segunda-feira, 28 de julho de 2008

Inércias

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Pois é, este sexto ano de Miniscente tem sido dominado pela inércia. Não é tanto a dificuldade em aqui vir, devido às muitas ocupações; é sobretudo o adiamento a que dou carta branca sempre que sinto inclinação mínima em postar. Não sei, mas deve ser mesmo falta de vontade de continuar a blogar. Ou não serão as férias, essa desejada e longínqua presa que me olha, ainda de longe, como um touro para um forcado?

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Volta ao Mundo - 23

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Há dez meses, a Clara Piçarra e o Miguel Sacramento partiram para uma volta ao mundo que o Miniscente tem acompanhado... passo a passo. Embora já se encontrem em África, hoje a crónica chega-nos ainda da Indonésia e fala-nos, entre outras coisas, das consequências de um recente e terrível maremoto:
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"Indonésia – Bali e Sumatra (Pulau Nias)"
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"Há alturas em que ficamos quase sem nada. Não porque perdemos, ou desistimos, ou deixámos de agarrar. Ficamos quase sem nada. Porque vimos. Olho para longe e sinto a onda como se fosse minha. Nos pés. No peito. Na incerteza. Sou água ou sol? Sou vento, azul, quase transparente. Se pudesse chorava. Ou gritava. Ou sorria. Se pudesse. Mas deixei de ser formado por pedaços. Transformei-me em tudo. Desço a onda, sinto, faço parte. Não há nada fora de mim. As vozes são minhas, as cores, o sal, o momento curvo de força pura. Sei que não sou eu. Eu agarro apenas um sonho. Com as duas mãos, debaixo do braço… como se deve agarrar um sonho: com a certeza de que um dia vai ser inteiro.
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Há alturas em que ficamos quase sem nada. Não porque perdemos, ou desistimos, ou deixámos de agarrar. Ficamos quase sem nada. Porque vimos. O caminho é duro. Não percebo porquê. O verde prolonga-se numa floresta cerrada que só desiste no mar. A estrada vence com calma cada curva. Recebem-nos com fruta e vontade. Por que sinto ser tão difícil? É quando estamos sentados num chão que serve conversa fácil que olho pela primeira vez. Não para o verde, não para o mar… para o vazio. Todas as casas estão vazias. Não há mesas, ou cadeiras, ou quadros. Há apenas vazio fechado entre paredes e tectos. Nias foi destruída por uma onda gigante que vimos na televisão. Nos anos seguintes dois tremores de terra resumiram a destruição. Lentamente, as casas vão crescendo como as pessoas que ali vivem. Num vazio envolvido por pele fina. Mas que guarda uma esperança que não sabia possível.
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Os desequilíbrios não são a perda da vertical. São os espaços vazios que se criam quando não há justiça. Temos culpa. Porque sabemos que existem."
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Fotografia: Miguel Sacramento

terça-feira, 15 de julho de 2008

Hoje é o dia do quinto aniversário do Miniscente

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Parece que foi hoje, mas a verdade é que as primeiras palavras do Miniscente foram escritas num ambiente muito diferente do que hoje nos respira e envolve.
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O 09/11 estava ainda fresco, o Iraque fervilhava em pleno, Durão era PM, o caso 'Casa Pia' ainda não existia e uma nova (e pouco compreendida) febre comunicacional estava a arrancar em Portugal.
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Este desafio ao espaço público, com a tonalidade com que foi singrando há pouco mais de meia década, durou pelo menos três anos. Foi um início de milénio caudaloso! De facto, foi particularmente interessante ter assistido e colaborado na emergência de uma nova área dos media (ainda não absorvida pelas tradicionais) que apostava em ser um pouco de tudo do que já se conhecia - diário, memórias, crónica, botequim, crítica, monólogo, etc. -, embora marcando sempre identidades para fora desses perímetros referenciados e excedendo, sem quaisquer preconceitos, o esquematismo ficção-realidade e/ou verdade/sentido.
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Foi também um auspicioso e generoso movimento de afirmação personalista, num tempo em que tudo aparentemente parecia condenado ao apagamento autorial. Foi ainda a reocupação de uma área militante, mas sem ideologia a comandar os barcos, os portos, os submarinos e as secretas.
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A nomes conhecidos da opinião, juntar-se-iam imensos nautas que pretenderam cunhar a sua expressão através de um novo labirinto, de que a figura dourada do "link" foi muitas vezes - por ausência ou presença - protagonista de ouro.
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Enfim, a primeira década do século XXI teve a sua própria onda expressiva, de algum modo comparável - colocando de lado as auto-descobertas da tecnhé - à do cinema que floresceu cem anos antes.
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Aliás, o desafio expressivo criado pelo novo meio (e que sempre me encantou enquanto fenómeno) levou-me mesmo a escrever um livro, publicado já este ano, que tentou levar a cabo o balanço compassado e pensado de toda esta euforia.
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Não creio que a explosão bloguista - ou blogueadora - tenha já acabado; o que creio é que ela já não existe do modo fulgurante com que se fez significar no tempo da 'grande bolha' (digamos: 2003-2006).
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O Miniscente, nos últimos cinco anos, atravessou todo este terreno. Um terreno imensamente fértil, mesmo sob o ponto de vista humano. Não sei o que teria feito, se não me tivesse ocupado tantas horas na redacção de perto de 4.000 posts. Mas não me arrependo. Olho para trás e compreendo que foi uma fase virtuosa e arrebatada. Adoraria, em todas as fases da minha vida (passadas ou futuras), poder sempre mergulhar em comunidades tão estimulantes quanto foi a dos blogues no seu período de excelência.
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Agradeço a todos os que me têm lido e acompanhado nesta saga. Não posso prometer o que já prometi noutros aniversários do meu blogue. Também não acabarei com o Miniscente neste dia de festa! A eutanásia não é quase nunca boa conselheira. Se este meu blogue tiver que acabar, acaba naturalmente. Por ora, prometo uma coisa: o Miniscente vai envelhecer com a mesma serenidade com que o meu cão Ulisses também está a envelhecer. Hoje em dia, no mundo célere em que vivemos, cinco anos são cinco séculos. Quase meio milénio, ou seja: qualquer coisa já muito perto da salvação.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Quinto Aniversário do Miniscente (cont.)

