quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Pré-publicações - 72

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Augusto Gemelli, A Cozinha de Augusto Gemelli, A Esfera dos Livros, Lisboa (Novembro, 2007).
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Pré-publicação:
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"A minha paixão pela cozinha não cresceu comigo desde a infância. Seria incorrecto dizer que sempre tive o sonho de ser um chef de cozinha. A minha primeira verdadeira paixão profissional foi outra: ser bombeiro.
Aos dezoito anos já formado na escola hoteleira de Milão e com uma boa experiência de trabalho, fui chamado para o serviço militar.
Com alguma sorte, acabei por ingressar na escola de bombeiros de Roma, e de facto o tempo passado neste incrível mundo feito de assistência e vidas salvas, fez-me crer que não havia nada mais importante na vida. O destino pregou-me uma partida, não consegui ficar como efectivo e reencontrei-me rapidamente numa cozinha e no meio das panelas e dos pratos.
Para ganhar uns trocos, aceitei um trabalho extra num restaurante/clube privado, que organizava jantares só por convites, onde trabalhando com chefes de renome, consegui o meu primeiro contacto com a «alta cozinha».
A procura do perfeito equilíbrio de sabores, o sentido cromático dos ingredientes e a pesquisa exaustiva do lado artístico da apresentação de um prato. Tudo isso proporcionou-me uma visão nova, atractiva e diferente do acto de comer e de dar de comer.
Nos anos seguintes, procurei grandes profissionais que me poderiam ajudar a obter uma formação de alto nível para chegar a ser chef de cozinha.
Às vezes é perigoso «queimar» as etapas da vida, e aos vinte e dois anos, quando pensava saber já quase tudo, decidi lançar-me na carreira de chef/empresário.
Os resultados do meu trabalho em Milão não foram muito interessantes e, encorajado pela situação geral do meu país, que naquela altura não oferecia grandes perspectivas de futuro, fiz as malas.
Viajar foi desde criança o meu primeiro instinto e o meu único desejo. Conhecer sítios novos, gente diferente e falar línguas que não o meu «italiano», intrigava-me. Finalmente um dia, depois de breves saídas para países mais próximos, tive a oportunidade de sair à descoberta do mundo. O meu primeiro destino foi: Argentina.
Quando cheguei a Buenos Aires numa tarde chuvosa, senti o coração a bater forte no peito. As luzes da capital sul-americana que passavam à minha frente e o jetlag a deixar-me atordoado fizeram-me pensar:
– Meu Deus! Estou do outro lado do planeta!
O trânsito frenético da majestosa Avenida 9 de Julho mostrou-me pela primeira vez o que significa estar numa metrópole. O ritmo incessante da cidade que vive 24 sobre 24 horas é inebriante e atractivo, mas também enervante e cansativo. Depois de poucos meses já lidava perfeitamente com uma nova língua: o Espanhol.
No país mais europeu da América Latina, senti-me pela primeira vez longe de Itália, embora a convivência com o povo argentino, tão parecido com o meu, tenha atenuado as saudades de casa.
As relações humanas, quer sejam positivas ou negativas, são sempre baseadas em sentimentos fortes. O «castellano» desta latitude é a língua latina mais fácil para nós italianos, devido às semelhanças fonéticas. As nuances linguísticas e os sentidos implícitos acabam por melhorar a minha comunicação com os argentinos.
Se pudesse limitar a minha recordação da terra de Astor Piazzolla a uma só palavra penso que seria «amizade». Descobri com a ajuda de amigos argentinos e uruguaios, como pode ser forte este sentimento.
Os «assados» de excelente qualidade com carnes cortadas de uma maneira completamente diferente da nossa, e o convívio em casa das pessoas à volta de uma refeição são o cartão postal que trouxe comigo.
Um dia, ao preparar as encomendas da minha cozinha, recebi um telefonema que requisitava a minha saída de «B’aires» para um novo destino. Embora tivesse vivido intensamente a minha experiência na Argentina, quando o meu superior anunciou o meu novo destino, senti uma grande euforia.
Ao desligar a chamada, não consegui controlar a minha felicidade ao pensar numa terra onde Sol, cores e boa disposição são a filosofia de
vida; é como imaginar a Lua.
Porto Rico estava à minha espera. Finalmente, depois de muitos anos a imaginar as terras dos piratas, consegui concretizar o sonho de uma vida. Esta paixão antiga pelas Caraíbas não é só por causa das praias brancas e do mar azul, mas sobretudo para conhecer de perto a filosofia de vida destas povoações que segundo a minha perspectiva ainda conservam um modo de vida que afasta o stresse e promove uma saudável relação entre as pessoas."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Cerveja e literatura - 53

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“QUE VERGONHA, RAPAZES!
e
Que vergonha, rapazes! Nós práqui,
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no “diz que”
e a desnalgar a fêmea (“Vist’? Viii!”)

e
Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me sorgo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.

