sexta-feira, 24 de junho de 2005

Superlativo
e
No poema A Mais Perfeita Imagem de Ana Luísa Amaral, o quotidiano é apenas um pretexto que se convoca sob condição: “Se eu varresse todas as manhãs”, “Se todas as manhãs lavasse estas janelas”, “Se todas as manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os ramos”. Do imponderável cumprimento destas (e doutras) condições dependeria o entendimento de coisas grandes, tais como a “erosão” do tempo ou a “saudade”.
Há, de facto, coisas que se lêem para subir ao céu na terra:
o
Se eu varresse todas as manhãs as pequenas
agulhas que caem deste arbusto e o chão que
lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para
o que me levou a desamar-te. Se todas as manhãs
lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além
do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparência
que o nada representa, veria que o arbusto não passa
de um inferno, ausente o decassílabo da chama.
Se todas as manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os
ramos, também a entendia, a essa imperfeição
de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes
desarma geometria. E a cor. Mesmo se agora visse
este poema em tom de conclusão, notaria como o seu
verso cresce, sem rimar, numa prosódia incerta e
descontínua que foge ao meu comum. O devagar do
vento, a erosão. Veria que a saudade pertence a outra
teia de outro tempo, não é daqui, mas se emprestou
a um neurónio meu, uma memória que teima ainda
uma qualquer beleza; o fogo de uma pira funerária.
A mais perfeita imagem da arte. E do adeus.

(A Arte de ser tigre, Gótica, Lisboa, 2003)