Os Juízes inabaláveis
Continua na boca e na cabeça de muita gente a ideia de que a democracia deveria produzir governos e listas de deputados perfeitos.
No fundo, quem assim pensa não entende e não deseja a democracia. Porque se a democracia produz algo é precisamente o esteio que torna - em primeiro lugar - a liberdade possível. E não a perfectibilidade das soluções governativas (o que não quer dizer que não se lute, de acordo com ópticas diferentes, pelos melhores governos e soluções possíveis!).
A verdade é que a democracia é um sistema criado para os homens, com todos os seus vícios e virtudes, públicos ou privados, e não para uma galeria de deuses.
Só o dever-ser de uma ditadura - ou de um concílio divino - é que criaria governos ideais, mas essa idealidade seria sempre a idealidade de algo ou de alguém e não a emergência de opções livres e sobretudo possíveis.
Pode questionar-se a lógica que existe em certas listas que põem lado a lado, no mesmo partido, com todo o respeito, pessoas como Duarte Lima e Pôncio Monteiro (entretanto desconvidado) ou Matilde Sousa Franco e Pita Ameixa. Há mesmo casos, já se vê, em que a lógica perde o seu próprio nome, aliás bastante nobre.
Pode questionar-se o leque de poderes que a direcção de um partido tem à sua disposição para a formação de listas. Pode questionar-se a relação entre o conceito de “indígena”, de “aparelho” e de “notável” na concepção interessada das listas.
Pode questionar-se a norma de certos partidos que têm em conta apenas um desiderato funcional para a escolha dos seus Zé Ninguém (a expressão era do velhíssimo Reich). Pode mesmo questionar-se a crise evidente de representação que há-de, em todos os tempos, fazer ferver os cenários discursivos que se movem em democracia.
O que não se pode sistematicamente fazer é, em nome dessa crise natural e intestina - e que a própria democracia enquanto processo vai aprendendo a superar -, pôr-se em causa aquilo que uma certa contra-cultura designa por “formalismo”, ou por “mera democracia institucional”, ou ainda, na linha da revolução de há trinta anos, pelos “desvarios inúteis da democracia burguesa”.
Quem assim pensa, no fundo, sente-se mal em democracia. Sente-se mal entre o mau cheiro aziago da opinião maioritária e proibiria, por isso mesmo, todos os Big Brothers “burgueses” e “massificados” em nome do seu alto e elevado critério.
Quem assim pensa expande ainda hoje a sua ira furibunda em sentido único, recorre ao privilégio extraordinário da liberdade (geralmente pondo em causa a própria cultura ocidental que, nos últimos três séculos, edificou a democracia tal como a entendemos, respiramos e vivemos hoje) e sobretudo acede facilmente aos média.
Quem assim pensa chega a imaginar, por trás do seu “comércio justo” e palavroso, que tem direitos especiais que estão para além da proporção que é devida aos cidadãos tidos como “mais comuns” (por exemplo, a massa dos não menos palavrosos intervenientes nos fóruns matinais radiofónicos).
É por isso que eu continuo a sorrir face a muitos dos juízos que exigem soluções perfeitas, radicais e inabaláveis, oriundos que são dos autores dos novos Leviatãs, porque tendencialmente intolerantes, porque ressentidos face à queda dos “seus mundos idealizados”, porque, ao fim e ao cabo, involuntariamente alérgicos ao que a democracia tem de mais saudável: a livre escolha.