segunda-feira, 28 de fevereiro de 2005

Um Deus que dura quatro anos

A noite que ligou o passado domingo ao último dia de Fevereiro foi, mais uma vez, uma espécie de passadiço diáfano onde o luar dos estúdios e a habitual tela de estrelas resplandeceu. Hollyhood é mesmo assim, goste-se ou não. Ilimitada cultora de um pacto quase vulgarizado, a Academia acaba por pôr em cena a nossa imaginação, a nossa descrença, o nosso brilho, a nossa impiedosa doçura e até a nossa vontade de crer na semente do disfarce. É disso mesmo que Hollywood é feita: da celebração pela celebração. Do aceno pelo aceno. Do glamour pelo glamour.
O mais curioso é que o verdadeiro interesse se centra sempre nos famosos. Mas não, como se poderia supor, nos grandes actos que seriam próprios dos famosos e que lhes garantiriam a fama. Pelo contrário, tudo parece cingir-se à lentidão ritual do momento em que chegam, naquela procissão delongada de sorrisos obrigatórios ao longo da passadeira vermelha. Tudo parece cingir-se aos gestos monocórdicos com que batem palmas e se entreolham entre coxias, diagonais, passadeiras e luzes desenhadas à medida. Tudo parece cingir-se aos beijos cronometrados, aos abraços esperados e às frases proverbiais e previsíveis (“And the Oscar goes to…”).
O espectáculo acaba por consagrar - o verbo consagrar repõe a mitificação no lugar que é o seu - os pequenos gestos e as pequenas coisas que são próprias de todos nós, mortais. Mas a verdade é que esses pequenos gestos e essas coisas menores, que são próprios dos habitantes da Transilvânia sombria ou do Haway vulcânico, conseguem atingir, na noite ímpar e única dos Óscares, a condição de um ponto-ómega da existência. Todos os anos assim é. Meteoricamente. E ainda bem.
Quem teve paciência para rever o fausto noctívago do passado domingo não descansou enquanto não viu a cara avermelhada de Leonardo Di Caprio entre apertos de mão efusivos, no momento preciso em que John Reilly sondava, com alguma maravilha, o ar supostamente admirado e assombrado de Kate Blanchet. De algum modo, reviu-se na programadíssima transmissão televisiva o mesmo fascínio inquieto e absolutamente espontâneo que perseguia os primeiros espectadores do cinematógrafo.



A estupefacção que os invadia, há mais de um século, advinha não tanto do pasmo da imagem móvel e dos princípios estroboscópicos então emergentes, mas sobretudo do encanto com que podiam reexaminar os mais pequenos actos do quotidiano: o cão que corria entre os operários que saíam da fábrica, as mãos corpulentas que seguravam num bebé, os arbustos do quintal onde uma mangueira regava de forma descontrolada, as vestes das senhoras ao subirem para os eléctricos, as barracas ao vento na praia de Brighton, etc.



Na realidade, como advertiu Michael Marmot, na sua crónica do New York Times do passado domingo, os prémios da Academia “não são apenas um mero desporto. Eles são, isso sim, uma questão de vida ou de morte. Em média, os vencedores vivem mais quatro anos do que os nomeados que não ganham nada”. E já se sabe que a matemática não falha. Apesar do fascínio, da denegação, da espontaneidade e da previsibilidade do glamour, o mercado é inexorável. E ainda bem, provavelmente.



Apesar de tudo, o certo é que, tal como os peregrinos de há mil anos que andavam a pé centenas e centenas de quilómetros para poderem olhar para os vitrais de uma imensa catedral onde se escrevia a história toda do mundo, também nós, hoje em dia, andamos a saltitar com o olhar pela TV para nos apercebermos de rituais tão hipertecnológicos quanto simples e elementares: pequenas coisas, gestos minúsculos, breves sinais, imagens e mais imagens que se esquecem de ano para ano.
Ao pé de uma tal “miniatura civilizacional”, resta-nos pelo menos um Deus que sempre dura quatro anos.