É o indiscutível sinal de que vem aí, mais ano menos ano, a reunificação da grande China. Na fotografia, à esquerda, o líder da oposição de Taiwan, Lien Chan, é recebido pelo presidente chinês, Hu Jintao. Parece claro neste cerimonial quase simétrico o desígnio simbólico de suster a tentação independista do reeleito presidente de Taiwan, o senhor Chen Shui-bian. Depois de dar cartas na liberalização do comércio internacional, a China prepara agora aquilo que há sessenta anos parecia ser uma dissensão irremediável. E fá-lo com habilidade, com tempo, ou seja, com uma ilimitada paciência asiática. Chapeau. Escusado será dizer que esta é mesmo a fotografia da semana. Enquanto discutimos datas de referendos, tramas do Tratado Constitucional e as levas da inútil contracultura anti-americana, eles dançam a valsa como muito bem entendem.
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sábado, 30 de abril de 2005
“The novel is supreme in giving us the possibility of inhabiting other minds. I think it does it better than drama, better than cinema. It’s developed these elaborate conventions over three or four hundred years of representing not only mental states, but change, over time.”
sexta-feira, 29 de abril de 2005
Eu leio pouco, ponto final.
Um escritor que o diga está a cometer uma heresia, uma traição. Pois é, eu sou um traidor e um apóstata consentido. Li bastante ficção em tempos, leio hoje esparsamente, mas nada comparado com o que deveria.
Sim: o dever.
Um dever é parecido com um guardanapo branco que se estende sobre o colo em refeição consular. Um dever é também um estilhaço desprevenido que vem ter com o mais incauto. Um dever é, sem sombra de dúvida, um reflexo de luz perdido ou um passeio ao fim da tarde mergulhado no ócio e na mais pura melancolia. Num dever há tudo isso, amalgamado: um belo guardanapo de linho espalmado e recolhido, uma manobra secreta mas algo involuntária e ainda um paso doble com o próprio destino. E quando um escritor não lê o que deveria ler, como parece ser o caso, o que é que lhe poderá acontecer?
Limpa a Vichyssoise com as costas da mão. Distraído, deixa cair no chão os talheres no meio da maior das ausências. Depois, há-de ver-se a olhar em volta, enfastiado, e afastando as moscas como se fosse de avião no meio de indescritível turbulência. Uma vida sem sentido.
Sinto-me assim há anos e anos e sempre em sofrido e recatado silêncio. É um sofrimento brando, mas lento. Uma espécie de dor de dentes a saber a preguiça. E o nervo anima ainda mais o fino fado das gengivas, sempre que me vejo comparado com os vínculos estatuídos por um Fio do Horizonte, pelos questionários mundanos e habituais do JL, pelas bibliofilias almofadadas de alguns blogues e pelas entrevistas aos jovens escritores que já conseguiram integrar a caravana VIP que se desloca, à conta do orçamento do estado, a todas as feiras culturais do planeta. É uma vida sem sentido.
Estamos todos a viver no seio de uma tradição obesa que reproduz, simula ou afirma com a boca, ou com a pena, que se lê obesamente. António Guerreiro escreveu-o, com outras palavras, é claro, no nosso semanário de etiqueta (impossível lincar), lamentando a terrível vaga globalizadora, a mesma que tem colocado a tricolor francesa nos cabos mais remotos do mundo. Lembro-me, a propósito, que, nas Mitologias barthesianas (daqui a dois anos cumprirão meio século), os escritores em férias eram demoradamente retratados como seres dotados de cachimbos pensantes. Liam tudo, liam como bravos, liam todos os clássicos. Liam como se fossem já e sempre, eles mesmos, clássicos. E depois diziam em coro que “Ceci n´est pas une pipe!”. Só não liam a hemorragia de livros-produto-light que hoje se dão à estampa de sete em sete minutos. Mas estou em crer que se hoje vivessem, esses escritores leriam tudo. Linha a linha, livro a livro, tal como qualquer respeitável comentador semanal ou cronista diário o faz serena e silenciosamente.
Caso contrário, tudo isto seria uma vida sem sentido.
Não é que eu leia assim tão pouco, mas jamais o suficiente. Li o José Gil, é certo, mas só li a entrada do Museu do Louvre do Dan Brown e os halos finais de S. Tomé pela letra de Miguel Sousa Tavares. Para além de ensaios geralmente obrigatórios (nem cito autores porque esses são de facto muitos), nos últimos meses, li Roth, Don DeLillo e algum belíssimo Oz, mas não levei até ao fim o último McEwan ou o já quase ilegível Lobo Antunes (e limitei-me a raspas no que diz respeito a Sebald, Baxter, Bobin, Hoagland, Appery, Cunningham, Nothomb, Wendel, Zuravleff, Delaroche, Pietrzyk, McGarry ou Slavin. Ena tantos!). Depois, confessemo-lo de Guiness na mão, é verdade que existem escritores como Rubem Fonseca ou Patrícia Melo de que jamais acabarei de ler um livro completo, não por enjoo ou sequer tédio, mas porque adoro mastigá-los a meio caminho, como se lhes sorvesse o ritmo, a delonga da intriga e as manobras da linguagem sem nada fazer. Quieto como um pinguim no pólo sul, ou como uma lagartixa no mais denso vórtice de Agosto. Terrível preguiça, a minha.
Pois é: uma vida, afinal, sem grande sentido.
Ou seja: em sentido diante da fúria ridícula e mascarada que manda fazer o que ninguém quase faz.
quinta-feira, 28 de abril de 2005
Escreveu Rodrigo Moita de Deus:
"Em Portugal existem três ou quatro intelectuais e nenhum deles aparece na televisão, subsidiar teatros é estar a pagar aos amigos, inaugurar bibliotecas é um desperdício de dinheiro e a esmagadora maioria da esquerda pensante roça o analfabetismo cerebral."
Brilhante. Trata-se daquele brilho do Bloco de esquerda, mas dotado de inversão especular.
Sobre essa espécie ainda designada no post de R.M.D. por "intelectuais", devo dizer que o diagnóstico me espanta pela hipérbole e sobretudo pelo ponto de vista do observador.
Já quanto à arte da talma, e pesando alguma solidariedade pela visão (é esse o étimo do apocalíptico), creio que, de facto, Portugal é um país onde, numa esplanada, três pessoas observam outras três. Fiquei assim a compreender melhor o ponto de vista do autor da máxima acidental.
A referência às bibliotecas deve ser profunda, alicerçada e penetrante, já que eu, sinceramente, não fazia a mínima ideia de que a esquerda era afinal uma súmula de bibliotecas. E a direita... serão só os bibliotecários, ou os leitores, ou as cotas? (há certas coisas, francamente, que eu não entendo nesta inteligência voraz que, seja para o que for, decidiu dividir o mundo, para sempre, em esquerdas e direitas).
Por fim, abordando o sublime "roçar" do "analfabetismo cerebral": gosto da expressão, porque denota alguma leitura de Damásio, para além de libertar afectos face ao objecto (mais ou menos) analisado. Mas já agora, a propósito do "Proto-si" damasiano: esse roçanço não aparece tanto na esquerda como na direita, ou, se se preferir, em sentido contrário, tanto na direita como na esquerda?
A rematar, uma pergunta razoavelmente humilde: existirá uma natureza humana?
Eis o post "Saber o seu lado", publicado pelo BdE (II) há uns dias e explicado agora às crianças:
- Deixem-se de filosofias, de merdas pessoais, de argumentos cansativos e de expressões que apenas revelam a singularidade da vidinha. Façam mas é campanha pelo A e contra o B, prontos!
No regaço da simpática acusação retórica referia-se o Miniscente e visava-se abertamente um belo texto de Maria Filomena Mónica aqui publicado.
"A qualidade de um romance é inversamente proporcional à sua capacidade de dizer alguma coisa inteligente sobre ele.
