sábado, 29 de maio de 2004

Sentir a falta - 2 (act.)


Lynne Prachyl

Escreve J.P. Coutinho:

“Ao contrário do que por vezes se pensa, e até escreve, a ausência dos que mais amamos não se faz sentir nos piores momentos da vida. Mas nos melhores.”

O que é um bom momento? Talvez o rebate irreflectido e súbito da felicidade. Talvez o atrito instintivo e arrebatado do contentamento. Talvez ainda o pasmo consumado e directo de uma consolação. De qualquer forma, existe um espanto nesse breve instante a que chamamos um bom momento.
O que nos traz os outros, ou o outro, nesses hiatos breves, é a desejada partilha, o pressentido testemunho e a imaginada cumplicidade.
Um sentimento, seja ele qual for, percorre sempre a volatilidade com que nos descobrimos ao encorpar-lhe a forma. De repente, o nosso corpo é já o sentimento. E nada mais sobra nessa ocupação tranquila.
No caso de um bom, ou mesmo de um grande momento, não só trazemos a nós o corpo que sentimos em júbilo como estendemos ao outro, ao ente mais querido e ausente, o desejo de uma identificação sem nome. Ao contrário de um mau momento - espécie de convite à nossa qualidade estóica e acrobata - o bom momento apela inevitavelmente ao desdobrar de vozes, à pluralidade das emoções e ao preenchimento dos outros, dos mais queridos, em nós.
A ilusão que dissimula todo este movimento, a tal que leva J. P. Coutinho a afirmar “ao contrário do que às vezes se pensa”, é uma espécie de boomerang.
Quanto pior é um momento, mais o sublinhamos, mais o dizemos, mais o descrevemos. E é por isso que ele lentamente se afasta, na sua enigmática circum-navegação.
Quanto melhor é um momento, mais o entendemos na sua invisibilidade, mais o silenciamos, mais o denotamos pela surpresa. E é por isso que ele tanto se aproxima de nós na sua incorpórea translação.
Dizer um bom momento é percorrer o imperceptível, o intraduzível, o inefável. E é na aura - essa memória única do invisível vivido -, e apenas nela, que há comunhão, compaixão ou saudade. A aura é, afinal, a forma com que resgatamos a falta.

P.S. Charlotte: "celebrar" pode parecer o contrário de "sentir a falta", mas talvez não seja. Ambos requerem remissão: a uma presença ou a uma ausência, respectivamente. O ideal era poder condensar no presente ambas as remissões e adicionar-lhes a celebração e a própria saudade. Sem parar.
O resultado, de certeza fortíssimo, seria qualquer coisa parecido com as Bachianas ou com o Tango (seria?). Que ponto singular seria esse? Tão forte seria esse sentimento que o nome transbordaria de anonimato e vice-versa (desterritorializações, em suma). Je serais un autre.