As utopias, os lamentos e as desmontagens
Ao longo do Antigo Testamento, sobretudo a partir dos Textos Proféticos, o aprofundamento de um sentido escatológico da vida devolveu à imaginação humana um futuro perfectível (situado no além). Sabe-se que nem sempre, essa perspectiva de futuro se adequou ao vivido e ao quotidiano. É por isso que muita da literatura profética, a partir do séc. VI a.C., toda a literatura apocalíptica (até ao séc. II d.C.) e uma parte significativa da posterior produção literária profética (e da sua práxis) revelavam uma impaciência imensa, querendo ver, no agora-aqui terreno, cumpridas todas as prescrições prometidas. Outros “grandes códigos” totalizantes - a expressão é do já clássico N. Frye - se seguiram ao escatológico, no limiar ou mesmo já no seio da modernidade, libertando a imaginação humana no sentido da enunciação de um nenhures absoluto e prefiguradamente liberto do divino (caso das utopias) e, por outro lado, da construção de programas sintacticamente arrumados e hierarquizados (caso das ideologias). No âmbito destes novos grandes códigos, onde, de modo evolucionista e monocentrado, a “história” continua a ser revista como um todo, dotado de uma certa organização e coerência, a mesma impaciência que exige o cumprimento imediato dos horizontes perfectíveis prometidos (agora já pela pretensa cientificidade ideológica e não pela divindade) continua a manifestar-se. É neste contexto de exigências versus promessas, que corresponde a uma continuidade ocidental muito antiga, como se vê, que as lamentações de Soares e as de uma certa esquerda que sentiu uma súbita e inexplicável perda de pé agora se manifestam. Trata-se de um pathos melancólico e ressentido que não entendeu as viragens que ocorreram no nosso planeta, a Ocidente, nos últimos vinte anos.
No que consistiram essas mudanças?
Basicamente, após meados dos anos oitenta, pode dizer-se que, a pouco e pouco, há dois elementos preponderantes que determinam esta viragem: por um lado, a falência dos grandes códigos totalizantes, enquanto factor explicativo e mobilizador das sociedades, e, por outro lado, a culminante entrada em cena de novos modos de interacção tecnológicos, de uma novíssima antropologia do ciberespaço, da aceleração do instantanismo telecrática, assim como da sobreposição do acentrado sobre o centrado, nas relações entre auditórios e emissores, quer nas linguagens, quer também nas regras que as significam. O que basicamente passou a dominar a época em que vivemos hoje é a ficcionalidade da experiência corporizada pelos média, as áreas de propagação ciberespacial, o agir livre do sujeito impelido por um desejo instantanista, a compulsão interactiva circundante face ao sujeito e, por fim, a propriocepção, ou seja, os novos limites que advêm da expansão do sujeito tecnológico. A instantaneidade, neste novo quadro, deixa efectivamente de ser o móbil através do qual se reivindicaria um horizonte salvífico, para passar a ser o elemento central de um sistema de vida que recoloca na arena do presente uma espécie de consecução plena do agir humano, ou seja, do preenchimento do seu próprio ser. Do mesmo modo, a instantaneidade deixa de ser escrava da fractura entre presente e futuro longínquo e passa a refluir em direcção ao presente, arrastando consigo a imaginação exilada desse mesmo futuro. Neste contexto, o espaço público e o significado das exigências e do nível das promessas alteraram-se radicalmente. Facto que certa esquerda ainda não compreendeu. Mas não só.