Coisas muito inteligentes podem ser ditas sobre romances ruins: eles foram planejados para isso mesmo. Quanto mais burra a pessoa, mais coisas inteligentes dirá sobre um romance. O melhor romance é o que apresenta mais dificuldade a que se mencione Platão ou Aristóteles na sua crítica. O bom romancista faz isso de propósito: interrompe a escrita para rir e pensa: “Quero ver falar de Platão agora, filho da puta.” "
Os blogues estão a crescer em todo o mundo a um ritmo só comparável ao da implantação do correio electrónico nos anos noventa (basta dizer que, há um ano, havia cerca de dois milhões de blogues no planeta e que, durante este último ano, houve um crescimento da ordem dos seis milhões!). Vejamos os números tal como foram agora apresentados pela Business Week:
r
Total de blogues
Dez. de 2004 - 5,400,000
Dez. de 2003 - 1,400,000
r
Em muitos países (China, Irão, Egipto, etc.), como refere o estudo da Business Week, os blogues estão a tornar-se numa verdadeira alternativa àquilo que seria um universo mediador do espaço público, na perspectiva que dele temos no ocidente. O que dá para concluir que a democracia se está a globalizar, dia após dia, cada vez que humildemente carregamos em "Publish Post". Continuemos!
quarta-feira, 27 de abril de 2005
Na Holanda, no dia 30 de Abril celebra-se o “Dia da Rainha” (Koniningedag). É uma designação mais formal do que tutelar, na medida em que o povo holandês faz desse dia uma festa nacional exuberante que ultrapassa em muito a etiqueta e o plano tácito da tradição monárquica. Na prática, trata-se de uma espécie de carnaval à moda dos latinos do norte que todos os mortais deveriam ver uma vez na vida. Há outros países europeus (e não só) onde os dias nacionais se convertem em pura celebração através de um movimento espontâneo ascendente e profundamente mobilizador. Ao contrário, Portugal tem uma série de dias que tutelam a natureza da festa (25/04, 10/06, 01/12), mas em nenhum deles o povo português "assume", acata e preenche essas 24 horas com a expressão lúdica e viva de um contentamento que fosse capaz de atravessar, de um lado ao outro, toda a nossa sociedade.
Por que será?
terça-feira, 26 de abril de 2005
A importação de camisolas oriundas da China aumentou 534% no primeiro trimestre deste ano (não é engano, não: quinhentos e trinta e quatro por cento em três meses!). E eu pergunto:
O que significa uma camisola fabricada, hoje em dia, na China?
O que significa a confluência, recente mas não eterna, do comunismo com o capitalismo sem regras na China?
O que significa a vontade proteccionista europeia e o seu estado social, quarentão mas decerto não eterno, face a esta camisola chinesa?
O que significa hoje a Europa, quando enterra a cabeça na areia para recusar com dramatismo a globalizada camisola chinesa?
Qual o futuro possível da camisola Chinesa?
Qual o futuro real da Europa?
Quererá a Europa que a globalização varra naturalmente a própria Europa do mapa, ou quererá a Europa preparar-se para um novo mundo - o mundo do presente - que parece nem sequer querer ver, imaginar ou admitir?
É esta a breve história da camisola irrespondível.
Regressei à base, após três dias de incursão pelos interiores a norte do nosso pequeno país. O Douro de socalcos ainda a germinar, as macieiras em flor na estrada de Penela, o vale do Côa, a excelente Penedono ou a terra de D. Magriço, os castanheiros de Sátão, a memória e o brilho dos anfitriões de Paredes da Beira, o sabor divino dos míscaros e as vistas magníficas do castelo de Trancoso, a confusão da Régua, a placidez de Lamego, a depuração sóbria do Grão Vasco viseense, a vertigem de São Salvador do Mundo junto a S. João da Pesqueira, o recolhimento das proporções em Marialva, o uivo dos lobos na Soutosa de Aquilino, as alheiras da Torre de Moncorvo, o passeio de barco a leste do Pinhão, os foguetes na noite fria dos céus de Moimenta, a serenidade das margens no Pocinho, o fim da tarde de Celorico e as novas auto-estradas a sul da Guarda que fazem de antigos pesadelos um regresso célere (embora com os perigos da indigente, indígena e lusitana fúria).
sábado, 23 de abril de 2005
Entre hoje de manhã e o fim da “ponte” (palavra tão sequiosamente ignara!) andarei pelo Douro. Estarei em lugares de que só conheço o nome: Paredes da Beira, Pinhão, Carrazeda de Ansiães, Vila Flor, Torre de Moncorvo, Côa ou Marialva. E esperam-me, já reservadas, algumas surpresas perigosas que dão pelo nome de míscaros, posta ou chanfana. Irei à procura destes nomes. Até breve.
Eleições, correrias, paredes dominadas pelo excesso de presença. Tinta, grafos, letras, rostos rápidos, adjectivos e advérbios à parte. Nuvens altas, palavras ditas, soletradas na televisão com vagar heróico e uma imensa amálgama de quadros, tantos tantos quadros talvez de cartolina com números e mais números desenhados à mão pela noite fora: a televisão era um ecrã oval e lento. Do outro lado, era a palavra revolução, a revolução, a revolução, era a arma do povo, era o tabaco, era a surpresa, eram as sandálias do pescador, eram mesas redondas, eram os partidos. E o país, sim, o país era um país muito atrasado à procura de um sentido.
Eram filas e mais filas para votar. Filas intermináveis. Era um país quase rural integralmente no meio da rua. E o que era um voto? Era uma coisa ainda única e sem quaisquer precedentes. Lembro-me de ter visto pessoas libertas, sim, isso é verdade. Mas não vi pessoas livres. Iam, todas, quase todas, atrás das procissões respectivas e não encaravam o porvir e o agir como uma disputa e uma escolha de cada um.
sexta-feira, 22 de abril de 2005
A crónica de Maria Filomena Mónica, hoje publicada no Público (clicar Imprensa), é um dos melhores e mais lúcidos textos sobre a questão do aborto que tenho lido nos últimos tempos. Sucinto, claro e irónico q.b., não só aflora a rotunda falta de iniciativa e de coragem que grassa na sociedade portuguesa como trata por tu o pseudo-espaço público nacional, dominado que continua a ser pelos que vêem na questão do aborto um irredutível campo de batalha onde as certezas mais radicalizadas, de um lado e do outro, são sempre unas, indiscutíveis e impositivas. Deixo aqui dois extractos:
"Curiosamente, a lei em vigor é boa, como se prova pelo caso da Espanha, que tendo-a importado, faz hoje abortos legais, o que só não sucede no nosso país pela razão de não vivermos num Estado de direito. Olhem-se as premissas: num Estado de direito, as leis são cumpridas; existe, em Portugal, uma lei que permite à mulher abortar em determinadas circunstâncias; os hospitais recusam-se a cumpri-la. A classe médica portuguesa não só considera o acto de abortar indigno da sua atenção como teme a reacção dos meios conservadores. É verdade que vivemos numa sociedade atrasada, mas não percebo por que não surgiu, entre nós, um grupo capaz de abrir uma clínica, na qual se façam abortos dentro do que a actual lei estipula." (...) "Reconheço que a retórica usada pelo lobby pró-aborto é quase tão imbecil quanto a usada pelo lobby pró-vida. Quando oiço falar certas mulheres, que partilham a minha opção, apetece-me bater-lhes, mas a fauna do outro lado da barricada, os auto-intitulados "pró-vida", irrita-me muito mais. O aborto é uma escolha difícil, dolorosa e complexa. É por isso que abomino a ideia de que o assunto possa ser usado para fins político-partidários. No entanto, devo declarar que estou contente com o facto de José Sócrates ter tomado uma posição diferente da assumida por António Guterres."
quinta-feira, 21 de abril de 2005
A aceleração das imagens, a coexistência do imponderável e até do incategorizável, a mobilidade como novíssima modelização do mundo, a inevitável agregação do que ainda há vinte anos podia ser visto em separado, a presença excessiva da faixa-imagem informativa e mundializada, o definhamento dos proteccionismos e das soberanias e culturas apenas territoriais, a crescente invisibilidade ética e as novas procuras do sentido, a prática de fluxos subsumida aos aparelhamentos instantanistas (jogos, viagens, cyborguização, consumo fantasmático e escrita nivelada digitalmente), a esteticização generalizada do globo, a progressiva amálgama entre público e privado e entre real e ficcional, as heterodoxias simuladas do tempo real, a tendência para uma espécie de culto que salvaguarde o presente e que não se fixe no cenário ilusório de um futuro perfectível.
