terça-feira, 17 de maio de 2005

O OLHO DO JAVALI
Folhetim em doze episódios
SEGUNDO EPISÓDIO
(A salvação perpétua)

Do outro lado da praça, Maia parou diante do homem que tinha um ovo gigante sob a camisa desfraldada e ao vento. Arrepiou-se diante daquela boca aberta que parecia uma gruta rochosa, interrompida por uns três arpões de visível cárie. À volta, subido o pano naquele rosto de Breughel, esvoaçava um sorriso próprio dos santos. Desses que subiram ao céu e vestiram, há muito, o cetim esbranquiçado da salvação perpétua. A pele macerada, os lábios recortados em gôndola, os olhos talvez paralisados e a pausa, a imensa pausa entre sibilantes a complicar o insistente apelo: - "São só dois euros, minha senhora, são só dois euros. Compre este raminho de balsamita que é o maior tónico do mundo contra os soluços, contra o mal dos nervos, contra o mau olhado, contra tudo". E Maia, sem sequer saber por que é que havia parado naquela barraca sem tecto, naquele entreposto de vazios e, depois, a ver-se, sem mais, com a carteira na mão e com o raminho da hortelã-francesa a descer-lhe pela linha da vida, um pouco suada, desvanecida, talvez admirada.
E assim seguiu Maia, sobre saltos altos e finos, a ondular as ancas com prontidão e elegância, atenta às horas e ao olhar grave da mulher-polícia das sardas que não pára de sussurrar junto ao rádio portátil que traz consigo. Seguiu-se a passadeira, uma mancha de insectos e as nuvens em forma de cetáceos. A grande parada. E foi aí, nesse intervalo do mundo, que Maia se lembrou da viagem de amanhã. Às nove da manhã, partida para o aeroporto e... que bom que vai ser, dez dias em Nova Iorque sem fazer nada. Maia com os olhos pousados no reflexo de luz que a grande roda da feira popular embala. Luzes de Chagall a recurvar, a arquear, a rodopiar a claridade que mal deixa perceber o verde vago que, de novo, se entreabre.
E os passos outra vez a atropelarem-se num veemente caos, na súbita voragem, mal o semáforo se anunciou à humanidade. Param motos, autocarros, arcanjos de todos os tipos e sobretudo táxis. Tudo pára nesta minúscula hora de encantos urbanos e a cidade como que passa a cheirar a uma espécie de mistura de sândalo, alecrim e borracha queimada. É ver a astúcia de Maia a aspirar e saborear o ar e a abrir a mala com todo o cuidado e recato do planeta. Retira de dentro a chave do carro e caminha agora mais decididamente para a esquina, com o ramo de balsamitas preso entre unhas vermelhas, sanguíneas. É o ditame, a lei quotidiana. Entra depois no parque, paga na cabina a manhã inteira de estacionamento e dirige-se na direcção do automóvel.
E agora, como é que Maia vai explicar o que está a prestes a acontecer-lhe?


Próximo Episódio: (Olhe que eu sou uma pessoa de bem e detesto algazarras ! - Olhe, que eu não gosto de brincadeiras e muito menos a estas horas.)