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sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Os vilipêndios e o poder temporal

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Almeida Pereira voltou atrás e, de um momento para o outro, recusou o convite do ministro da justiça (que antes aceitara...) para dirigir a Polícia Judiciária do Porto. Num comunicado interessante e curto, o magistrado explicou a súbita recusa, alegando ter sido «objecto de calúnias, infâmias e vilipêndios de proveniência nunca assumida», desde o momento em que se tornou pública a possibilidade de se (re)posicionar em terras invictas. Um dia, far-se-á a história da real influência papal (em vários sentidos) nestas e em muitas outras ocorrências. Ou pensam que o relvado é um reino que cabe apenas dentro das quatro linhas? Não haja ingenuidade: há reinos de impunidade de que nem Garibaldi gostaria de se aproximar. Os próximos episódios prometem: as nomeações que se seguirem terão sempre em conta, não tanto o que é uma polícia, mas sim o cheiro de um balneário. Enganar-me-ei?

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Risos - 10

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Hoje... começo o dia com um tom bastante incorrecto. É daqueles posts que 'parecem mesmo mal' (acho o máximo esta dupla 'parecer bem' e 'parecer mal' em Português maiúsculo: um refinamento). Pois, o texto é do Pasolini, personagem não muito aconselhável politicamente, mas genial noutros universos. A propósito, lembro-me de ter visto, em 1981, na 'Casa da Comédia', A Paixão segundo P. P. Pasolini (por La Feria, imagine-se) e o cenário, caótico e desnudado, extravasava fantasmas e encarava o cânone com grande inteligência. Mas deixemo-nos de preparativos e avancemos para a carne do post. Tudo se passa no meio de uma cena erótica. A certa altura, Pasolini deixa o leitor respirar um bocadinho e escreve o seguinte (não liguem ao nome, certo?):
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“Era isso, Carmelo acariciava a cabeça de Carlo como se acaricia a cabeça de um cão; ou melhor, de uma cadela. Por instantes Carlo contemplou, por assim dizer, esta situação: Carmelo acariciava-o como se acaricia uma cadela”
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(Petróleo, Editorial Notícias, Lisboa, 1992/1996, p.289)

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Público e ocioso

Que fazer quando um desses advogdos que a Vodafone contrata para cobrar dívidas contacta um cidadão desprevenido que não tem, ao seu alcance, a possibilidade de provar que nada deve?

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Risos - 9

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E depois não se diga que o bigode não é a ausência de um legado forte e impiedoso. Para alguns, não passa de um seguro pessoal muito fora de moda. A palavra a Boris Vian:
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“Não esquecendo o horrível bigodinho que cultivava perversamente por cima do lábio, impedindo os insectos de o atacar e cobrindo-o com uma rede. Durante o dia, para que os pássaros nem sequer o tocassem.”
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(Boris Vian, A festa-surpresa de Léobille em Ficções, Revista de contos - de humor, Visão, Lisboa, 2003, p.149)

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Risos - 8

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E há um diálogo agudo, breve e especioso, escrito naturalmente por Hemingway, que coloca em cena o coronel Cantwell e Renata. No fundo, trata-se de definir a excitação como uma cascata que, de repente, se transforma em erupção:
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“Quando se quer a lua e muitas estrelas e viver com um homem e ter cinco filhos, olhar-se ao espelho e fingir de mulher não é coisa muito excitante.
-Então vamos casar imediatamente.”
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(Na Outra margem, entre as árvores, Edição Livros do Brasil, Lisboa, s/d, p.111).

