quarta-feira, 19 de outubro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel - Episódio 5
Primeira Parte: O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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A rua desce agora entre candeeiros de luz amarela, fosca e quase embaciada. Os pés dos altos candeeiros são do mesmo metal obscuro e esverdeado que se havia espalhado no firmamento do jardim da Cruz Vermelha. Sobre a superfície cilíndrica têm embutidas flores de três trevos que se enrodilham do mesmo modo que a memória traduz extravagâncias e deslumbres. Talvez por isso, de modo abrupto, Isabel pare e diga que vê. De repente. Como se estivesse de facto a ver, ou a visionar, com toda a nitidez do fogo arder por si próprio. O pai sorri outra vez e Abel, comprometido com o enigma criado, parece resgatar noutro rosto o seu próprio e admirado embuste.

É como se estivesse a vê-la, disse Isabel.
Abel continua suspenso e atento aos olhos extraordinários de Isabel:

Sim, imaginem que chove muito, muito. Luísa corre a fechar a janela, empurra-a até que consegue deter o fecho, talvez o ferrolho. Escurece lá fora e a criança corre até à sala, é tarde e a televisão está acesa aos gritos diante do vazio. O duche, o quarto, o telefone a tocar. Luísa prepara a comida para amanhã, vai e vem ao quarto, espreita pela janela e chove. Chove sempre. Do outro lado dos vidros, há apenas casas altas de betão e de cor tão desnatada e desmaiada como a sua; em baixo, são exíguas as ruas; confrangedoras e rodopiadas por contentores a transbordar; mais ao largo, são jovens e bichos e jovens a nadar em cavalo e em pó branco e correm, correm sob impermeáveis amarelos, cor de argila e vertigem. E depois, o quarto; fazer a cama, voltar a arrumar os cobertores, os lençóis, as gavetas, a roupa suja, outra vez o pó; é um dia como outro qualquer, são já onze e meia da noite e Luísa muda de canal sempre que passa pela sala com uma cruzeta na mão. Por fim, é o ferro e a saia para amanhã: camiseira, blusa, meias, roupa interior e o despertador. É preciso não esquecer o talão da luz e do gás; as senhas de almoço e o telefone do especialista dos ouvidos para a gaiata.
No quarto, a luz fecha-se a horas, até porque o comboio, amanhã, é às seis e um quarto. O telefone parou de tocar e Luísa enrola-se na cama como se fosse feto, como se fosse nada e chega mesmo a dissolver-se, a diluir-se no eco de uma morte, mas qual? Ali fica, a sós, no escuro, sem saber onde colocar o corpo, a cabeça, os pés, a pele, a boca, os polegares. Vira-se e não dorme, descobre pequenas dores, delírios, mas é já tarde e a vida, quem havia de dizer, começou ontem, ainda era cedo e havia paixão e flores sobre o sofá. Naquela sala de quinze metros quadrados, entre a aparelhagem do Continente e o reposteiro. Entre a lua nova e o adeus.

E agora Abel ?
Filha, de onde te saiu isso tudo, o que dizes tu ?

Junto ao quiosque de Santos-o-Velho, arrumam-se os últimos jornais que falam ainda do morto vivo, enquanto nas montras deslizam manequins ocos, incorpóreos, despidos, alguns mesmo sem cabeça e sem membros. Nas esquinas do bairro, é de futebol que a imaginação tece pequenos prazeres e augúrios. Entramos na pastelaria e Isabel pede um pastel de carne e uma maçã. Por essas e por outras, fomos todos, um dia, expulsos do paraíso. E como é que se chamava a tua mãe, Abel?

Zorba, depois de ouvir a resposta que tem nome de Marieva, como que ficou aturdido e secretamente mudo; calado e a perder o sorriso do Peloponeso. Talvez tenha entendido quase tudo, mas sempre silencioso, sepulcral.

Um dia telefonaram-me do Big Show Bic, adiantou Abel, já sentado diante do compal também de maçã. Foi o princípio de tudo, ou, talvez, o princípio do fim, porque uma ascensão, sobretudo meteórica, é sempre o espectro, ou o espantalho desfigurado de um fim. Seja qual for.

E foi então que Júlia entrou na pastelaria. Abraçam-se as amigas, retoma-se a história, parece que nos conhecemos há tanto tempo! À mesa, desprevenidos, ficam agora sentados os quatro. E Abel a acrescentar que, a certa altura, tinha deixado de ir a casa, aos Seguros, a tudo. Era como se a sua vida fosse atraída para o centro de um remoinho sem saída. Era como se os seus passos se tivessem tornado nos passos da tentação pura, na mais inexplicável das tentações.
Era o catavento da mudança mais inexplicável da vida.

Parece hipnótico o destino, quando Lisboa se torna num segredar íntimo, longe da vista do estuário e da foz que acede aos sete céus líquidos deste universo parado sobre si mesmo. Nessa ascese, nessa fuga delicada; nessa rudeza, às vezes implacável, reside o próprio fado, como se fosse uma ilha cantada, mas inabitada; percorrida, mas sonhada apenas à distância. Um dom ciciante que o olhar transcreve através de um encanto talvez chamado saudade. Através de um baptismo chamado acaso, ventura, risco ou estrela. Que ventura será a minha, se não posso sequer provar a ninguém o que se passou comigo no Jardim da Estrela, naquele dia!?

E Abel abriu os braços e lembrou o momento em que, de vez, a vida começou a mudar. Sem saber ainda porquê e sobretudo sem antever as consequências.

Júlia escutou e só conseguiu responder uns segundos depois.
Que vinha ter com a avó.
Mas antes ainda, tinha já tido tempo para seguir a descrição detalhada das aventuras de Abel, quando este se tornou num artista residente no Big Show Bic.
Que pena! E eu que na altura não o conheci! Era demasiado nova!
Ou não?