domingo, 23 de novembro de 2003

Fenice e Las Vegas



Acabo de ler um óptimo artigo do escritor italiano Alessandro Barrico sobre a reconstrução de uma das óperas mais emblemáticas do mundo: a de Veneza. O artigo está republicado no Courrier International e remete para um original não datado do La Repubblica (não posso, pois, fazer o linque).
Nele se dá conta da história recente da Fenice de Veneza, depois do seu incêndio de 1996, e também da opinião unânime e previsível das elites locais: reconstruir tudo igual ao que existia antes, repor o original, ou, por outras palavras ainda, manter tudo como se nada se tivesse passado. Convém acrescentar que toda esta obsessão pelo idêntico ganha contornos algo bizarros na medida em que, após o incêndio 1854, os venezianos de então se haviam decidido por uma fidedignidade ainda mais radical: a construção de um teatro do século XVIII (imitação forjada, claro está).
Conclusão: toda a profusa decoração que é agora a obra devotada dos artesãos do início do século XXI (passarinhos, motivos vegetais, formas decorativas dos candeeiros, espelhos, pinturas filigrânicas, mobiliário, etc.) tem cegamente obedecido a uma espécie de culto do original do original, através da pesquisa milimétrica a simuladas imaginações hoje sem sentido. Toda esta tarefa “louca” apenas parece ter um único objectivo, ou seja, dizer a quem olhe de frente para a Fenice que ali nada se passou, que ali nunca nada mesmo se passou.
Depois de ler o longo artigo de Barrico veio-me à cabeça um rol de coisas sobre as quais já escrevi, nomeadamente a crença (setecentista e oitocentista) na história e a obsessão pela preservação (e pelo controlo do passado, mas também do futuro). Não é novidade afirmar-se que a Europa pós-iluminista inventou o passado, já que o transformou em ciência e em arquivo racional. O pobre do Da Vinci não sabia que era renascentista, o letrado de Aquino não sabia que era medieval e o confessional do Agostinho não sabia que era antigo. Invenções.
Umbilicalmente ligada a um culto ordenado e sobretudo sacralizado do passado (o novo deus é bifronte e tem os nomes de “comemoração” e de “património”), a inteligência enfatuada da actual Europa parece insistir em ter de si uma ideia singular e, por isso mesmo, crê que a reconstrução fiel do que já não existe deve revestir-se de sublimada letra de lei. Daí também a constituição europeia. Daí a ópera veneziana, daí a liturgia catalã do Liceo de há quase uma década. Daí, também, o arrojo reconstrutor do Chiado lisboeta.
Vivemos num mundo de cenários onde as máscaras deslizam sobre máscaras para disfarçar, quem sabe, a magia do poder que se foi apartando da Europa. Pelo menos em Las Vegas as cópias não são menos fidedignas, mas a paródia faz delas o que elas realmente são: uma perversa loucura borgeana. Exposta diante das mil luzes que a Europa foi deixando à deriva atrás do seu próprio rasto.