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Pré-publicações - 77

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Mircea Eliade, Diário Português, Guerra e Paz, Lisboa, 2008
(tradução do romeno e notas de Corneliu Popa e estudo introdutório de Sorin Alexandrescu)
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Pré-publicação:
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"21 de Abril"
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"Estou em Lisboa desde 10 de Fevereiro. E há meses que não escrevi nada, nem sequer cartas inteligentes. Interrompi o meu diário íntimo à saída da Roménia a 19 de Abril de 1940. Teria sido inútil escrever as minhas impressões. Sabia que não poderia sair da Inglaterra nem com uma página manuscrita que fosse. E depois, tinha medo que me fizessem uma busca. Se tivesse escrito regular e honestamente o diário, teria sido obrigado a recordar tantas conversas importantes com políticos ingleses, tantas confidências de cuja divulgação dependeria a liberdade e até a cabeca de uma pessoa. Tento sempre refrescar os dados, para poder redigir, algum dia, as minhas memórias de Inglaterra.
Mas hoje começo este diário completamente por outras razões. Nina* foi a Bucareste, há uns dias. Estou sozinho por quatro ou cinco semanas. A suspensão de qualquer trabalho responsável, há tantos meses, a pressão política – com a qual vivo –, a preguiça mental, o abandono dos meus manuscritos em Oxford, a pobreza intelectual de Lisboa – tudo isto me ameaça com uma lenta degradação. Sinto a necessidade de me reencontrar, de me concentrar."
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* Nina Mareş, mulher de Mircea Eliade. (N. do T.)
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"28 de Abril"
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"Grande manifestação popular em homenagem a Salazar. Com alguma dificuldade encontro um lugar na Praça do Comércio, uma hora e meia antes da hora marcada. Tenho um lugar na varanda do Ministério das Finanças, no segundo andar. Um mar de cabeças na praça. Imensas crianças e jovens. Há algumas horas que se disparam salvas com vários tipos de canhões, da terra e do rio. Aqui, na praça, os estrondos são tremendos. Estremeco; faz-me lembrar Londres.
Às seis aparece Salazar na varanda. Ruge toda a massa viva a seus pés. Com alguma dificuldade, debruçando-me bastante sobre a balaustrada, consigo ver-lhe o perfil. Veste roupa simples, cinzenta, de passeio – e sorri saudando com a mão, comedidamente, sem gestos. Quando ele apareceu, do alto começaram a despejar cestos com pétalas de rosas, cor-de-rosa e amarelas. Observei, mais tarde, enquanto um jovem falava num palco no meio da praça, como Salazar brincava pensativo com algumas pétalas que tinham ficado na balaustrada. Depois vi-o falar. Lia com bastante calor, mas sem qualquer ênfase, levantando de quando em quando os olhos do papel e olhando a multidão. Levantava a mão esquerda, mole, pensativa. Uma voz nunca estridente. E, no fim da leitura, quando a praça o ovacionava, inclinava sorridente a cabeça. Parece que nem sentia a força colectiva esmagadora a seus pés. De qualquer modo não era prisioneiro dela, nem sequer se deixava sugestionar por ela."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Episódios e Meteoros - 72

