sexta-feira, 30 de julho de 2004

Descrer na humanidade

A Charlotte fez ontem alusão a algo que me persegue há muitos anos. Já estive para falar aqui do problema mais que uma vez. E já escrevi sobre ele noutros lados.
A verdade é que, por tratar-se de crença, existe sempre um atrito que impede o razoável equacionar do problema. Pode mesmo afirmar-se, no limite, que não há aqui qualquer equacionar possível, sobretudo porque a razão aspira sempre a uma crença que acompanha uma espécie de espírito hegeliano e que é, portanto, oposto à descrença na própria humanidade. Crer em deus, crer no universo, crer na humanidade, ou descrer de todos eles são coisas que a fé e a crença nivelam, mas que a razão indaga e insiste em esclarecer. É fácil excluir uma delas em benefício da outra (resolve a vida). É fácil esquematizar a dicotomia em que apenas as duas existissem (satisfaz a preguiça). É - ou seria - trágico pressupor todas as saídas do problema (é a triste aura do crente/descrente dogmático). Tenho para mim que a crença e a descrença são sempre territórios que não são firmes, i.e., é-se crente e descrente ao mesmo tempo que se é descrente e crente. As coisas atravessam-se e invadem-se  mutuamente do mesmo modo que a racionalidade é um fino verniz que resguarda a mais pura animalidade através da qual somos, amiúde, desejados, inscritos, relacionados, odiados, falados ou representados. Não sei se descreio da humanidade, mas sinto-o muitas vezes. Profundamente. Não apenas por Darfur. Mas por tanto olhar que funciona como um grande plano a observar, com algum perverso gáudio, a imaginada ou desejada catástrofe perpétua. Veja-se, por exemplo, o desígnio histérico dos jovens jornalistas da TV a narrarem o efeito dos incêndios de Verão. É essa prática de gritaria, de ruído e de banalização exagerada que torna o anormal - que sedimenta a notícia - na ordem do ordinário. Tornar o mundo num local onde tudo arde como se fosse um único evento possível é transformar o vivido num mar de pouca crença. Na Idade Média os monstros eram vistos como segnum, ou seja, como aquilo que escapava à ordem natural das coisas. O resto era emanação da criação divina ordenada e harmoniosa. Hoje, em vez de monstros temos noticários (e hipermundo) e em vez de crença temos homens a interpretarem homens. Sobra-nos falar de tudo isso com o mesmo misto de tentação que terá levado, um dia, Orfeu a olhar para Eurídice.