sexta-feira, 8 de abril de 2005

Lisboa revisitada

Lisboa: não há cidade onde eu entre tantas vezes e da qual saia ainda mais. É uma urbe grande onde já vivi e onde, possivelmente, em breve, irei habitar mais dias do que agora acontece.
Adoro Lisboa.
Gosto de muita coisa que Lisboa tem: respirações, limoeiros, varandas, colinas, fachadas, cúpulas, cores esvaídas, os cais e tanta, tanta outra coisa (o meu romance, O Trevo de Abel, quis, com a sua humildade de vórtice, dizer isso mesmo). Não há semana em que eu não me perca intencionalmente numa qualquer parte da cidade. Faz parte dos meus solilóquios secretos. Mas confesso que estou sempre, ao mesmo tempo, por fora e por dentro daquele mar de ladeiras e ruelas, praças e áleas. Com em todo o lado. Até porque não há um único lugar no planeta em que eu me sinta fielmente em casa, por dentro, moldado à mundivivência local. Estou sempre entre passos, entre constelações, no alhures. E nesse teodolito poético da minha feliz errância, Lisboa tornou-se, há muito, numa presa simpática, acolhedora e sempre sorridente.
Ao passar pelas páginas de Baudelaire, na preparação de uma aula, reencontrei agora mesmo uma página esquecida e dobrada de onde acabou por emergir a citação que se segue, devidamente sublinhada:

“Dis-moi, mon âme refroidie, que penserais-tu d´habiter Lisbonne? Il doit y faire chaud, et tu t´y regaillardirais comme un lézard. Cette ville est au bord de l´eau; on dit qu´elle est bâtie en marbre, et que le peuple y a une telle haine du végétal, qu´il arrache tous les arbres. Voilà un paysage selon ton gout; un paysage fait avec la lumière et le minéral, et liquide pour les réfléchir”
(Les Spleen de Paris, XVIII, Any Where Out The World/ N´Import Où Hors Du Monde)

Não é verdade que as árvores sejam um inimigo de Lisboa (talvez apenas a Baixa iluminista ilustre a vontade radical de domesticar a natureza de um modo impiedoso), mas já é verdade que, na Ulisseia mitológica, a luz e a pedra se avizinham da água ao mesmo tempo por dentro e por fora. E é nesse deslizar topográfico, à procura de um sentido sem termo, que Lisboa se transforma, dia a dia, numa lua simultaneamente nova e depurada, mas também cheia e frondosa.