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E não é que… Zapatero ganhou as eleições!
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(crónica publicada, desde quinta-feira, no Expresso Online)
(ver também no meu blogue de crónicas)
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eZapatero disse que ia “começar a dramatizar”. Disse-o sem saber que estava a ser ouvido. E toda a gente ficou muito consternada. Como se isso não fosse a coisa mais normal do mundo. De facto, entre aquilo que um político normalmente diz e aquilo que poderia dizer vai uma certa distância, mas essa distância tem um nome: a realidade.
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Se virarmos o holofote para a nossa própria vida, verificamos que assim é. Repare-se: entre o que vivemos no dia-a-dia e aquilo que conjecturamos ou pressupomos vai a tal distância que nos dá a medida da realidade. O horizonte que nos faz imaginar e prever possibilidades é tão importante como aquilo que nos vai acontecendo momento a momento. A noção de realidade vive deste vaivém ininterrupto, espécie de boomerang que ninguém consegue alterar.
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Só que, quando Zapatero disse o que disse, ficámos subitamente desprovidos do nosso habitual poder de conjecturar ou de pressupor. De repente, vimo-lo a dizer o que teríamos imaginado que ele podia ter dito. Por um momento, o que estava a acontecer e aquilo que podíamos ter pressuposto fundiram-se num único evento. E foi isso que gerou o sobressalto. Ou a consternação. Foi como se a realidade se tivesse tornado numa bofetada.
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Imagine-se que ouvíamos, todos os dias, em “off”, o que Pinto da Costa diz aos seus mais próximos sobre o Apito Dourado, o que Santana diz aos santanistas sobre Menezes, o que Sócrates diz a Silva Pereira sobre Alegre, o que Obama diz à mulher sobre Hillary, o que Blair diz ao Papa sobre Sarkozy ou o que Lula diria a Soares sobre os pastorinhos de Fátima. Não é preciso ter grande veia de dramaturgo para começar a escrever estas vozes, deixas e ‘boquinhas’. Fechamos os olhos e começamos, de imediato, a ouvir a voz de todos estes personagens com cristalina clareza. Mas se os ouvíssemos, tal como ouvimos Zapatero, lá se ia o prazer e lá se ia o nosso poder de celebrar a própria realidade.
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Visto de outro modo: quando se diz, em alto e bom som, o que apenas se imaginaria em privado (um “off” que se torna desconcertantemente “on”), as pessoas riem. É o que as faz ver ao espelho. E é o que as faz desmonstar este jogo sem fim entre o dito e o não dito. O rei de Espanha provou-o frente a Chávez, do mesmo modo que Chávez sempre o provou frente a Bush; João Jardim provou-o frente a Sócrates, do mesmo modo que Berardo sempre o provou a quem quer que fosse. Temperamentos.
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Provavelmente, Zapatero encontraria a vocação de bobo se assim se comportasse; ao invés, apanhado e desprevenido, Zapatero ganhou em revelação e em imaginação. Só que no-las roubou. Restituí-las vai ser obra de dias. Hoje, véspera da campanha eleitoral espanhola, já o teatro das luzes ilumina outras cenas. O povo sempre gostou de lanterna mágica, de truques ópticos, de circo e de cinema com efeitos especiais: ver e deixar de ver ao mesmo tempo. Ser e deixar de ser ao mesmo tempo. Estar “on” e “off”, alternadamente e como modo de vida. Já se ganhou uma eleição por menos.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Risos - 7

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Aldous Huxley colocou, um dia, na boca de Spiller uma tal organização mental que acabou por não resistir ao precipício de veludo, ou seja, à flor do riso. Ela mesma. Ouçamo-lo com candura:
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“Por exemplo – disse Spiller – eu, indubitavelmente, sei que todos os homens são mortais. Mas esse conhecimento é organizado, recebe uma forma definida, e até verdadeiramente enriquecido e aprofundado quando Shakespeare se refere a todos os nossos ontens que alumiaram para uns tolos o penumbroso caminho da morte.”
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(O Monóculo em Duas ou Três Graças, Livros do Brasil, Lisboa, s/d, p. 183)

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Risos - 6

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O cómico e o trágico nem sempre se opõem. Bem pelo contrário. O início de Caramanchão, um dos contos de Raymond Carver que integra o seu livro De que falamos quando falamos de amor, é uma espécie de vaivém entre o devaneio sexual e um inexplicável aceno noir que ilustra bem essa curiosa confluência:
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“Nessa manhã, ela despeja uísque Teacher sobre a minha barriga e lambe-o todo. À tarde, tenta atirar-se pela janela”.
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O segundo período aparece realmente de modo inesperado. De tal modo que a regra nem se chega a expor ou a ocultar, tal como acontecia na antiga tradição délfica. À pergunta “por que se atira Holly pela janela?”, corresponderão sempre mil possibilidades em aberto. Ao fim e ao cabo, após a leitura do conto, constatamos que o caso está longe de qualquer cenário mais verosímil.
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(Raymond Carver, De que falamos quando falamos de amor, Teorema, Lisboa, 1974/1987, p. 23).

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Risos - 5

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Neste excerto de Filhos e amantes, D. H. Lawrence joga com as proporções. Não as divinas, claro. E tudo por causa da medida temporal sugerida pela Srª. Radford:
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“Abriu os olhos e viu a Srª. Radford, grande e majestosa, a contemplá-lo. Trazia na mão uma xícara de chá.
- Tencionava dormir até ao Dia do Juízo? – perguntou.
Ele começou a rir e disse:
- Não deve ser mais que cinco horas.”
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(D. H. Lawrence, Filhos e amantes, Portugália, 1970, p. 434)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Risos - 4

