Morreu Derrida
Morreu Derrida. Um dos maiores pensadores do século XX e do fulgurante início do século XXI. Com ele, as margens continentais e anglo-saxónicas estreitaram-se e as oscilações desestruturadoras do nosso edifício cultural comum viram-se ao espelho de outro modo e com uma renovada empatia positiva. Está na moda dizer mal do que cheira a francês, embora quem o pratique se recuse sobretudo a ler e a informar-se. Mas neste caso, deveria essa moda ter um pouco mais de cuidado. Até porque estamos a falar de um autor híbrido, multifacetado, amante do universo, nas suas facetas mais variadas.
Criador das práticas significativas designadas por desconstrução, G. Derrida nasceu em El-Biar (Argélia) no ano de 1930. Frequentou o liceu na sua terra natal e em Argel. Acaba o ensino secundário já em Paris e aí frequenta a École Normale Supérieure. Em 1954, publica Le problème de la genèse dans la philosophie de Husserl e, dois anos depois, passa pela Universidade de Harvard como special auditor. Até ao fim dos anos cinquenta, cumpre o serviço militar na Argélia e dá aulas num liceu de Le Mans. Em 1960, entra na Sorbonne, escreve em revistas como Critique e Tel Quel, e torna-se investigador no quadro do Centre National de Recherche Scientifique (CNRS).
Em 1967, publica três obras capitais: De la Grammatologie, livro-chave na crítica à metafísica saussureana, L´Écriture et la différence e La Voix et le Phénomène, obra importante no diálogo com a semiótica de Husserl (na sequência de L´Origine de la géometrie, 1962). Cinco anos mais tarde, em 1972, vê de novo publicados três livros importantes: La Dissémination, Marges de la philosophie, onde surge a noção de “différance” e se aprofunda a crítica a F. Saussure e ao pragmatic turn e, ainda, Positions. O ritmo de publicação manter-se-á vertiginoso ao longo dos anos. Em 1974, sai a público o famoso Glas e, em 1980, a sua tese, La carte postale, de Socrate à Freud et au-delà, é igualmente publicada. No início da década de oitenta, após breve passagem pela Universidade de Cornel (1982), funda o Collège International de Philosophie.
Já nos anos noventa, deve ser dada referência, entre muitas outras obras, a Sauf le Nom (1993), onde é abordada a questão da teologia negativa; Khôra (1993), ou a ideia de um “terceiro género” alternativo ao sensível e ao inteligível; Politiques de l´amitié (1994) que situa a chamada ‘viragem ética’ e que tem uma parte dedicada a Heidegger; Le monolinguisme de l´autre (1996), onde o autor funde o seu próprio percurso e hibridez com a questão da traductibilidade das línguas (aliás, nesse desígnio, aproximando-se da poética de Voiles, escrito, em 1999, a caminho da Argentina e em várias cidades da América Latina, em colaboração com H. Cixous).
Director de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales, desde 1983, G. Derrida é um cultor do texto, mas não no sentido em que possa entender-se que o mundo é, todo ele, um texto. Sê-lo-á, sim, mas apenas na medida em que toda a estruturação (ou desestruturação) é sempre algo próprio a toda a estrutura, seja ela de que natureza for. É neste sentido que se pode afirmar que não existe nada no mundo que possa, de facto, ser concebido como sendo exterior ao texto. Porque sendo um texto sempre estruturado, nada nele consegue resistir a uma operação insistente e cuidadosa que vise descoser e desconjuntar as peças que o estruturam. E isso já é, ou já seria, desconstruir.
Por outras palavras, se significar é apreender, quer pela via da compreensão, quer pela via da extensão, então este mesmo movimento de duas vias pode ser efectuado quer de modo construtivo, quer de modo desconstrutivo, isto é, cosendo as peças de um enunciado, ou desmontando-as. Nesta medida, um texto é sempre uma peça de cultura e uma cultura, ou uma instituição, pode sempre ser desconstruída. E nada existe fora da possibilidade deste movimento, devido a uma razão essencial: a defesa radical que J. Derrida faz da ausência de um significado último.