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Desejo recalcado, com certeza...
Mas logo desço à rua, encontro o Roque
(“O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!”)
e desabafo: - Ó Roque, com franqueza:

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Você nunca quis ver outros países?
- Bem queria, Snr. O’Neill! E... as varizes?”

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(Alexandre O’Neill, De Ombro na Ombreira, Lisboa, Dom Quixote, 1969)

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

O vestígio da noite

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Uma pasta cheia de folhas de brilho sépio e um amor-perfeito como o crepúsculo - violeta tricolor - literalmente espalmado. O lago no jardim para onde atirei um sapato, tinha três anos e ainda não sentia medo dos cisnes. Um filme quase no fim, a lua branquíssima e o terraço ao meu alcance. Uma buzina no meio da noite. Fecho os olhos e volta a ser o dia em que tudo se dissolveu entre folhas espessas: pétalas, atacadores de seda, flamingos revoltos, aparelhos ópticos, um volante de boca de sapo, lágrimas nos assentos de pele à beira do desfiladeiro e os olhos preenchidos pela comoção. Ou talvez por nada. Tantas abelhas ainda à volta da trepadeira, as telhas despidas e a pasta. Sim: a pasta catalã. Tanto vestígio. Ou talvez apenas o eco. Um eco espalmado, perfeito, dissolvido. Branco. Como a lua.

Cerveja e literatura - 52

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É possível que nunca tenha lido (parte de) um romance onde os camionistas fossem tão mal tratados. O extracto que antecede esta minha citação é de (demoníaca) antologia a esse respeito. Fica a cerveja, como desejo nobre, a iluminar a nobreza dos condutores dos TIRs:

"Os ignorantes dos camionistas vivem agarrados ao volante e param aqui para gastarem dinheiro na loja da comida, onde há gasóleo com fartura, cerveja, cachorros quentes e charutos e um sortido de navalhas de ponta e mola dentro da vitrina."
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(Paticia Cornwell, Predador, Tradução: Lucinda Santos Silva; Editorial Presença, Lisboa, 2006, p.92)