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O jogo de sensações que se estabelece entre o escrivão e o protagonista de O Estrangeiro de Camus é, a certa altura, coroado pela generosa e quase misericordiosa intervenção do juiz:
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“A cada frase, ele dizia: «Bem Bem». Quando cheguei ao corpo estendido na areia, aprovou-me, dizendo: «Bom». Quanto a mim, estava cansado de repetir a mesma história e tinha a impressão de nunca ter falado tanto. Depois de um silêncio, o juiz levantou-se e disse que me queria ajudar, que o meu caso o interessava e, com a ajuda de Deus, faria qualquer coisa por mim”.
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(A. Camus, O Estrangeiro, Edição Livros do Brasil, Lisboa, s/d, pp.142/3)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Risos - 3

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Tinha razão. O riso faz de fio de prumo entre a candura da manhã chuvosa ou solar e o refinado espectáculo da morte. Cocteau sabia-o bem:
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“A srª. de Bornes levou-a (a Henriqueta) para um sanatório de Auteuil. Morreu, dois meses depois, de uma doença que não era mortal. Por outras palavras, apesar das precauções tomadas, suicidou-se tomando veneno”.
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(Jean Cocteau, Thomaz, O Impostor, Edição Livros do Brasil, Lisboa, s/d, p.187)

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Risos - 2

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Ao referir-se ao ornato de bronze das cadeiras, de onde sobressaem algumas folhas de parra nos “frisozinhos das bordas”, a senhora Verdurin afirmou: o “meu marido acha que não gosto de frutas porque as como menos do que ele. Mas não, eu sou mais gulosa do que vocês todos, só que não tenho necessidade de as pôr na boca, porque as saboreio com os olhos. De que é que estão rindo? Perguntem ao doutor, e ele lhes dirá se essas uvas me purgam ou não”.
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(Em Busca do Tempo Perdido - 1, No caminho de Swann, Livros do Brasil, Lisboa, s/d, pp. 208/209)

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Risos - 1

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O que expulsa o riso da atmosfera do milagre é afinal a sua frequência.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Volta ao Mundo - 15

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Partiram em Setembro e ainda não chegaram sequer ao meio da volta ao mundo. Estando já em Pequim, a Clara e o Miguel enviam-nos hoje uma mensagem sobre a grande barreira de corais (para trás, relembro, já ficaram muitas outras terras e crónicas: Madrid, Havana, Galapagos, Quito, Buenos Aires, Ushuaia, Polinésia, Ilha da Páscoa, Nova Zelândia; com passagens por Tahiti, Moorea, Huaihine e Raiatea). Enfim, envio daqui mais um grande e saudoso abraço e passo a publicar a 15ª epístola aos lusitanos:
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"Grande Barreira de Coral e Pequim"
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"Concentro-me no espaço ínfimo entre mundos e vivo esse momento. Viajar tem destas alturas. Em que estamos apenas no meio.
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Abro os olhos sem sono e mergulho no mar de coral. Ouço as cores, os peixes, a transparência. Não sei o que dizem. Entrei num mundo de outras histórias. A razão, as palavras, o poder do argumento ficaram no barco. Aqui entramos despidos de nós. Ouve-se com a pele, trocam-se os sentidos. É um peixe papagaio que me mostra o caminho. Espirais amarelas, azuis, negras, atravessam-me o horizonte. São ritmos. E hábitos. E texturas. Enormes e invisíveis, que participam ou se disfarçam, que aparecem do fundo ou do improvável. Vidas que me espantam a cada gesto de diferença. E eu, sem peso, sem respiração, sou mais do que um silêncio apesar de sem voz.
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Abro os olhos sem sono e dou um passo para a rua. Oiço o vermelho, as vozes, o fumo. Não sei o que dizem. Entro num mundo de outras histórias. A opinião, as palavras, o poder do meu querer ficaram no quarto. Aqui entramos despidos de argumentos. Um casal oferece ao filho um papagaio de papel, uma explosão de cores presas à mão por um fio. Sigo-o por um instinto. E estou na multidão. De hábitos. E ritmos. E texturas. Tudo está a acontecer. Vende-se o puro e o improvável, com gritos ou no disfarce. Jogos, comida e meias juntam-se aos cantos de um qualquer fundo. A cada passo uma tradição, uma vida que se junta a outro alguém. Do nada, um fogo-de-artifício espanta os gestos de tanta diferença. E eu, com o peso dos cheiros e sem respiração, sou mais um silêncio que não precisa de voz.
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Viajar tem destas alturas. Em que não há mundos que nos separem."