Por outras palavras, a globalização é um termo que surge por ratio difficilis, como escrevi no final de Anjos e Meteoros, e que acaba por traduzir a deriva com que observamos estes sintomas reais de ruptura (como se tentássemos definir um modo ou um olhar específico que nos permitisse entender um iceberg continental que, de um momento para o outro, tivesse encetado um caminho irreversível e de consequências arrasadoras e ainda imprevisíveis).
Eu creio que a nova era para que caminhamos pode ser uma era notável. Não redentora, mas notável. Tudo o que nos aproxime dela deixa-me feliz, sobretudo porque nos afasta do ostracismo esquemático que nos construiu milenarmente através do paradigma axial (fosse escatológico, salvífico, ideológico e modernamente político). Mas concordo, no entanto, que os edifícios que herdámos e que nos garantem o conforto da civilidade e, em primeiro lugar, a respiração da liberdade (e sobretudo a democracia, criada e inventada no Ocidente para a salvaguardar) deverão ser defendidos feericamente, e deverão constituir-se como alvos de uma das duas únicas utopias que ainda considero existir. A outra diz necessariamente respeito aos cenários do próprio Globário em que e para que vivemos. Mas, uma e outra, decididamente apostadas numa guerra contra a arbitrariedade do hiperterrorismo e contra os anátemas autofágicos que percorrem suicidariamente o Ocidente.
(as verdades "sociais" da modernidade estão, hoje em dia e cada vez mais, a tornar-se num problema e não num horizonte propício a soluções. Como dizia Teresa de Sousa, há dias:
"O que é que os franceses querem? Uma Europa onde seja possível preservar o mito do 'modelo social europeu', num mundo virado de pernas para o ar pela mundialização e pela concorrência? Uma Europa em que a PAC seja eterna e as 'deslocalizações' proibidas? Uma Europa sem China, sem Índia, sem Estados Unidos a entrar pela "porta do cavalo" - com têxteis ou com 'guerras', pouco importa.")
Faltará uma nova racionalidade.
Faltará um novo enunciado que consiga dar conta do que hoje ainda aparece como deriva, como sintomatologia dispersa, ou como emanação aleatória de manifestações (já que todas elas aparecem como se não existisse uma hierarquia na faixa de hiperfactos que hoje ocupa a visibilidade mediática contemporânea).
Essa racionalidade, próxima provavelmente de uma nova "cidade cosmopolítica" (de que nos falou, há alguns anos, Virilio) é, quer se queira quer não, uma necessidade que acabará por se converter naquilo que o pragmático Peirce designou por "crença".
É das questões éticas associadas à inevitabilidade desta nova e futura racionalidade que se ocupa o meu novo ensaio que sairá, nos primeiros dias de Maio, nas Publicações Europa-América (modifiquei-lhe o nome para "A Viragem Profética Contemporânea", entendendo o "profético", entre outras componentes, como o conjunto de modalidades que instituem o controlo do futuro).
quarta-feira, 20 de abril de 2005
Tem sido o Dan Brown do “Olha aqui estou eu na fotografia!”, tem remado ao lado do fascínio detectado pela fórmula “É já a seguir!, É já… a seguir!”, tem sobrevoado ao lado de temas papais e cardinalíceos com uma resistência e um vigor invejáveis. Nestas fantasias que se ancoram facilmente ao quotidiano e que José Gil revê com alguma astúcia de cronista estrangeirado (“Eles falam, falam, falam…”) dispensar-se-ia a adulação e o silêncio. A primeira devedora da fácil repetição da palavra douta do filósofo, a segunda, não menos seguidista do que a primeira, atreita sobretudo à desconfiança mesquinha local (“Vêm estes gajos lá de fora mandar postas de pescada…”). Há ainda, é verdade, o vestígio de uma certa intelectualidade dominante, cuja dicotomia própria e esplendorosa remeto para o final desta brevíssima crítica.
Vamos, enfim, ao livro.
A “não-inscrição portuguesa”, advogada por José Gil no seu livro, Portugal, Hoje - O Medo de Existir, equivale a um certo tipo de potencialidade comunicacional atrofiada que se sente e pressente numa sociedade, devido ao que uma certa tradição francesa caracterizou por lógicas do “preenchimento”. Ao apagamento do desejo colectivo, gerado neste tipo de análise, sobraria a metáfora do “medo” como inabalável sorvedouro que obstruiria o pleno do espaço público, que incentivaria a cultura da festividade colectiva (como involuntária fuga para a frente) e que, por fim, poria em marcha um conjunto errante de sintomas mais ou menos autofágicos (tais como a “inveja”, o “retraimento” dos afectos, o “demissionismo” ou a “grosseria”).
Como modo de despertar e espicaçar o debate num país com pouca escala reflexiva, o livro é óptimo. Como análise, parece-me ficar bastante aquém (até das possibilidades que o livro de José Gil pressuporia). Não por uma questão de estilo, ou de linguagem, mas sobretudo por uma questão mais profunda.
Por outras palavras, a análise de José Gil aparece impregnada de uma visão que parte do princípio do “preenchimento” (segundo a qual um texto e um leque de subtextos anteriores à experiência acabariam por impedir a descoberta de uma expressão própria e saudavelmente conflitual), o que acaba por criar o fantasma de uma excessiva tutela metafísica tipo universalia sunt ante res. Ou seja, sem ponderação prévia das condições de liberdade, o “português” é visto, à partida, e de modo generalizado, como um ser preenchido e não como um ser que vive, pelo menos, na clivagem entre os efeitos do preenchimento (ou, se se preferir, entre os fluxos criados pela cultura e, também, pela hipertecnologia contemporânea) e a inevitável inclinação para a acção, para a procura pragmática da verdade e para o “cuidar” do mundo à sua volta.
O que quer dizer que, para além de o “corpus” português analisado me parecer ocasional e, às vezes, algo casuístico (embora o discurso poético-criativo sobre os sintomas reais do quotidiano pareça contradizê-lo), existe, no ponto de partida de José Gil, um diagrama de fundo que depaupera uma racionalidade (não necessariamente ensaística) que deveria tornar possível um certo diagnóstico de Portugal.
Também morei muitos anos fora de Portugal e identifico-me bastante com o que aparece escrito, ou melhor, aflorado, aqui e ali, em Portugal, Hoje - O Medo de Existir. Mas essa identificação, mais estética, vivencial e até sentimental, não se sobrepõe, de modo nenhum, ao ponto de vista analítico que considero não ser, de facto, o mais correcto e até funcional para o fim a atingir.
Uma última palavra para a dicotomia lusa reinante: devido ao facto de o livro de José Gil ter tido um grande impacto no público e nos mercados, a resenha generalizada - e não a crítica a sério - dividiu-se logo esquematicamente em dois termos. De um lado, os incondicionais, a maior parte dos quais não evidencia uma grande compreensão do alicerce crítico enunciado na obra de José Gil; do outro lado, o modismo anti-gaulês (simétrico e tão igual a si próprio como o modismo pró-francês de há trinta anos) que antepõe a qualquer análise mais séria o anedotário pejorativo e a assumida frivolidade discursiva.
O costume.
terça-feira, 19 de abril de 2005
A Câmara Municipal de Sines não é capaz de vender alguns dos antigos edifícios onde dantes funcionaram escolas primárias, localizados em áreas campestres únicas. Talvez os leilões não tenham sido convenientemente divulgados.
Se Eva Gabor soubesse, trocaria a idílica paisagem de Green Acres por esta outra, de certeza mais frondosa e apelativa para os sentidos.
Essas coisas deviam ser combinadas com mais antecedência. Amanhã, à mesma hora, levaria uma turma de finalistas comigo. Assim, hoje, desta forma mais ou menos desprevenida, nem eu poderei lá estar! Mas terei pena. Sinceramente. Desejo a melhor das viagens para este livro (de fôlego) que já esteve, entre luas e outros afazeres, nas minhas mãos. Seja como for, aqui fica o aviso à navegação: o último romance de Francisco José Viegas, Longe de Manaus, é hoje lançado, às 18.30, no Pub irlandês Hennessy's, ali junto ao Cais do Sodré.
