sexta-feira, 27 de maio de 2005

O OLHO DO JAVALI
Folhetim em doze episódios
DÉCIMO EPISÓDIO
(O mar de escuridão)
e
(Tal como na semana passada, o folhetim volta a ser publicado na próxima segunda-feira)

Rui e Maia estão ainda de pé, no parque de estacionamento, em frente ao automóvel fechado. Cada um com a sua chave na mão.

Quando Maia coloca o ramo de balsamitas sobre o tejadilho, o alarme dispara. Rui, de imediato, fecha e abre o carro com o controlo remoto, num gesto repentino, rápido, para que o alarido da sirene se silencie. Maia olha nos olhos de Rui, paralisada. E fez-se então luz. Sem palavras, Maia dá a volta à risca amarelada, em forma de rectângulo imperfeito, e entra no lugar do morto. Como que petrificado, Rui senta-se ao lado e põe o carro em movimento. Já saem da cidade em alta velocidade, rua após rua, como se o arrependimento pudesse, naquele momento ímpar, ser a larva mais desventurada que impedisse a inusitada aventura que já estava em marcha. E a serra surgiu como o destino viável, fiável, tendo-se a escolha, ou o livre e espontâneo curso do volante, antecipado ao arbítrio acordado, isto é, à decisão. Era como se o destino acordasse com a viagem, era como se o destino acordasse para a viagem.

Até à derradeira falésia.

São quase oito da noite, os últimos raios de sol a espalharem-se pela esfera líquida dos ares. A penumbra da via láctea a emergir do nada. Os uivos ao longe. Os raros ramos das últimas árvores estriados pelas audaciosas brisas. As curvas e contracurvas até ao augurado mirante proibido. As bermas de terra vermelha, sanguínea. As unhas de Maia como se estivessem espetadas no ramo de balsamitas, os dedos de Rui a apertarem-se cada vez mais sobre os joelhos. Os cintos de segurança como aros de um fim do mundo em movimento. E toda a história ainda por contar.
Que Maia havia sido, de facto, a verdadeira inventora da vacina contra a hepatite e contra a sida e que ninguém o sabia, nem podia saber. Que Rui era, afinal, um antigo advogado do conhecido professor Romeu e que, nem Maia, nem grande parte do planeta o sabiam, nem podiam sequer vir a saber. E, no entanto, persistia, entre ambos, entre Rui e Maia, aquela evidência íntima do olhar que deixava transparecer, na hora da verdade, uma espécie de pacto, ou de arrojada, imprevista e mútua confiança. E o motor a soluçar, a acusar o desgaste, a retemperar toda a fadiga de tanta e tanta subida. Faltam dois minutos para as oito da noite e, da penumbra, adveio um mar de escuridão, aqui e ali mais ou menos adensada, conforme a exposição ou o recolhimento das sucessivas encostas.

Próximo Episódio: “Vejo-o agora sentado na nuvem azulada do fundo, entre dois lampadários feitos de semente e caules de balsamita. Um verdadeiro dom, esse encontro, esse magno prazer de ter existido na escalada da grande montanha, da desmesurada falésia.”