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Meio século de vida

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A BIC faz meio século de vida. Pode dizer-se que temos uma pequena diferença de idade. E o que já fizemos juntos! Até 1991 - data em que tive o meu primeiro PC - praticamente tudo. Depois, quando passei outra vez a escrever os livros à mão, mais uma vez tudo. Os vídeos da longa vida da BIC estão aqui. Vale a pena voltar a vê-los.

Falar em seco

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Ontem voltou a não haver debate no Prós e Contras da RTP-1. O tema era a justiça. Mas toda a gente sabia que o tema era outro. Só que, em Portugal, ninguém trata as coisas pelos nomes. É algo que gira entre a hipocrisia e, neste caso, talvez, o medo.
O tema real era Pinto da Costa, era um qualquer mandante de uma agressão ou tentativa de assassinato e era o peixe graúdo do "Apito Dourado", agora substituído pelos pobre diabos lançados subitamente à arena: o perfume da Avenida da Boavista e o pobre do Futebol Clube de... Gondomar.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Cerveja e literatura - 67

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“Apercebi-me de que uma garrafa de cerveja castanha vazia rolava atrás de nós como uma ratazana barulhena. Seguiu-nos até Jane Street e West Side Highway. Vivian deu um pontapé e subimos as escadas do hotel feito de tijolo vermelho com aquela torre de forma estranha no topo.”
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Assim fecha o capítulo III deste romance de Jennifer Belle. E fique a saber-se que Vivian é uma personagem que já sobreviveu a várias mortes: “o primeiro marido tinha-a atirado de um oitavo andar” e o segundo tentou “incendiá-la”. Enfim, a aparição da cerveja equivale a um monstro que quer parecer simbolizar este destino mais-do-que-trágico. Mas, de qualquer modo, vivo. E sobrevivente.
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(Jennifer Belle, Por aí abaixo, tradução: Rita Graña; Teorema, Lisboa, 2005, p. 20)

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Um novo modo de convicção

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Na crónica da próxima quinta-feira (do Expresso Online), traçarei uma analogia entre duas tentativas obsessivas de demonstração: a primeira, até 2003, baseada na necessidade de provar ao mundo a existência de armas de destruição em massa no Iraque; a outra, desde há dois anos a esta parte, baseada na urgência em encontrar provas irrefutáveis para a existência de voos ilegais da CIA com destino a Guantanamo. Em ambas, imagina-se que uma aguerrida determinação (ou crença) pode transformar um desejo - ou uma ilusão - em realidade. Seja como for, este processo alquímico mais ou menos bizarro traduz um modo de pensar do início deste século: aliar a instantaneidade do convencimento à simulação da prova. Um novo modo de convicção. Pós-ideológico, claro. Mas com ressonâncias que vêm doutros tempos.

O cogumelo falador

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A descoberta de um novíssimo meio convidou a blogar. Tal como acontece, quando se chega a uma terra nova: fascinamo-nos com o novo ar, com as novas companhias, com as novas anunciações e rotinamos. Até que a planura do tempo se iguala à redenção do balanço. Um dia, fazem-se três trabalhos de fôlego; noutro dia, um elementar breviário; e, noutro dia ainda, um explicativo maior. Comparamo-lo com o das freguesias de tendência e verificamos que é amplo, de céu largo e recomendado como o seria uma boa nascente de água fresca. E depois o niilismo aparece de onde e por onde menos se espera. Sempre foi assim: um cansaço com a amplitude de um caule que depois toma conta do céu: cogumelo especioso e raro. Porém, resoluto. É assim que me encontro. Sentado na poeira entre a rede e os troncos, abaulada a visão e o cenário. O cão ao lado e um blogue por preencher, por linkar, por decidir. Até amanhã.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Cerveja e literatura - 66

