no entanto, a terra ideal para este filão empresarial sem par.
Até que numa bela Quinta-feira, durante a noite, quando regressava de Porto Brandão a Lisboa, dois carros impediram a passagem a Caim na descida para a Rotunda de Alcântara. Depois de se identificar como polícia, um dos homens obrigou Caim a entrar na maior das viaturas que bloqueavam a via, enquanto outro, com destreza, derramou gasolina debaixo do carro assaltado. Após o arranque a toda a velocidade, sentado entre desconhecidos que deveriam ser tudo menos polícias, Caim ainda conseguiu ver o clarão do portentoso incêndio que atrás se levantou. De seguida, as duas viaturas seguiram apressadamente para Monsanto e só viriam a parar atrás de um morro de difícil acesso. Aí, mãos rápidas despiram Caim dos pés à cabeça e, depois de um festival de socos e de pontapés sem pré-aviso, encostaram o pobre do antigo Adão ao tronco de um pinheiro. Foi então que por trás apareceu alguém que não se deixou ver e disse:
- Olha lá, ó chulo dum cabrão, vim no outro carro e é por isso que não puseste a vista em mim (risos). Nem me vais ver agora, ou quem pensas tu que és? (ao aceno feito pela cabeça, mais três murros e um ponta pé lhe foram dados, no rosto e no baço). Bom, agora já mais constipado que outra coisa (risos, gargalhadas) e, portanto, como se fosse uma aspirina, ó meu, vais ouvir o que eu te tenho a dizer e... é assim: ou cumpres, ou, na próxima, és um homem morto (simulou que ia ordenar nova revoada de murros, mas a ordem acabou por não ter efeito; Caim, de costas, desfeito em sangue, cabeça caída, esperou pelo pior, mas, desta feita, foi poupado; passada a ostensiva simulação, o chefe-mor continuou). Bem, a gente sabe tudo, como podes imaginar. Sou um dos chefes da polícia, meu grande cabrão, e, por isso mesmo, estou ligado aos Garcias e sobretudo aos Coimbras; nunca ouviste falar? Responde? (Ao silêncio de Caim, o dito chefe ordenou com um simples aceno de testa e, desta vez, Caim quase caiu ao chão, tal foi a pancadaria que sobre ele se abateu) - Não sabes, não é? Mas olha, os Coimbras e os Garcias dominam as putas finas e se quiseres trabalhar à vontade tens que passar a pagar uns trinta por cento com retroactivos, mais a licença que são três mil contos só aqui para mim. Até Quarta-feira que vem. Antes de partirem, o chefe deu um imenso pontapé nas costas de Caim e advertiu: - Aqui não se deu nada, entendes? Passas a pagar na Rua da Misericórdia. Tens aí nesse envelope o resto. Ciao bambino! Se eu soubesse dizer em Russo também te dizia adeus em Russo, ou em Búlgaro ou o caralho que te foda! Mas nunca em Espanhol, estás-me a ouvir ó idiota de merda? (Risos). Com uma rapidez lancinante, as duas viaturas desapareceram.

Foi dos piores dias da minha vida, podem crer, disse Abel revendo e revivendo o que, na altura, se havia passado. Ainda parece que sinto dores no baço e nas pernas, só de me lembrar disto tudo. Isabel, com um ar de desencanto e piedade quase infantil, inquiriu: - Mas como é que conseguiu voltar para casa? - Foi só no dia seguinte. Há momentos na vida de inexplicável resistência, sabes? Eu tinha umas costelas partidas, um osso deslocado no braço esquerdo e estava ainda empapado em feridas e manchas por todo o lado. No entanto, após umas horas, lá consegui disfarçar o mínimo possível e arrastei-me até à Avenida de Ceuta onde convenci um taxista que tinha dado uma enorme queda em casa de um amigo meu. Levou-me logo para a Rua das Flores e foram até as meninas quem chamou o médico que, por sua vez, me atou o tronco e me compôs o resto. Nada do outro mundo, com vês. Contudo, a partir desse dia passámos a pagar ao sistema. - E...o que é o sistema?, ouviu-se dizer na voz musical e fina de Júlia, encostada que estava a Lopamudra de Vidarbha sob o caramanchão metálico do Jardim do Príncipe Real. - O sistema é a mafia; são os que mandam e organizam os negócios à parte de tudo e de todos. Mas, como vêem, a minha segunda vida tinha começado à margem de tudo e de todos e só nesse lugar poderia funcionar. De facto, esta espera, levada a cabo por bandidos e polícias juntos, era, ao fim e ao cabo, a minha própria legalização e aceitação no mundo do risco.
- Sim, é verdade que a Sara se quis ir embora, mas sentiu medo só de pensar em recomeçar o negócio em Barcelona. Passámos, portanto, a pagar e, passado algum tempo, até fui obrigado a confraternizar com os próprios que me tinham batido, quase abatido. Forçado... é o termo, já que, como eles diziam, levavam muito a mal se alguém como eu, após o adequado baptizado - como lhe chamavam - não comparecesse a um almoço de fidelidade e confraternização, até porque agora eu pagava e, portanto, perante eles, cumpria legalmente com os meus deveres. Era uma espécie de vassalagem, mais ou menos isso. O jantar foi em Palmela e pediram-me para levar a minha Stone, nome com que foi logo alcunhada pelo próprio chefe que não apareceu ao jantar, embora fosse o mais citado e omnipresente dos convivas.
A partir desse dia, ainda que aumentássemos os preços e tentássemos todos os expedientes para manter o nosso modo de vida, a verdade é que tivemos que diminuir o número de voos para o estrangeiro e passámos mesmo, às vezes, a ter medo de futuras dificuldades. Por trás da suavidade e brandura portuguesas, a boca aberta do lobo mau tinha-se mostrado e, para além dos guarda-costas que contratámos (ex-polícias e seguranças ainda no activo) e de alguma expectativa mais aziaga, persistimos e continuámos a contar apenas com as nossas próprias forças.
Nessa altura, o senhor Gouveia largou mais uma gargalhada sem sentido, enquanto o deputado de pêra eriçada, o Dr. Altino de Mendonça, deu um breve passo em frente e disse com ar áureo e pretensamente ligeiro: - É tal e qual como na cena bíblica: tomai e comei. Dona Joana, apoiada no corpo da neta, percebeu que a coisa era mais litúrgica do que bíblica, mas nada disse a um tão destacado e incauto representante do povo. Assim são as noites nesse ermo alto das colinas lisboetas, onde desaguam histórias sobre Adão, Caim e Abel.