domingo, 25 de novembro de 2007

Episódios e Meteoros - 58

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(crónica publicada desde anteontem no Expresso Online)
(ver também no meu
blogue de crónicas)
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Quando Shakespeare destronou a Bíblia
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Harold Bloom revelou, no último número do The New York Review of Books*, que decidiu voltar a ler Shakespeare em vez da Bíblia, depois de ter regressado à vida, em Agosto, na sequência de alguns dias de internamento a recuperar de uma síncope. E a conclusão tornou-se óbvia: “Não há separação entre vida e literatura em Shakespeare”.
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Este “back to life” não podia ser mais auspicioso e actual.
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Se a Bíblia é uma imensa alegoria que desliza entre o exemplo e o vivido, o grande dramaturgo inglês foi sobretudo o organizador genial de mil tradições orais que dominavam o seu tempo. É precisamente a mesma diferença que hoje existe entre os acontecimentos que nos media se reproduzem como cerejas, criando cadeias ficcionais, apaixonadas e delirantes estilo McCann, e os acontecimentos que se constituem, no nosso dia a dia, como aparições ou vaivéns de conjuntura.
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De facto, o público actual procura as grandes metáforas da vida nas narrativas que os media vão desdobrando no quotidiano. E acontece muitas vezes que, a partir de eventos eleitos como notícia, se forma, sem grande controlo por parte dos mecanismos editoriais, uma sequência de alegações, conjecturas, rumores, contribuições, juízos e outros dados adicionais que acabam por transformar a notícia original numa verdadeira cadeia ficcional. Este processo acelerou-se e tornou-se quase normal no mundo massificado e globalizado, onde prolifera uma certa ambiguidade entre público e privado e onde os factores afectivos e passionais passaram a dominar boa parte da produção e do consumo mediáticos. Existe realmente uma óbvia correspondência entre estas novas cadeias ficcionais (por exemplo: o caso Sócrates/Universidade Independente, o caso Casa Pia, o caso gripe das aves, o caso McCann, etc.) e o mundo dos mitos da Antiguidade ou o mundo das parábolas que o sucedeu.
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Do outro lado deste panorama, somos diariamente envolvidos por aparições dir-se-ia de conjuntura. Ao fim e ao cabo, o público adora um mundo fantasmático onde os dados se repetem e reaparecem. O prazer é hoje o mesmo que se agitava nas prestidigitações do início do cinematógrafo: são factos ou pessoas que ressurgem (Santana Lopes, Almerindo Marques e Ota/Alcochete), são as comemorações ritualizadas (o “Dia da Memória”, este ano instrumentalizado pelo estado), são os chamados dossiês correntes (petróleo, Chávez, Irão, etc.) e são ainda as aparições que visam testemunhar a simples existência (Portas numa interessante petição contra o estado “mau pagador”, ou Jerónimo a referir-se à “brutalidade” da GNR).
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Enfim: Bloom tinha razão. Existe uma clara distinção entre o patamar da parábola que reinventa a realidade e o patamar da conta-corrente que a amplia e transfigura (através de personagens e factos que vão e vêm, sucumbem e reaparecem).
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Para quem recupera de uma doença grave, é normal que este segundo patamar se torne mais aliciante. Mas para quem anda na adrenalina e no stress, nada melhor do que umas prestidigitações mágicas aliadas às cerejas. Como se umas e outras fossem verdade.
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*Vol. LIV, Nº 18, 22/11/07, p.40

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Cerveja e literatura - 51

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À parte a ingenuidade da prosa, vale a pena ler este texto que faz química a papel químico com o vivido: braços que se tocam, canecas vulcânicas, lavabos de ouro e espuma sem fim. Para mais, tudo se passa numa noite única, no Colorado, e, no outro dia, já ela - a Sherry -, terá regressado cheia de saudades a Filadélfia. E claro, um bar como o “Abelha”, cheio de “abelhões” que se agarram à roupa - e sabe-se lá onde mais -, é coisa que se recomenda. Grande ventura, realmente, a da cerveja! Ora leia-se:
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“O Abelha, como era conhecido, estava muito concorrido e barulhento por volta da meia-noite. Beberam cervejas de caneca de litro e meio e a empregada atirou-lhe os abelhões da praxe, que se lhes agarraram à roupa. A uma da madrugada veio e foi, já tinham começado a afagar os braços um do outro enquanto conversavam, a falar e a rir em voz alta, e, idas aos lavabos à parte, Sherry estava convencida de que nunca se tinha divertido tanto na vida.”
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(George D. Shuman, 18 Segundos, tradução: Alice Rocha; Editorial Presença, Lisboa, 2006, p. 62)