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O projecto cervejeiro e literário merece ser reatado no Carnaval. Não por desprimor e muito menos por primor. Antes pela metáfora da espuma que bem traduz esta oscilação ritual com que nos acenamos, ano a ano, de máscara invisível na mão:
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"Glenn agarrou-lhe um braço, passou-o sobre os ombros e arrastou-o inclinado e cambaleante, por um corredor que tresandava a cerveja, até um urinol onde havia urna torneira de água sobranceira a uma pia. Less meteu a cabeça debaixo da torneira e deixou-se ficar. Depois pediu a Glenn para ir buscar uma toalha ao empregado do bar. Alguns minutos depois Less tinha-se recomposto o bastante para cambalear direito à mesa e sentar-se a beber a cerveja. Puxou o cabelo molhado para trás, com os dedos papudos, e alçou a cara, franzida num esforço para encarar Glenn."
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(John dos Passos, Aventuras de um jovem, Editorial Notícias, 1963, Lisboa, pp. 310/311; Participação: Alberto Magalhães)

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Supermen in flight

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Sarah Boxer escreve sobre blogues no New York Review of Books que me chegou hoje a casa (Vol.LV,Nr.2; Feb.14/08, pp.16-20). E trata-se de um artigo de fundo - não muito inovador na minha modesta opinião - de mais de três largas páginas. No final, escreve-se:
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"Bloggers at their computers are Supermen in flight. They break the rules" (...)" They are what they write".
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Vale a pena ler. Até porque destaca o design do blogue de Wonkette, justamente o que, na origem, inspirou esta minha versão do Miniscente.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Episódios e Meteoros - 68

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(crónica publicada, desde quinta-feira, no Expresso Online)
(ver também no meu
blogue de crónicas)
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A crise é o maior desejo do nosso tempo
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Os tempos de crise são tempos interessantes. Quando dizemos crise, estamos a dizer o modo como percebemos a actualidade. Já lá vai o tempo em que andávamos a interrogar oráculos ou a procurar nas entrelinhas das “Escrituras” as respostas para tudo. A ideia de crise veio substituir todas essas demoras. A crise é, no fundo, um jogo de expectativas que se tenta aproximar da realidade, embora se saiba que esta é sempre mais complexa do que todas as receitas. Um jogo fascinante, por isso mesmo. Nos últimos dias, ao ler a imprensa económica, verifiquei que este fascínio se deixou impregnar, como é habitual, por visões apocalípticas.
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À partida, o diagnóstico é claro: "Afinal, estava tudo preso por arames, arames farpados de excesso de dívida varrida para debaixo dos tapetes…”. A imagem do arame farpado não esconde a “…ironia suprema: os bancos desconfiam mais dos bancos do que das empresas. Não emprestam dinheiro uns aos outros” (
Pedro Santos Guerreiros).
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Estando o mal à vista, os intérpretes passam a consagrar esta nossa época como uma espécie de ‘fim de caminho’. Faz parte do pensamento apocalíptico dividir a linha do tempo em buracos negros onde, subitamente, o gelo e fogo parecem dar conta de tudo. Repare-se: "Está assim estabelecido o cenário para os próximos anos. O petróleo passou a ser caro e as empresas não possuem margem de manobra para fazer repercutir os seus custos nos clientes finais…” (Pedro Sousa). E nada melhor do que ciclo e contraciclo para demarcar uma era: “A incerteza económica tenderá a beneficiar títulos mais líquidos e menos cíclicos" (Cristina Casalinho) e “…se em campanha presidencial vingam as promessas de política anticíclica, os défices orçamental e da balança de transacções correntes vão cortar as veleidades do sucessor ou sucessora de Bush…" (João Carlos Barradas).
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Feito o diagnóstico e definida a era apocalíptica, os nossos comentadores entretêm-se, depois, a descrever o presente. As metáforas são encantadoras e dão ênfase a imagens de um corpo doente ou das agruras da natureza.
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Tudo começa pela gordura e pelo coração: “Se olharmos para a crise espoletada pelo ‘subprime’, descortinaremos que a felicidade da gordura americana” – desenquadrada, aliás, da “realidade” – e o próprio “…coração do sistema financeiro” começaram a entrar “em colapso” (Fernando Sobral). Do coração à pneumonia vai um passo: “Uma constipação nos EUA ainda tem força para provocar uma pneumonia global” (André Macedo). Mas há quem fale mesmo em cortar os pulsos: “Numa economia altamente endividada como a portuguesa, isto são motivos suficientes para dar vontade de cortar os pulsos” (Bruno Proença).
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À volta deste corpo quase mórbido, o cenário apocalíptico é também dominado por turbulências ("Samuelson atribui em boa medida a turbulência actual ao relaxamento dos guardiães do sistema financeiro….” - Francisco Ferreira da Silva) e por tornados (“Restam as exportações que estão dependentes da economia internacional, que está no meio de um tornado" - Bruno Proença).
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Apesar da música de fundo (“China e Índia juntaram-se aos tenores, mas o ritmo continua a ser marcado pelo eixo Atlântico” - André Macedo), tudo parece apenas apontar para a depressão (“Mesmo que os Estados Unidos escapem à recessão a percepção do eleitorado é depressiva…” – João Carlos Barradas) e para a miragem (“Os próximos anos serão delicados” (…) “a criação de novos empregos na Europa é uma miragem" - Pedro Sousa).
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Já guardo religiosamente os recortes dos jornais que antecederam o início do ano 2000. Mas esta “crise” vai voltar a encher-me os arquivos. Ainda dizem que há distinção entre realidade e ficção!