"O que é que os franceses temem? A Europa "liberal" do comissário Bolkestein e da sua "directiva dos serviços"? Uma Europa tão vasta ao ponto de poder vir a incluir a Turquia, na qual deixaram de se sentir "em casa"?O que é que os franceses querem? Uma Europa onde seja possível preservar o mito do "modelo social europeu", num mundo virado de pernas para o ar pela mundialização e pela concorrência? Uma Europa em que a PAC seja eterna e as "deslocalizações" proibidas? Uma Europa sem China, sem Índia, sem Estados Unidos a entrar pela "porta do cavalo" - com têxteis ou com "guerras", pouco importa. Uma Europa, em suma, construída, como foi durante tanto tempo, à imagem e semelhança da França (o que não seria mau) e para glória da França (o que já seria pior)? Descontado o exagero, é este o drama francês: acreditar que ainda é possível o impossível."
Público de hoje (clicar "imprensa")
Há dias, uma nova Fundação foi criada em Évora. Nos seus estatutos, definia-se o que era um alentejano com algum detalhe e preceito, já que os apoios previstos se destinavam a alentejanos ou quase só a eles. À definição da proximidade dos progenitores (acautelada por uma lógica numérica estudada) aliava-se um período de vários anos de gestação, para que um “não-alentejano” pudesse ser, um dia, considerado como um verdadeiro alentejano.
Este tipo de casos, independentemente da bonomia específica dos seus criadores (não a porei em causa na minha pequenez de mortal), vale apenas enquanto sintoma, nada mais. Podia ter acontecido no Algarve, no Minho, nas Beiras ou em Trás-os-Montes. Mas o sintoma não deixa de revelar, com alguma gravidade, uma auto-imagem fechada, crispada, irredutível e até mesmo agressiva para os que caem “de pára-quedas” numa “região” que “não” seria “a deles”.
Num mundo globalizado onde as preocupações se estendem em rede e onde a luta pela soberania significa, cada vez mais, a salvaguarda da liberdade e da democracia, não apenas no território ocidental onde fez e faz história, mas também nas vastas diásporas que se movem cada vez mais entre os vários blocos democráticos do Ocidente e as mais diversas origens e paragens do planeta (China, mundo árabe, etc.), como é possível que, em certos meios, se produzam ainda enunciados deste tipo?
Num mundo que se está a tornar num movimento de sucessivos reencontros, de acordo com o conceito de “sinoecismo” (synoecisme) defendido por Paul Virilio, e que se centra, de dia para dia, na grande cidade cosmopolítica para que o mundo contemporâneo tende, como é possível que, em certos meios, se produzam ainda enunciados deste tipo?
O regionalismo que fez letra na Constituição portuguesa de 1976 e que se transformou em autonomia nas antigas “Ilhas Adjacentes” não é um fenómeno uniforme, contínuo e dependente das mesmas palavras de ordem. Varia bastante geograficamente, apresenta vozes, inquietações e notoriedades diversas, detém lógicas de poder mais fáticas ou mais efectivas conforme o seu peso relativo, manifesta-se de modo tacitamente político ou através da emergência dos discursos ditos “identitários” (fazendo das variedades gastronómicas, musicais, arquitectónicas e outras o que, para o Estado Novo, eram “singularidades da alma lusitana”) e dá corpo a exigências variadíssimas, na esfera do quotidiano, quer através da enunciação tacitamente política (por via dos órgãos democráticos do estado que a Constituição - e bem - consagrou), quer, na maior parte das vezes, através do filtro de fenómenos massificados (tendo-se o futebol tornado, nas últimas três décadas, entre outros, num dos mais eficazes e mordazes dispositivos deste tipo).
Passados trinta anos sobre o 25 de Abril, e apesar da (lúcida) desaprovação das regiões em referendo próprio, pode dizer-se que o regionalismo se tornou, bem menos numa afirmação legítima da sociedade civil e numa partilha saudável dos vários níveis do estado (em contraste com o caciquismo e o centralismo do antigo regime), do que numa espécie de indomada cascata de excrescências onde abunda uma constelação de interesses quase sempre avessos à natureza do mundo contemporâneo. O que interessa a este regionalismo mais serôdio, tacanho e dominante é a ordem da fachada (para quem uma universidade em cada cidade seria sinal de “progresso” e não uma marca de rigor científico), é a identificação forçada (delimitando fronteiras fantasmáticas e denegando aberturas ao “outro”), é a celebração autista de pequenas e ridículas rivalidades (em diversas escalas: Porto vs. Lisboa, Viseu vs. Coimbra ou Beja vs. Évora, etc.), é o vulgarizar de discursos delirantes (Alberto João Jardim vive no paroxismo desse efeito retórico) e é, sobretudo, uma visão muitíssimo restritiva do espaço público (os actuais organigramas partidários e também corporativos movem, de maneira quase invariavelmente reversível, pouco mais do que uma centena de pessoas em cada região).
Não sei qual vai ser o caminho do regionalismo em Portugal. Mas temo que o aproveitamento partidário do fenómeno nos conduza, cada vez mais, a uma nova espécie de cegueira social e política. Quando a referência de fundo deixar de ser o mundo, o global ou tão-só a Europa, o que nos sobrará (neste nosso nobre e tão segmentado cantinho)?
Ou a ascensão definitiva dos regionalismos ao poder central (o que já vai sendo, aqui e ali, mais ou menos normal e “folclórico”), ou a reentrada em cena de um cenário ainda pior: o nacionalismo (essa catarse silenciosa e arbitrária das fés regionalistas).
segunda-feira, 18 de abril de 2005
As listas contendo os nomes dos agentes e dos informadores da PIDE (a polícia política portuguesa que existia em Portugal até 25/04/1974) sempre foram conhecidas.
Andaram de sala capitular em sala capitular, atravessaram o coração e o núcleo duro dos partidos e um deles até colocou, normal e impunemente, essas listas (e não só) ao serviço da KGB.
Contudo, não deixa de ser curioso ver agora uma das Maçonarias a gritar em (discreta) voz alta - "Estão aqui, estão aqui! Estavam aqui guardadas e nós não fazíamos a mínima ideia! -, como se fosse a primeira vez que as ditas listas aparecessem à tona de água.
Para além do paroxismo criado por estes efeitos cruzados e, igualmente, para além impossibilidade de Portugal fazer contas com o que quer que seja (passado, presente, futuro), sobra uma última e derradeira pergunta: porquê agora esta imprevisível descoberta?
sábado, 16 de abril de 2005
Sim, será que a justiça, em Portugal, terá mesmo coragem de ir até ao fim?
Nos comentários a este post, a linguagem que liga os nossos pobres regionaleirismos ao (sempre utilizado) futebol entrou em acção. E com que nível! Seja como for, a minha posição não é ambígua: que a justiça vá até ao fim, seja onde for!
sexta-feira, 15 de abril de 2005
Ontem fui a uma sessão com a presença do filósofo José Gil. António Guerreiro, um dos apresentadores da sessão, estabeleceu, a certa altura, uma relação entre a frase do fim-de-semana passado, da autoria de Santana Lopes - “Vou andar por aí” -, com o que aparece escrito na página 85 (da primeira edição de O Portugal, Hoje, - O Medo de Existir): “O que faz então o português esperto? Nada. Anda por aí”.
Seguiu-se uma gargalhada geral naquela sala. Subitamente, toda a assembleia descobria que somos um país de filósofos a ver se consegue exprimir-se. É esta a actual e branda arquitectura do novo “Portugal dos Pequeninos”, o tal que, em pedra e cal, ainda jaz na Santa Clara coimbrã.
