quinta-feira, 5 de maio de 2005
"(...) o Abrupto é o “jornal” que, desde que me conheço, gostaria de ter tido, parte da minha voz. Não a minha voz, mas parte da minha voz. Feita do ruído do mundo, do meu ruído, da fala incessante, dos quadros, dos versos, da música, das palavras, que nos faz o que somos. O Abrupto é sobre isso, o Abrupto é isso."
Tenho reflectido, às vezes, acerca da pluralidade de motivos que leva muito boa gente a alimentar desconfianças face ao Abrupto. Alinhá-los-ia do seguinte modo:
1-JPP escreve declaradamente para atmosfera e não para a blogosfera. E faz JPP muito bem. Uma das piores tendências da blogosfera é a forma latente de corporação que se evidencia aqui e ali. Há sintomas claros desse facto e, há poucos dias, alertei nesse sentido no meu post O que é entronizado é bom (“Como se a blogosfera fosse uma tertúlia de amigos e não um conjunto de dispositivos onde se processam expressões. Como se ter e escrever num blogue implicasse uma inevitável rede de afectos e de ternas familiaridades. De que se falará, por exemplo, num encontro de blogues?”). Esta tendência corporativa está codificada de modo bastante fluido, mas, apesar disso, pressupõe comportamentos colegiais que são partilhados por muitíssimos blogues. Essa auto-imagem corporativa do que deve ser a blogosfera contém algumas premissas que vêem em JPP algo de incómodo. Nomeadamente: o facto de ser figura pública do mundo político e de ter “descido” à blogosfera ocupando um lugar algo “indevido”. O facto de não pertencer a um mesmo nível etário que é dominante (i.e., os vintes e trintas, o que implica, na blogsofera, pactos de linguagem, perlocuções mais ou menos comuns, fantasmagorias dialogadas, ficcionalidades e até esquemas argumentativos - à esquerda ou à direita - previsíveis e extremamente partilhados). E, por fim, o facto de JPP ter aparecido quando uma dada tradição da blogosfera já estava em marcha há mais tempo (nesta visão de pequena intolerância, age-se como se os fenómenos tivessem uma única origem e um estatuir fundacional irremissível), a qual se situaria na área a montante do famoso Pastilhas.
2 - JPP não encaixa na expressão contra-cultural que domina certa inteligência VIP da blogosfera que, como se sabe, vive subliminar ou explicitamente da crítica - eu diria bastante necessária - ao pesado e às vezes “almofadado” edifício criado e acumulado em Portugal no espaço das duas últimas gerações. A essa contra-cultura falta amiúde retaguarda, lucidez e algum horizonte. Essa contra-cultura não consegue, muitas vezes, distinguir o plano a que se chegou de outros anteriores e até contemporâneos, para além de viver do (involuntário) modismo geracional que, como todos, é alimentado de estigmas tutelados e dicotómicos “pró e contra” (que acabam por aflorar na análise política e estética, por exemplo). JPP é um relativador não seguidista e sempre se posicionou fora das “massas” e das “manchas” razoavelmente delimitadas.
3 - Existe alguma objectiva sobranceria de JPP ao não lincar de modo fixo, pelo menos, os blogues que lê semanal ou mensalmente. Não se trata de uma obrigação, mas de um dever-ser “ético-político” (para utilizar palavras do próprio JPP, ontem, na Quadratura do Círculo, atribuindo-se aqui ao termo “político” uma respiração mais próxima do seu real étimo). Esse facto suscita mal-estar na maioria da blogosfera activa que entende, com razão, o “dever ser” como um óbvio “contrato mínimo” entre pares do mesmo ciber-espaço.
4 - Há grande “dor de cotovelo” em alguma (diria mesmo em bastantes sectores da) blogosfera face à decisiva afirmação do Abrupto. Este factor é claro, notório e exala alguma ingenuidade no modo como se manifesta. Esta tendência - espécie de narcisismo invertido -, entende, no fundo, o Abrupto como o “modelo” daquilo que se quereria e desejaria ser: ter muitos leitores, ter rubricas fixas e consistentes, ter imensa contribuição temática e ter sobretudo uma desmedida expansão na rede. É evidente que blogues como o Oxblog, o Eschaton ou o Instapundit, a nível do globo, também são “vítimas” dessa pobre invídia agressiva.
Para mim, o Abrupto não é um deus, mas é um óptimo blogue de visita diária. Nem sempre gosto do que lá vejo. Refiro-me a algumas escolhas estéticas, a reiterados objectos de estudo e a uma certa aridez rítmica que uma ou duas secções inspiram. Mas, por outro lado, o Abrupto é um blogue situado fora do que o senso comum designa por “politicamente correcto” e reflecte o ímpeto independente e livre que, nos tempos que correm, é raro entre nós. Em Portugal há muita gente “liberta”, mas pouca gente realmente livre e afirmativa como é o caso de JPP. Este é um tema pouco abordado na expressão quotidiana (crónicas, posts, ensaios), mas que reputo de fundamental. Por fim, o Abrupto funciona ainda como um barómetro interessante da “coisa política” lusa, porque alia a intuição ao recorte dos sintomas visíveis de um modo estimulante. Para além de ser um blogue muito bem escrito, ecléctico e informado, o que é de longe o mais importante.
Parabéns JPP!