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Crónica sobre o regicídio

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EPISÓDIOS E METEOROS
- 69 –
(crónica extraordinária, hoje editada no dossiê do Expresso Online sobre o regicídio)
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O regicídio foi hoje
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A minha família é toda de Vila-Viçosa e, embora, tenha nascido e crescido na vetusta Évora, a verdade é que a maior parte da infância, rodopiada entre ecos, brados e segredos de tempos áureos, foi toda calipolense. As tias, as amigas das tias, as vizinhas e as mil personagens que tinham conhecido por dentro a família Espanca, os parentes de Henrique Pousão ou os passos secretos de Bento de Jesus Caraça sabiam tudo sobre a vida do palácio, sobre as aias da rainha e sobre as manchas de sangue do rei assassinado (que, em criança, vi e revi várias vezes à moda de um animatógrafo real), como lucubravam sobre as desventuras arquitectónicas do então jovem Nuno Portas, sobre as aparições de fantasmas nas muralhas do castelo ou sobre as mortes nas ainda incipientes pedreiras de mármore.
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O regicídio era, entre essas lendas e narrativas de fôlego, o tema tabu, mas também o mais rebuscado e tentador. Não havia ainda televisão e, na sala-de-estar da minha Tia Guiomar (uma mulher fabulosa que administrava uma fábrica e representava vários bancos na terra), havia quem tocasse violino, quem jogasse às cartas ou se entregasse aos rumores do chá da meia-noite. Eu abria os olhos e resistia ao sono, mas sem deixar de escutar os desvarios sobre o espiritismo e sobre as freiras fugidas à guerra civil espanhola que amiúde se misturavam com a tragédia real. De facto, a certa altura, as vozes segredavam e evocavam os inúmeros agoiros que haviam precedido a última viagem de D. Carlos entre Vila-Viçosa e o perigoso Terreiro do Paço lisboeta.
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Ainda hoje essas vozes têm condão monárquico, mas apenas por causa da intemporalidade com que se fazem sentir: como num limbo já fora do tempo, mas tão parecido com o abandonado caminho de ferro da vila que se esvai por olivais em direcção às vinhas de Borba, aos mármores de Estremoz, à silhueta de Évora e à mancha esventrada onde submergirá o Barreiro. Hoje, a intemporalidade saiu de cena. E o que ficou em vez dela foi a palavra ´República´ e a palavra ´Monarquia´. Mas não o essencial. Como se um mundo perdido não fizesse, de qualquer modo, parte íntima e intrínseca de todos nós. Como se a máscara teimasse em ser o que não é. Nem nunca será. Porque o regicídio voltou a ser hoje. Mesmo que os pretensos donos da ´História´ pensem que tudo isso é matéria já devorada, expurgada e passada de vez.