O presidente da Associação Nacional de Municípios continua a dizer que, nesse campo, primeiro têm que ser os deputados e só depois os autarcas. Como se existisse alguma relação possível (ainda se se colocasse ao mesmo nível deputados municipais e nacionais, compreender-se-ia o argumento). Mas não. A lógica é sempre a mesma: primeiro “eles”, depois “nós”. Se avançarem “eles” primeiro, então muito bem, também será justo avançarmos “nós”. Estamos no cerne da corporação e no palpitar do coração lusitano: o “Eles”. Isto é: “Eles” é que sabem; “eles” é que nos lixam; “eles” é que deviam pagar por tudo. “Eles”. Sempre “Eles”, essa divindade incorpórea, negra, mafarrica (espécie de “menino nos braços de sua mãe” que com ela, afinal, se confunde).
quinta-feira, 14 de abril de 2005
(Neurastenia)
Passei pelo blogue de Alexandre Soares Silva e acedi à sugestão de visitar dois blogues que por lá se enalteciam. De facto, valeu a pena. São eles o Neurastenia (sítio igualmente brasileiro, onde o bom gosto e a proliferação de imagens andam a par) e o Rashomon (de idêntico perfil, mas em língua inglesa). Passem por lá.
quarta-feira, 13 de abril de 2005
"Tendências actuais da imagem no campo da arte" no Minitempo (texto de 2002), um poema inédito no Minion e as sagas do costume no blogue da bola. Por aqui, continua a pensar-se em novo folhetim (que parodiar desta vez, depois das fatalidades clássicas do amor puro: um Light, um exótico ou uma trama espiritual à Dan Brown?)
Quando chegou a Roma, disse que bastariam três dias para que o fumo branco aparecesse na Praça de S. Pedro. É dado como possível “bridge candidate” entre católicos e também no site de apostas, “Oddschecker”. Mas o mais curioso é o que agnósticos e ateus escrevem na sua publicação “About”:
“Jose Da Cruz Policarpo is not well known because he has spent most of his life working in Portugal. He is, however, evidently popular among the cardinals and this means that he may have a chance at winning - especially if the cardinals wish to elect someone that isn’t an “expected” choice by outsiders.”
Sobre esta capacidade que um pequeno país, como Portugal, pode ter para estabelecer mediações entre gigantes na cena internacional (o caso Barroso e o possível caso Guterres inserem-se neste novo campo de possibilidades), escreve-se num site da Flórida (Mydd):
“A teologia moderada (de D. José Policarpo) impressionou outros cardeais na Europa e na América Latina, onde um prelado português pode servir de elo de ligação entre os dois continentes.”
Dizem, que o grande contra de D. José Policarpo tem um nome: ser um fumador compulsivo. De facto, nos tempos que correm não pode haver coisa mais teologicamente incorrecta.
Fumo, só branco. Alvíssimo.
Luís Pedroso
Belos esquissos no blogue de Luís Pedroso (de sua autoria!). E poesia interessante. A visitar, certamente.
*
E gosta de coisas boas. Nada melhor do que espreitar.
terça-feira, 12 de abril de 2005
Aos fantásticos lances de lua e espada do “maradona” (eu sei, eu sei, o MacGuffin conta-me tudo, detalhe a detalhe, acerca da vossa lagartice imperdoável e incurável), à Moodyswing que se adornou com diamantes nos seus sete céus afogueados, aos blogueadores do Acidental (e ao livro ainda fresquinho publicado pela Hugin) e, por fim, sempre a primeira, sempre a vermelha, essa doce Papoila que me devia enviar e já, por etéreo correio, um pastel de nata bem queimadinho. Parabéns a todos!
Já se sabe que Eduardo Prado Coelho não tem tempo para ir à blogosfera, ao terreno desestruturado dos “posts”, à contaminação das escritas. Às vezes, porventura devido aos atractivos teóricos que o movem, chego a estranhar o facto. Mas o espaço mais nobre e almofadado da crónica - essa inscrição orgânica e claramente cativa da lógica do papel - é hoje, no seu Fio do Horizonte (clicar “imprensa” no Header), sujeito a uma análise “sumaríssima” (o léxico futebolístico aplica-se aqui lindamente). Diz o Eduardo:
“Há crónicas de todos os géneros e feitios. Umas são comentários políticos. Outras têm uma dimensão panfletária. Algumas evocam aspectos da vida pessoal. Outras especializam-se, como Vasco Pulido Valente, em dizer mal de tudo e espalhar um ácido corrosivo sobre toda a realidade. Há também as crónicas económicas, as crónicas desportivas - especializaram-se numa fatia da realidade.
Mas há sobretudo as que gostam de pensar: pensar a política, pensar a vida cultural, multiplicar o espaço das ideias, a sua razão de ser. Exemplos notáveis: Pacheco Pereira, Vital Moreira. E, mais recentemente, Miguel Veiga.”
Esta separação entre a crónica que “pensa” e a crónica que “não pensa” intriga-me. Sobretudo o caso de Pulido Valente (e outros omissos, como o caso de Helena Matos que, segundo o Eduardo, dirige uma revista “à direita”, embora tenha “ideias avançadas”) intriga-me ainda mais. Poderá reduzir-se o esforço de Vasco Pulido Valente, goste-se ou não (eu não sou um incondicional dessas crónicas, mas admiro-as), a um mero “dizer mal” que se limitaria a “espalhar um ácido corrosivo sobre toda a realidade”?
O que é, afinal, “pensar”? Um ditame que se cola a quem decompõe, como num micro-ensaio, os vários níveis que se subsumem a uma dada visão do mundo? E o que é uma crónica? Não será um discurso ecléctico, criada por um jogo de linguagem, onde um formato lúdico, apelativo e, ao mesmo tempo, sucinto é decisivo?
Uma crónica pode reflectir o peso das referências, é certo, mas não a entendo como um peso que se enuncie por necessidade.
Por outro lado, “pensar”, sobretudo no espaço da crónica, não pode de modo nenhum ser apenas entendido como um exercício de súbita decupagem do mundo. “Pensar”, no espaço da crónica, deverá ser o prazer da deambulação das palavras, o culto de imagens, a apologética provocadora, o ludema à procura de sentido no olhar dos leitores.
Tanto melhor, se esses deambulares fragmentários espelharem as referências sistematizadas (pensadas com a profundidade que não cabe na cróncia) que se disseminam pela rede contemporânea do nosso mundo. Tanto pior, se a crónica se fizer tão-só escrava dessas referências e apenas rodopiar redondamente à volta delas, sem qualquer prazer que advenha do tacto e do ardil da linguagem.
Não deixa de ser interessante aquilo que o arco do poder tem a dizer sobre “cultura”, neste ano de 2005. Geralmente, pouca gente lê as fontes, os textos, os programas, ou as moções. É mais útil recorrer às sínteses criadas pelos média, ou pelos comentários arrumados pela sábia mestria dos “opinion makers” da cor que cada um acha ser, ou deve ser, a sua. E assim se propaga a coerência forçada e imutável das opiniões que se vão formatando. É o estratagema do “dicotomicamente correcto”: eu estou aqui (por exemplo, no PS), enquanto tu estás aí (por exemplo, no PSD). E não há mais conversa. Pois eu tive a vontade de criar alguma conversa, alguma liquidez discursiva para atravessar, inundar e superar essa galopante “monogenia” política.
Para tal decidi comparar os eixos principais da moção que António Borges apresentou no Congresso do Pombal com três pontos tematicamente correspondentes (entre os noves que integraram o recente programa eleitoral do PS). O resultado é estimulante e dá que pensar, embora a questão essencial do património não tenha sido aqui tema escolhido. É pena que António Borges associe na sua moção ciência e cultura, sem autonomizar as áreas, já que, como se sabe, aquilo que se designa, hoje em dia, por “cultura” e por “ciência” são realidades muito diferentes (embora multiplamente transversais, como é evidente). Apesar disso, a relação torna-se possível.
Ora vejamos, um a um, os três confrontos:
1.1 - Um “investimento adicional (na cultura e na ciência) só é legítimo se acompanhado de muito maior exigência quanto ao rigor da sua utilização.” (António Borges)
1.2 - “Apoiar a criação e os criadores culturais, segundo critérios de equidade e transparência e estimulando a qualidade artística, o enraizamento social e a sustentação das estruturas não governamentais de criação, produção e difusão.” (ponto 4; Partido Socialista)
A legitimidade defendida por Borges corresponde a critérios de equidade e de transparência e ainda à sustentação da iniciativa no PS (o que eu me pergunto é como é que o estado pode aferir “a qualidade artística”?).