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Na véspera do quinto aniversário do Miniscente, deixo aqui mais quatro de treze poemas preparados para celebrar o microacontecimento:
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A árvore
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Existe um salmo
a invadir o antigo rumor de Boticelli
w
basta olhar para as árvores sem género
que gravitam entre o vazio e a folhagem densa

da Primavera
para entender o modo como as formas
semeiam na consciência
uma poeira fina de argila vermelha
que nos traz
rosto a rosto
dia a dia
o horizonte quase inabitado.
w
A procura
e
Disse que o caminho era longo
uma descida íngreme entre o vestígio dos caules e a

lentidão da voz
e
trouxe o musgo em que imaginámos
os acampamentos e o fulgor das
vias e viadutos à procura do mundo
e
seguiu pela grande estrada e era já

demorada a saudade dos moinhos de vento
escarnecidos pela luz

da cidade.
e
O pólen
e
Subia pela rua que ia dar ao pólen
e
foi nesse dia que reviu
figueiras esvaídas e a luz que as abelhas
consumiram

para ver passar
e
a beleza


que era o nome desse incêndio
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A noite
e
Estava reclinada sobre a noite
a entrever as giestas e um desses volumes
de alvenaria que irão dar à alma
e
dizia
e
que Vermeer era
o pintor
que teria gostado de a ver
e
voaria através da luz inclinada
e dessa penumbra inventaria a noite
que o rio já absorveu.

domingo, 13 de julho de 2008

Quinto Aniversário do Miniscente

e
A dois dias do quinto aniversário do Miniscente, deixo os primeiros quatro de treze poemas escritos para celebrar o microacontecimento:
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A corrida
w
As luzes ao longe ciciavam
na memória dos muros
entre amores-perfeitos e o ressoar
dos passos com que regressava
no fim do Verão e havia chuva
ee
lembro-me de passar folha a folha
o tempo a correr como se a sombra trouxesse
ao suor aqueles dias já mais curtos em que
falava de bois deslumbrantes a cruzar a nora do quintal
e
havia silêncio ao fundo do corredor
e ciciavam luzes sob a maresia
enquanto olhava para a chuva
que tolhia a voz
e e
quem dera ao luar este amor
este rugido na falésia da memória
e
lembro enquanto caminho
sem idade
na direcção dos plátanos despidos.
e
O boi
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O tempo serenou junto ao campo de aviação e os olhos do boi
levantaram-se lentamente e
viram o trono de deus
d
naquele tempo
a boa nova não apareceu no traçado dos rolos
mas sim nos relâmpagos
e nos cascos com que o animal avançava
em direcção ao rio,
cheio de farpas galanteios e sangue
d
nas águas viu-se como um deus no fim daquela tarde
e em cor de ouro escalou à arena do paraíso
abraçado ao toureiro aviador que era apóstolo da chuva.
d
O desafogo
d
Havia sangue nas rosas e o regador parecia
um céu
a clarear na memória do pasto
d
e as ovelhas continuavam escondidas sob oliveiras
ali mesmo
ao lado do corpo abandonado
e e d
O Corredor
ed
Era silencioso
longo
e a cortina ao vento
paralisava os sentidos
d
ao fundo
havia um corrupio de pombos a revolver
a escrita com que se respirava
o ar profundo e fresco do poço
d
passava em frente da cortina
bordada pelas viagens e aí permanecia
como se fosse uma deusa
a olhar para a crista das ondas
d
até que um dia a sétima vaga subiu pelo farol
e drenou a imagem com que se apagaou
na lembrança dessa paixão que era
secretamente
a minha.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

