domingo, 13 de junho de 2004

Mudar de casa - 4

Dialogo com os enigmas do tempo neste domingo em que o tempo parece ter parado dentro das paredes da minha casa. Tudo ou quase tudo está neste momento embalado em caixas e caixotes ou coberto por panos brancos. A arrumação torna-se em memória, enquanto a partida se converte numa espécie de nome redentor. Pulula por aqui um alheamento nostálgico a florir entre breves manchas de esquecimento e o ardor que faz o movimento do espírito abrir-se à plena suspensão do tempo.
A verdade é que o presente é um aquário adiado dos grandes oceanos, uma fugaz intromissão dos eventos neste líquido mais vasto onde o canto de fundo se confunde com a ilusão dos vidros que delimitam o olhar imemorial das algas. No presente há factos, fendas, imolações interpretativas, catarses emocionais, prenúncios vários, paixões secretas, fantasmas imaginados, contendas verosímeis, olhares rotineiros, reacções em cadeia, simulações intencionais e flutuações incontroladas. O presente pertence ao desenlace da vaga, ao ritmo do vento na copa das árvores, ao olhar incandescente para o muro branquíssimo do quintal. Mas no diálogo com o tempo imobilizado deste domingo, o que sobressai é a neutralização desse ímpeto da contingência, dessa nora ininterrupta, desse poema emergente sem início nem fim.
Hoje o dia pertence aos ecos.
No fundo o eco é o que sobra ao agir do quotidiano. É o que suspira para além da comoção ínfima dos dias. É o que contém as formas que deslizam na montagem errante dos instantes. É o que se espalha em toda a apoteose mundana do vivido. É o que basta ao contínuo imperceptível da respiração. É o que perdura do antigo coro grego a fundir o aparecer concatenado das imagens. É o que rumina de modo ocluso nas malhas desdobradas da consciência. É o que se espraia no silêncio mais inerte, esse ardil e móbil do entreacto.
Hoje, de facto, o tempo surgiu para ser o artífice de uma incalculável represa de Verão. Águas paradas. Miragens perfeitas. Limiar adiado. Uma árvore carregada de ameixas a curvar-se sob a desmedida suspensão solar.
É isto o que se sente num breve segundo interpelado subitamente pela melancolia. Mudar de casa pode chegar a ser mudar de pele. Até já.