2.1 - “Também aqui (na cultura e na ciência) é preciso criar condições de liberdade de iniciativa para os mais talentosos e eliminar constrangimentos e limitações destinados a proteger quem pretende deter o monopólio da legitimidade e condicionar a iniciativa de outros.” (António Borges)
2.2 - “Apoiar o desenvolvimento e a afirmação do meio artístico português, conduzindo políticas activas de regulação e incentivo mas recusando o proteccionismo, o paternalismo e a subsidiação sem contrapartida, antes favorecendo a pluralidade das correntes e das formas, a diversificação dos apoios, a profissionalização dos agentes e a modernização e racionalização dos processos.” (ponto 5; Partido Socialista)
A recusa da subsidiação sem contrapartida e a regulação activa, no PS, podiam e deviam apresentar-se mais atentas ao agir e à iniciativa livres que, embora de difícil seriação (sempre a questão da difícil aferição da “qualidade”), tendem a singrar nas margens do “sistema” estatuído. É esse o ponto de partida, aliás, de António Borges.
3.1 - “A sociedade da informação é a melhor promessa de um futuro em que o progresso económico rápido fica acessível a todos, desde que se integrem bem nas redes de conhecimento e comunicação modernas.”(…)“A exclusão é neste campo um risco muito grande que tem de ser combatido, para que se mantenha a igualdade de oportunidades de êxito e de progresso para todos.” (António Borges)
3.2 - “Tirar partido das possibilidades da sociedade de informação para melhorar a eficiência e ampliar o impacto das políticas de difusão do conhecimento e divulgação cultural.” (ponto 9; Partido Socialista).
Este parece-me o sector em que, felizmente, existem mais complementaridades, até porque é um tema que atravessa todos as áreas que devem preocupar o estado e nortear o livre agir na sociedade civil. O PS dá particular importância, neste domínio, à reforma do sector audiovisual, “não só porque nenhum avanço sólido no sentido da Sociedade da Informação pode dispensar conteúdos audiovisuais de base nacional, mas também porque este sector é hoje estrategicamente decisivo para a formação dos cidadãos e para a coesão das comunidades(…)”. Contudo, o perigo real de exclusão explicitado por António Borges na sua moção - o qual deveria aparecer com destaque nas preocupações dominantes do PS - não é aí devidamente acautelado, pelo menos, de forma clara.
É curioso concluir que a “info-exclusão” aparece neste “intertexto” sobre a cultura como o reverso do único desígnio utópico: a sociedade de informação. Um outro ponto comum, embora aqui não citado, é a persistente defesa da partilha entre estado e privados.
Para além disso, o PS faz da regulação a sua palavra de ordem mais reiterada, enquanto António Borges valoriza sobretudo a iniciativa. Fica por responder como é que, num e noutro caso (avaliar no quadro da regulação, ou avaliar no quadro do despontar de iniciativas), se caracteriza a “qualidade” do produto cultural.
Não há aqui qualquer voluntária e falsa ingenuidade da minha parte, sobretudo porque vivemos num mundo completamente “esteticizado” onde a separação entre arte e não-arte, por exemplo, não tem mais sentido (como tinha há uns vinte ou trinta anos). O que se faz, hoje em dia, na publicidade, no design, no cibermundo e na produção de “objectos culturais” para consumo de todo o tipo não reflectirá atributos que sempre foram os tradicionais no campo "moderno" da arte (tal como a entendemos do Iluminismo para cá)?
segunda-feira, 11 de abril de 2005
A minha amiga Maya Gordon, uma pintora judia polaca residente em Amesterdão, tem finalmente um site. Poderão visitá-lo aqui. Vale a pena. Contudo, a história de Maya dava um romance. Vou contar um bocadinho dessa aventura.
No pós-guerra, não terão sido poucos os judeus que decidiram (voltar a) fixar-se na Polónia. Por crença, por regresso às raízes, por determinação pessoal. O pai da Maya Gordon, um engenheiro de alto nível (chegou a participar em projectos ligados à concepção aeronáutica de ponta), foi um desses homens. Preferiu o destino polaco ao celebrado desígnio utópico da fundação de Israel. Opções pessoais da época.
A partir de meados dos anos cinquenta, quando nada aparentemente o fazia prever, a não ser um certa descontinuidade nas altas taxas de crescimento económico, o partido comunista polaco iniciou uma sistemática e empenhada campanha anti-semita. Nessa onda, muitos judeus veriam os seus empregos ameaçados. Por volta de 1955/7, muitos foram mesmo, directa ou indirectamente, forçados a abandonar a Polónia. A família da Maya Gordon integrou um desses grupos, mais precisamente em 1957, numa viagem de sete dias e sete noites em que nenhum dos passageiros pôde sequer sair do comboio entre Varsóvia e Génova.
A memória de menina leva Maya hoje a insistir na palavra “histeria” para traduzir o desespero daquela viagem e daquele êxodo forçado e silenciado pela história. Em Génova, após vários dias de espera, um barco haveria de levar todas essas famílias para um improvisado campo em Israel. A guerra da independência e o holocausto eram ainda memórias relativamente recentes. O novo país levantava-se a pouco e pouco com coragem. Até voltar ao nomadismo que a traria à Itália e à Holanda, a Maya Gordon viveu, de 1957 até ao fim dos anos sessenta, num país que se tornou subitamente o seu. Muito do seu trabalho plástico evoca estas rupturas, este caminhar entre lugares e topografias reais e imaginárias. Mas a grande viagem, a que escapou ao sentido de escolha da vida, essa, permaneceu ilesa à memória partilhada. Até hoje.
"Por razões de carácter disciplinar, encobertas por motivos pseudoteológicos, não se chamam, não se preparam nem se ordenam homens casados e mulheres para presidirem à eucaristia."
(Frei Bento Domingues)
Hoje ficámos a saber que António Vilarigues é um "Especialista em sistemas de comunicação e informação". É assim que o alto militante comunista assina no Público a sua crónica onde prova que a classe operária ainda conta com "2 milhões e 145 mil efectivos". A inveja que um clube como o Sporting ou o Porto hão-de ter de tal massa associativa!
domingo, 10 de abril de 2005
Para quem estava habituado a ler as crónicas no Público On-Line e agora deixou de o poder fazer (a menos que pague), tem a sua solução aqui no Miniscente. Basta passar a clicar no Header, em "Imprensa", e aí encontrará alguma da melhor opinião publicada nesse jornal (tentarei seleccionar na medida do possível, até porque não é crime). Hoje já poderá ler a crónica de António Barreto e de Frei Bento Domingues.
O “apocalíptico” sempre teve como base uma ficcionalidade que levaria o homem a escalar pelos céus para poder ver Deus com os seus próprios olhos e perguntar-lhe: “Afinal como é? Que sentido é que isto tudo tem?”. E já se sabe que, na descida à terra, a profecia daria conta da mensagem concertada, perfeita e inabalável.
Esta “visão” (é esse, afinal, o significado de “apocalíptico”) foi, hoje em dia, substituída pelo modo como as imagens globais nos submergem e falam através de nós em terminais que, simultaneamente, sugerem transcendência e tempo real.
E quase tanto faz que as figuras tornadas visíveis, nesse universo de pixels sem fim, correspondam ao Papa, a Rainier, ao Euro, a Camila, à Expo ou ao Porno. O que interessa é estar lá: na abismada "visão", no retorno suave ao apocalíptico.
Primeiro: todo o congresso fingiu que o vencedor não era um líder a prazo.
Segundo: Santana revelou a razão que o levou à CML: prometera aos filhos não deixar nunca mais um cargo a meio.
Terceiro: Onde andou Pacheco Pereira?
sábado, 9 de abril de 2005
Estou a pensar num próximo folhetim. Depois da suave medida clássica de um amor fatal, gostaria agora de parodiar um género romanesco em moda. O alvo da brincadeira pode ser o género Light, o excurso exótico ou o estilo Dan Brown. Estou sinceramente mais inclinado para este último.
Creio que irei avançar dentro de alguns dias. Terei que proceder, entretanto, a alguma terraplenagem para depois poder escrever sobre o abismo e com muito pouca rede por baixo.
E pensam que eu não tenho currículo neste tipo de paródia?
Desenganem-se.
Chegou, a propósito, a altura de fazer uma revelação: sou eu o autor de três livros que por aí andam, sob a capa da heteronímia, um dos quais apela ao sexo e ao engate (fez-se notícia no Verão de há quatro anos nos jornais), enquanto os outros dois apelam à fé e a coisas espirituais quejandas (tendo sido bastante referenciados, de norte a sul, em jornais paroquiais de província, mas não só).
