domingo, 31 de outubro de 2004

A Aparição (actualizado a 31/10/2004)



Vivemos num mundo subitamente reordenado, cujas ocorrências-chave se foram avolumando, com uma celeridade e uma novidade espantosas, nos últimos três anos. É neste contexto que a figura tutelar do novo terrorismo global - essa efígie desaparecida e aparentemente sempre perseguida - reapareceu de corpo inteiro no ecrã da al-Jazeera. Na telecracia global, são as imagens que definem as imagens e, quando se vota, é também, em grande parte, em imagens que se vota.
Nesta voragem mediática que funciona como uma bola de neve gigante, o grande protagonista do mandato narrado por George W. Bush, Osama bin Laden, passou não só a dominar de ponta a ponta o debate entre democratas e republicanos, como passou também a ser a imagem de marca de todo o ambiente de real crispação eleitoral norte-americana.
Para além desse facto, já de si assinalável num panorama de sufrágio democrático, a aparição - e é de uma aparição que se trata - de Osama bin Laden foi ainda claramente calculada e calculista, já que foi feita a algumas dezenas de horas das eleições norte-americanas e, ao contrário do habitual, foi menos panfletária e apontou sobretudo para alvos políticos, dir-se-ia cirúrgicos.
Creio, nesta medida, que a intervenção do terrorista saudita serviu quatro objectivos principais muito bem pensados, a saber:
1 - assumir-se como a referência e o agente principal a que grande superpotência mundial jamais poderá escapar, reatando assim o tema do medo e da insegurança;
2 - afirmar que o 11 de Setembro não foi um evento, mas antes uma guerra que está e estará ainda em curso durante muito tempo;
3 - sublinhar o desrespeito pelo efeito democrático da eleição, tentando desmoralizar o ânimo do eleitorado norte-americano;
4 - misturar a perversão do confronto religioso com uma ideia casuística de “liberdade”, tentando deste modo criar confusão deliberada nos momentos vitais anteriores à votação (e cujas expectativas, como se sabe, estão em aberto).
De qualquer modo, fica por determinar - no dia em que escrevo este post e mesmo após a difusão dos resultados - qual terá sido o impacto real nas urnas desta inesperada aparição.
Certo é que, independentemente do vencedor das eleições norte-americanas, não se deverão verificar mudanças significativas no plano da política externa, tendo em conta os factos com que os EUA e o Ocidente em geral se defrontam.
Já no plano interno, ponderando o cenário de alguma retoma a curto prazo, é bem possível que uma ou outra reorientação, sobretudo de natureza simbólica e pontual (relativa à fiscalidade ou à saúde, por exemplo), possa vir a ter lugar.
Para além destas previsões algo prospectivas, penso que, longe da paixão dos eleitores norte-americanos e com alguma racionalidade, a eventual saída de cena de George W. Bush poderia somar pontos positivos. Por três razões principais:
1 - os EUA ganhariam em marketing o que perderam com Bush durante estes longos quatro anos (a expressão “marketing” releva aqui uma economia metafórica que vale pela inadequação e até falência de uma dada entourage política de Bush);
2 - sem Bush, as esquerdas mais cristalizadas do planeta e certas direitas europeias de feição continental deixariam de ter o desejado bode expiatório que lhes permite exorcizar as contra-culturas que hoje já não têm grande razão de ser. Kerry, não por méritos próprios, contribuiria assim para uma espaço público mundial mais aberto e menos mono-dirigido a alvos, por vezes, fantasmáticos.
3 - sem Bush, os EUA e o Ocidente em geral estariam em condições de reconfigurar um cenário mais sereno visando redefinir uma visão e uma actuação mais centradas na nova realidade criada há três anos, depois do evento nodal que foi o 09/11. A visão a quente, compreensivelmente imediatista, alarmista, reactiva (e excessivamente unilateralista) poderia vir, a pouco e pouco, a ser substituída por uma gestão política mais concertada e, portanto, adequada à nova guerra mundial que, de facto, está em curso.

Acrescentando (31/10/2004):

Independentemente do que acabo de escrever, devo acrescentar que não partilho das visões turvas e algo neuróticas que vêem numa possível vitória de George W. Bush a entrada da humanidade num temível túnel negro.
A realidade norte-americana situa-se entre a síndrome pós-09/11 e a necessidade de um vínculo que associe confiança a autoridade. Neste âmbito, Kerry tem demonstrado uma tendência excessivamente relativista e tem sentido, por outro lado, uma deficiente margem de manobra para afirmar um espaço próprio que fosse capaz de ligar um devir positivo na política interna à necessária determinação na política externa.
Creio mesmo que o impacto da aparição de Osama bin Laden pode ter radicalizado a síndrome do terrorismo apocalíptico que se disseminou nos EUA com uma natureza muito própria e, na maioria dos casos, bastante estranha aos sentimentos europeus, sobretudo às esquerdas menos lúcidas e a certas direitas fechadas e nacionalistas. Esta radicalização, embora de consequências imprevisíveis, com acima já fiz notar, acaba, em última instância, por reverter mais para o lado de Bush tendo em conta a ênfase dada à ameaça, ao temor e à violência gratuita.
Mas tudo pode acontecer.