O quinto aniversário: rumores íntimos

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No próximo dia 15 de Julho, desta terça a oito, o Miniscente fará cinco anos. Um tempo simbólico, mais nada. Relembro sumariamente (com aquele tipo de síntese que não recobre a massa das coisas) o que tem sido esta saga.
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O primeiro ano foi de vício e compulsão sem fim. O segundo ano foi de intensíssima apropriação do meio. O terceiro ano foi o ano que culminou com a evidência do metabloguismo. O quarto ano foi de mini-entrevistas e de aceso debate sobre a dupla ficção-realidade. O quinto ano foi tempo de travagem, de mais inércia e, sobretudo, de contemplação menos deslumbrada.
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Nada sei sobre o sexto ano a vir, porventura o da desmobilização natural (até porque há novos desafios na rede a que vou ser chamado a partir do próximo Outono). Veremos.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Episódios e Meteoros - 91

Heresias, Islão e tentações involuntárias
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(publicado desde ontem no Expresso Online)
(Ver também no meu blogue de crónicas)
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Transgredir sem dar por isso é um dos mais extraordinários dons do ser humano. Nos seus mundos, animais e plantas sabem bem que a violação de regras é sinónimo de vida ou morte. Entre os humanos, por mais feéricas e rígidas que sejam as leis, existe sempre a deliciosa margem da tentação, mas sobretudo a capacidade de pisar o risco de modo totalmente involuntário. Nem sempre a inocência e a ignorância são causas desse dom transgressor. Muitas vezes é apenas o acaso, a simples errância ou o devaneio. Foi o que aconteceu comigo, já por duas vezes na vida, face a face com o Islão.
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Primeira história: recuemos uns aninhos e entremos, lado a lado, com a minha memória na esplanada das mesquitas. Melhor: entremos no que resta do antigo Templo de Salomão. Em frente, a Mesquita da Rocha e, à direita, a famosa Mesquita de Al-Aqsa. A primeira, a matriz do que viria a ser a história de toda a arquitectura islâmica; a segunda, o berço da tradição do Miraj, ou seja, da ascensão de Maomé aos céus (facto criado pelas tradições orais e não pelo verso cunhado e "recitado" do Alcorão). Deslizo lentamente por este terreno que é, decerto, um dos mais mitológicos do mundo. E, distraído, acabo por entrar nas centenárias portas de Al-Aqsa.
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Até aqui nada de novo. Só que me esqueci de tirar os sapatos. Por trás de mim, ouço subitamente gritos: vozes que quebram o silêncio, vozes que me fazem imaginar espadas em forma de crescente e o rumor daquelas batalhas que, nas profecias da Idade Média, eram reportadas com o sangue a chegar à barriga dos cavalos. Não sei como, mas consigo sair dali do mesmo modo que o sorriso de Adão se terá curvado, um dia, diante dos insondáveis caprichos de Eva. Em minutos, não mais, estou na Via Dolorosa a comer o precioso grão do khumus e a lembrar-me da açorda que se come no Alentejo.
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Segunda história: passo por Vilar Formoso, compro um presunto e entro, dia e meio depois, no meu bairro em Amesterdão. No dia seguinte, vou à rua comercial mais próxima, o Dique de Haarlem (Haarlemerdijk), e, num repente, coloco o presunto de porco sobre o balcão da loja dos meus amigos marroquinos. Após tantos anos de confidências e empatias (para além da óptima azeitona e da alquimia dos coentros), faz-se um silêncio de morte. E eu sem perceber porquê. Até que de um nada (inexplicável) abruptamente se fez luz. Lembro-me que passei o resto dos anos que vivi na Holanda a pedir desculpa.
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A propósito destas incursões meio acrobáticas, devo confessar que nunca mais esqueci um poema de Ibn Sâra de Santarém. Um poema que descreve o olhar de quem vem de fés ou respirações diferentes e entra, sem mais, em aquário alheio: "Olho sempre a tua face com apreensão:/ eras a água clara onde abundam/ os crocodilos". De facto, nem sempre abundam crocodilos no lago. Como nem sempre há leões na arena. Embora a épica que mais atrai os humanos seja a que é percorrida pela tragédia diária: histórias de leões e crocodilos em sangue, histórias de transgressão involuntária que acabam em contenda, enfim - histórias letais.