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Pré-publicações - 71

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Álvaro Santos Pereira, Os mitos da economia portuguesa, Guerra e Paz, Lisboa, 2007.
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Pré-publicação (do "Prefácio"):
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"Gosto de iconoclastas. Estou farto do politicamente correcto. Se a humanidade sempre tivesse feito tudo como o fazia a partir do momento
em que houve vida no planeta, ainda hoje estávamos na Idade da Pedra. Por isso, é preciso que haja pessoas a desafiar o que está estabelecido, a provocar novas dinâmicas, a agitar ideias que vão contra o main stream. É assim, foi sempre assim, que o mundo pula e avança.
Nem que seja para chegarmos à conclusão que estamos errados, há que desafiar com novas ideias, novas teorias, novos caminhos, o pensamento dominante, o modo de fazer igual, a réplica da réplica de um original já muito distante.
Na economia portuguesa, tem havido um pensamento claramente dominante. Temos de ter um défice orçamental próximo de zero porque só assim será possível termos taxas de crescimento signifi cativas. Bom, mas no tempo em que Miguel Cadilhe foi ministro das Finanças, entre 1985 e 1990, o défice era elevado e tivemos um excelente desempenho económico, de tal modo que chegámos a ser conhecidos como o tigre celta, lembram-se? Ah, claro, houve a espectacular melhoria das razões de troca devido à queda do preço do petróleo e das matérias-primas e ao enfraquecimento do dólar. E estávamos a sair de uma recessão e o país encontrava-se financeiramente saneado. Pois, resumindo e concatenando, isso quer dizer que em situações específicas as políticas que resultam podem não ser iguais àquelas que estão em todos os livros.
Aliás, se pensarmos no que se passa nos Estados Unidos, onde apesar do espectacular défice orçamental acumulado por George W. Bush, a economia mantém um forte crescimento, tal como tinha acontecido quando o défice passou a superavit no tempo de Bill Clinton, chegamos à conclusão que há ligações que, no mínimo, devem ser discutidas e postas em causa.
Nos últimos anos, verificou-se uma clivagem no pensamento único dominante. Há os que defendem um alívio fiscal como forma de apoiar o crescimento económico. E há os que insistem em manter a pressão fiscal, porque só com as contas públicas saneadas haverá crescimento. Há os que sustentam que para captarmos investimento, temos de ser radicais e reduzir as taxas de IRC para 10% ou mesmo zero, como forma de nos distinguirmos na União Europeia. E há os que dizem que não há margem de manobra e que isso conduziria a um desastre orçamental. Há os que clamam que só com menos dinheiro o Estado será forçado a emagrecer. E há os que dizem que sim, mas só depois de equilibrar as contas."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

Pré-publicações - 69/70


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Chegamos ao septuagésimo post desta rubrica, que faz um ano dentro de dez dias, com dois livros infantis que sairão a público muito em breve:
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- Emília Nóvoa Faria, História de Alberto - Personagens com História, Campo das Letras, Porto, 2007.
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- Benoît Delalandre, O Meu Grande Larousse de Monstros e Dragões, tradução: Margarida Vasconcelos;Campo das Letras, Porto, 2007
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Pré-publicações:
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"A cozinha da Margarida" (de Histórias de Alberto)
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"Setembro era o mês dos cheiros! Cheiros da terra molhada, das uvas pisadas na adega, das espigas desfolhadas na eira, da marmelada que a Margarida fazia com os marmelos do quintal de baixo... Depois caíam as primeiras chuvas, quando o Verão acabava em Boamense, a casa de campo dos meus avós paternos.
Quando eu via os cestos cheios de marmelos, junto à porta da cozinha velha, era certo e sabido... começava logo a cirandar por ali como faz a abelhinha em volta de uma flor. Foi num desses dias que, depois de sentir o cheirinho doce da marmelada, espreitei pela porta entreaberta da cozinha. Lá dentro, junto à lareira, a Margarida mexia e remexia num grande tacho de cobre com uma colher de pau quase do meu tamanho. Em biquinhos dos pés, para não fazer barulho, escondi-me por trás da sua saia rodada."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Cerveja e literatura - 50

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Um crime na Escócia, numa pequena terra chamada South Queensferry. Um pub e um encontro entre o inspector John Rebus e Shiobhan. Tudo ainda muito no início. Em estado de mistério. Rod, o barman, adensa o ambiente de mistério, fala em Walter Scott e Robert Louis Stevenson e conclui: “Não está a beber num pub qualquer!”. Antes e depois de Rod aconselhar “haggis, neeps and tatties” (bucho recheado, puré de batata e nabo), é a cerveja que fará o tempo dilatar as expectativas e as provas. Para além de contagiar, a bem de todos, o prazer do próprio presente:
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“- Ela pegou nos copos. - À nossa, Rod.
- À nossa.
De volta à mesa, colocou a caneca de cerveja de Rebus ao lado do bloco de notas aberto.
– Aqui tens. Desculpa a demora, mas acabei de descobrir que o barman conhecia o Herdman. Até pode ser que... – Ela acabara de se sentar. Rebus não lhe prestava atenção nenhuma, não a ouvia sequer. Fitava apenas a folha de papel à sua frente.
- O que foi? – Lançou um olhar de soslaio para o papel e reparou que fora um dos que ela já lera. Detalhes familiares de uma das vítimas. – John? – interpelou-o novamente.”
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(Ian Rankin, Uma Questão de Sangue, tradução: Marlene Morais; Edições ASA, Porto, 2006, pp. 48/49)