segunda-feira, 23 de maio de 2005

O OLHO DO JAVALI
Folhetim em doze episódios
SEXTO EPISÓDIO
(A memória a aclarar-se)

Sete e meia da tarde e o sol a pôr-se nos píncaros mais altos. Sobre o empedrado antiquíssimo, o carro segue, calcorreia caminhos, sempre a manobrar entre bermas estreitas e a deslizar, quilómetro após quilómetro, ao longo da inclinação da colina, pela ladeira ascendente, pelas sucessivas curvas cheias de marcos e ciprestes que se elevam sobre o denso emaranhado de nuvens já a obstruírem e a taparem o fundo do vale e das várzeas, onde a vida saberá a água-férrea, a caules de salmanita e a minério profundo do tártaro. Aqui, nas alturas, próximos do céu cada vez mais azul escuro, verdadeiro vestíbulo para o descanso dos deuses, a vida sabe a ar fino, a rocha magmática, resistente, roliça e, sobretudo, a vida adquire o sabor e o saber que são próprios da maior ventura dos mortais: a imaginação. Talvez por isso, Maia não tenha ainda esquecido o início da conversa:

- Voltemos ao Professor Romeu. Quando é que, afinal, o conheceu ? - e Rui esboçou um calafrio, esqueceu involuntariamente o cotovelo no assento e pôs-se, depois, a pensar durante uma infinidade:
- Foi ele quem me vendeu o carro. Foi só nessa altura que o conheci.
- Mas como ?
- Sabe, ele era amigo de um colega meu de escritório. E esse amigo é que me disse que conhecia alguém que queria trocar de carro. Era mesmo o que eu queria, isto é, um carro bom, com poucos quilómetros, quase novo, e por um preço muito razoável. Portanto, só conheci esse senhor do sobretudo, quando tratei com ele da papelada.
- E quando é que foi isso ?
- Anteontem.
- A que horas ?
- Deixe ver, eram umas duas da tarde. Lembro-me até que tive que almoçar mais cedo.
- Só não percebo por que raio é que ele me passou as chaves do carro, do mesmíssimo carro, para as mãos !


Próximo Episódio: “No cabo do espanto, no momento em que Rui levantou os olhos para a ponta da cumeada, para o extremo aguçado dos granitos já em ebulição de noite, uma enorme ave de rapina apareceu a sobrevoar.”