E esta?
Por que razão chegou agora a altura da revelação, apesar do editor? - perguntar-se-á.
Pois bem, porque me apetece. E é tudo (espero não ter uma zanga lá para os lados do Jamor, naqueles corredores que ligam a Oficina da Livro à Editorial Notícias e onde um novo “Campo” está, há pouco tempo, a nascer)
São os ditos livros os seguintes:
A Arte de Engatar - Guia para Tímidos de Ambos os Sexos, Joana Azevedo e Sá e Luís de Medeiros, Editorial Notícias, Lisboa, 2001.
A Profecia do Terceiro Milénio, Autor Anónimo, Editorial Notícias, Lisboa, 2001.
O Sentido da Fé, Eduíno Mascarenhas, Editorial Notícias, Lisboa, 2002.
Todos esses sou eu, está dito.
Devo dizer, já agora, que cheguei a pensar escrever uma história, cujos personagens fossem, precisamente, os autores destes livros (disse-o publicamente na Feira do Livro de Braga, há dois anos, ladeado pela Lídia Jorge e pela Teolinda Gersão que acharam muita piada à ideia). Mas confesso que já desisti do projecto, embora tenha ainda trabalhado umas oitenta páginas. Imagine-se!
sexta-feira, 8 de abril de 2005
Lisboa: não há cidade onde eu entre tantas vezes e da qual saia ainda mais. É uma urbe grande onde já vivi e onde, possivelmente, em breve, irei habitar mais dias do que agora acontece.
Adoro Lisboa.
Gosto de muita coisa que Lisboa tem: respirações, limoeiros, varandas, colinas, fachadas, cúpulas, cores esvaídas, os cais e tanta, tanta outra coisa (o meu romance, O Trevo de Abel, quis, com a sua humildade de vórtice, dizer isso mesmo). Não há semana em que eu não me perca intencionalmente numa qualquer parte da cidade. Faz parte dos meus solilóquios secretos. Mas confesso que estou sempre, ao mesmo tempo, por fora e por dentro daquele mar de ladeiras e ruelas, praças e áleas. Com em todo o lado. Até porque não há um único lugar no planeta em que eu me sinta fielmente em casa, por dentro, moldado à mundivivência local. Estou sempre entre passos, entre constelações, no alhures. E nesse teodolito poético da minha feliz errância, Lisboa tornou-se, há muito, numa presa simpática, acolhedora e sempre sorridente.
Ao passar pelas páginas de Baudelaire, na preparação de uma aula, reencontrei agora mesmo uma página esquecida e dobrada de onde acabou por emergir a citação que se segue, devidamente sublinhada:
“Dis-moi, mon âme refroidie, que penserais-tu d´habiter Lisbonne? Il doit y faire chaud, et tu t´y regaillardirais comme un lézard. Cette ville est au bord de l´eau; on dit qu´elle est bâtie en marbre, et que le peuple y a une telle haine du végétal, qu´il arrache tous les arbres. Voilà un paysage selon ton gout; un paysage fait avec la lumière et le minéral, et liquide pour les réfléchir”
(Les Spleen de Paris, XVIII, Any Where Out The World/ N´Import Où Hors Du Monde)
Não é verdade que as árvores sejam um inimigo de Lisboa (talvez apenas a Baixa iluminista ilustre a vontade radical de domesticar a natureza de um modo impiedoso), mas já é verdade que, na Ulisseia mitológica, a luz e a pedra se avizinham da água ao mesmo tempo por dentro e por fora. E é nesse deslizar topográfico, à procura de um sentido sem termo, que Lisboa se transforma, dia a dia, numa lua simultaneamente nova e depurada, mas também cheia e frondosa.
quinta-feira, 7 de abril de 2005
A macieira recebeu nos últimos dias uma folhagem tímida, recatada e até mesmo um pouco hesitante. Nada que se assemelhe à sua vizinha ameixoeria onde a copa já espessa incendeia o escuro da noite, sempre que me sento no meio do pátio a auscultar os silêncios depois de apagar luzes e o cego tarefismo do dia. Mas hoje de manhã, sem grandes avisos nem prenúncios, eis que as novidades invadiram o próprio excesso da Primavera. De repente, a macieira apareceu com flores esbranquiçadas entre a folhagem, como se fosse uma bailarina de Jaen. E com a mesma surpresa solar, não é que a ameixoeira fez invadir os ramos com pequenos frutos que, embora verdes e muito pequenos, já têm o sortilégio da liquidez? Um pasmo.
quarta-feira, 6 de abril de 2005
Quando morreu João XXIII, lembro-me de ter ficado muito impressionado pelo modo como o cadáver do papa era solenemente transportado ao longo da Praça de S. Pedro. Era miúdo. Para além disso, o preto e branco da televisão quase oval aparecia impregnado de uma consistência mágica, longínqua e arrepiante. Era a fotogenia a dialogar com aquilo que, no reino da imaginação, é da ordem da "neutralização" (uma súbita fuga para além das fronteiras do real). Este tipo de espanto terá sido, também, familiar nas remotas origens da imagem móvel e na inscrição fotográfica que a antecedeu. Hoje, quando encaro a intensidade da meta-ocorrência que se desenhou em torno do falecimento de João Paulo II, apenas sinto exaustão e excesso. Fica o colorido forte das vestes com que a presença do papa parece querer silenciar tamanho ruído. Mas o que sobra, afinal, é muito pouco: apenas voz que se transpõe em voz, em fluxo de voz e em comentário branco, sem contornos, sem fim. Apenas pixels. Mais nada.
Folhetim à moda clássica
TRIGÉSIMO TERCEIRO (E ÚLTIMO) EPISÓDIO
(A nuvem de Lisboa)
Terá sido a última vez que o vi na vida.
Havemos os dois de morrer com dois segredos gravados na alma, e isso bastar-nos-á.
Há limiares que só se entendem nesta conformidade, ou neste comprazimento de um recato que deve ser extremo e que não deve conhecer limites.
É mesmo verdade: fiquei ali a olhar para António Romeu e para a Casa dos bicos e concluí, naquele preciso momento, que existe, de facto, uma lucidez no arrebatamento. Entre o brilho, o fulgor e, por outro lado, a perspicácia e a inteligência. Há momentos, na vida, em que um dos pratos da balança se parece bastar a si próprio, mas, depois, mais cedo ou mais tarde, surgem sempre as falhas, as omissões, os cortes e o imprevisto.
Tão imprevisto é o mergulho abismado da paixão como é, agora, ver um amigo a andar na direcção do Terreiro do Paço sem dar mostras de se lembrar de mim.
Deixei rapidamente o Campo das cebolas e, por telemóvel, combinei encontrar-me com a Albe, em frente ao Hotel da Lapa. Comemorámos o nosso dia, o aniversário do nosso encontro, junto à piscina. Mais uma vez.
Olhei para a água e juro, Albe, que tornei a ver-te, outra vez, a flutuar, a fundear de braços abertos ou unidos em aro límpido, puro, antigo.
E Albe olhou em frente e como que viu a silhueta esbranquiçada de um fato de linho e, para além dos óculos escuros que lhe cobriam a face, havia uma estrela do mar gigante.
Tal era a nuvem que cobria Lisboa a essa hora.
terça-feira, 5 de abril de 2005
Um dia, assim ao fim da tarde a olhar para a luz da Primavera, gostaria de compreender o fascínio que Pacheco Pereira tem pelo estudos comunistas (às vezes, aquilo é um bocadinho excessivo). Talvez seja o mesmo fascínio que eu tenho pela literatura profética, pelas cidades que desenho em infinitas cartolinas, ou ainda pela poética do fogo, para já não falar do Benfica e, em certos dias de névoa nostálgica e ávida, pela literatura não apenas profética e pelas chamadas "ciências do sentido" (que, às vezes, carecem tanto de sentido!). É verdade: também tenho azulejos a dançar na alvenaria, por cima poço, para que olho frequentemente e com muita muita atenção.
(a propósito: O MacGuffin esteve cá em casa, no coração do pátio, e selou com o Miniscente um pacto de empatia e amizade que terá, no mínimo, a duração de cento e sessenta e dois anos. Era bom que estas coisas se pegassem na blogosfera e fora dela, até porque as pessoas e os fantasmas que aqui se inscrevem são coisas diferentes, isn´t it?)
Folhetim à moda clássica
TRIGÉSIMO SEGUNDO EPISÓDIO
(O sortilégio)
Albe não se lembrou de mais nada.
Viu-se freneticamente a correr entre muros altos de xisto, entre devaneios puros e aquela mancha de luz fortíssima e azulada. Uma música branca, monocórdica, diáfana.
Albe, diante de tal cenário meio funesto, imaginou-se para sempre a fugir, a fugir, a fugir, montando um ágil cavalo do Atlas e carregando às costas o precioso saco de violinos em miniatura. E foi no meio desta névoa de elixires que Albe acabou por acordar numa enfermaria do hospital de Salamanca.
A seu lado, dois polícias franzinos e um enfermeiro gordo de bigodes vastos.
Depois, o diálogo foi pouco mais do que brando, distante, uma concórdia alimentada por calmantes e explicações sem grande sentido:
- É o tempo em que agente vive, é o tempo em que vivemos, sabe? Mas, pelo menos, não foi roubada, nem nada de mal lhe aconteceu. Não imaginamos sequer o que os bandidos pretenderiam da senhora. Deverá ter sido um erro da parte deles, pensamos nós. Eles devem ter pensado que a senhora era… quem, de facto, não é.
Albe ouvia ao longe estas palavras sem eco e acenava afirmativamente.
Dois dias depois, já regressada a si, foi levada ao comboio que a levaria de regresso a casa.
*
Edmundo também apareceu subitamente no banco do hospital de Salamanca.
Acasos, passos fortuitos, tensões remotas.
Não era por menos, dizia o Dr. Hernandéz que tinha um rosto tão feérico quanto franquista. A voz gutural, velada e rígida. Tudo não passara, afinal, de um valente susto: baixa tensão, cansaço, luzes cada vez mais densas, uivos de lobo, risos, os rostos a agigantarem mil explicações e, por cima de tudo, o sol feito de papel almaço suspenso na parede suja do compartimento.
E o médico ainda a sorrir e a ter que repetir: - Foi só baixa tensão, mais nada. O senhor tem que descansar um bocadinho mais!
Ao fim de duas horas, Edmundo caminhava já entre plátanos a tentar perceber as vozes que o perseguiam. Uma fonte de água quase gelada, o passeio muito geométrico, dois corvos pretos a cantarolar de modo chão, as telhas a luzirem e a lua nova irremediavelmente esquecida.
Que fazer?
Edmundo, ainda atordoado, acabou por conduzir o carro muito lentamente até junto à estação. Sem grandes lógica, saiu, fechou a viatura com a chave e disse duas ou três palavras muito baixas que nem o próprio narrador conseguiu ouvir.
O medo de guiar invadira-o quase intuitivamente. Comprou já na gare um bilhete para Paris, entrou no bar da sala de espera e, quando o empregado lhe perguntou o que queria, Edmundo respondeu compassadamente: - Não sei.
Foi nessa altura que, por trás, uma mão tocou ao de leve no casado de Edmundo.
Quando se virou, ainda mais atordoado, Edmundo viu e reviu o rosto.
Aquele rosto líquido, veneziano e incendiado pela surpresa.
Desde esse dia quase solar que Albe e o português nunca mais se largaram.
Até hoje.
(O próximo episódio será o último deste folhetim, um dos maiores acontecimentos romanescos do amor fatal já vividos na blogosferta e fora dela)
Continua
segunda-feira, 4 de abril de 2005
Folhetim à moda clássica
TRIGÉSIMO PRIMEIRO EPISÓDIO
(As estranhas luzes de Edmundo)
Edmundo tinha tomado a sua decisão e, sem pensar duas vezes, partiu de carro. Era Janeiro e nem o frio conseguiu desanimar o romântico e destemido homem de negócios. Escalou pela estrada nacional Lisboa - Porto e, depois de Coimbra, inflectiu para o interior, entre montes e vales, até chegar a Vilar Formoso.
À sua volta, luzia um incrédulo “Portugal dos Pequeninos” a cheirar a girassol encantado e a campanários gelatinosos. Uma harmonia desleixada a sobrevoar a ruralidade triste e sem qualquer futuro. Estradas estreitas, pastores e cães podengos de pelo longo, sinaléticas de alvenaria branca com letras negras de luto. Um país a preto e branco que não inibia Edmundo de cantar a plenos pulmões as Janeiras que, há muito, havia aprendido com António Romeu na alegre companhia das lavadeiras do Rio Zêzere.
Depois da fronteira, veio subitamente a grande espera.
Problemas graves no País Basco tinham motivado a criação de uma imprevista barreira policial. Entre a alfândega e a estação dos caminhos-de-ferro, concentravam-se milhares de pessoas em filas ordenadas e, para além dos pequenos parques, nos campos em redor, havia centenas de autocarros e camiões estacionados. Todo o mundo parecia ter parado, enquanto a Guardia Civil fiscalizava todos os detalhes, todos os movimentos, todos os sinais de perigo.
De repente, como se tudo se tivesse passado num ápice quase sem duração, a verdade é que Edmundo não se lembra de mais nada: apenas viu uma luz a abrir-se na frente dos seus olhos, uma luz imensa, uma clarão talvez azulado e depois muito muito branco e, ao longe, cada vez mais ao longe, a paisagem informe, as vozes muito agudas, os guardas em linha, os telhados ainda escuros, os pneus talvez a derreterem-se, os passeios alongados, as ervas cheias de insectos, os postes de luz muito muito altos, as nuvens sem fim, mas tudo, tudo se esvaíra. Tudo. De repente foi mesmo assim: tudo se esvaíra.
(O próximo episódio, porventura o penúltimo, está ainda por escrever. Seja como for, salvo sugestões em contrário - até porque o estado actual de Albe e Edmundo poderia gerar algumas centenas de páginas -, tudo aponta para a inevitabilidade de um reencontro)
Continua
domingo, 3 de abril de 2005
Folhetim à moda clássica
TRIGÉSIMO EPISÓDIO
(O rapto de Albe)
No último fim-de-semana de Janeiro, Albe entrou no comboio em Austerlitz. Esperavam-na quase trinta horas de viagem numa primeira classe bastante povoada.
Talvez por cansaço acumulado, Albe fechou os olhos e dormiu durante algumas horas. E os sonhos falaram mais alto nessa longa travessia que a levou em quase levitação até ás terras girondinas.
E nos sonhos apareceu uma luz muito forte azulada, depois talvez esbranquiçada no meio da qual Albe se perdia, encandeada, com um saco de violinos às costas. Nada mais restava do que fugir, perseguida que era por milhares de albatrozes do mar alto que tentavam picar-lhe a cabeça. De repente, todas as figuras à sua volta se esvaíam e nada mais se via ou sentia, a não ser a voz acerada à Pompidou do Dr. Lambert que se propagava ouvidos dentro como se fosse um terrível ralo gigante. Foi entre estes rugidos que acordou já a sul de Bordéus.
No transbordo de Irún, Albe aproveitou para sair da estação e foi apanhar ar. Nem dois minutos tinham passado, quando sentiu um homem que a agarrava e, num relance, a introduziu no banco de trás de um seat esverdeado. À frente, um condutor com pronúncia mais italiana do que espanhola e, no lugar do morto, uma mulher vestida com um casaco de pele muito negra a rir, a rir, a rir.
O carro subiu rapidamente pelas montanhas e Albe, sem reacção, sentiu no nariz e nos lábios contraídos um algodão impregnado com um cheiro muito tóxico. Não se lembra de mais nada.
(No próximo episódio, agora que o folhetim caminha rapidamente para o seu fim, Edmundo perderá o leme. De vez?)
Continua
Se não se verificar uma (totalmente inesperada) vaga de fundo, o folhetim Um Amor Catalão irá acabar dentro de uns quatro a seis epísódios. Tudo tem um princípio e um fim e, neste caso, Albe e Edmundo tanto podem errar por mais uns tempos como podem já reencontrar-se à beira do tão desejado desfiladeiro.
sábado, 2 de abril de 2005
Natività de Caravaggio, roubada em 1969 do Oratório de São Lourenço (Palermo)
Um céu vagamente pardo, a folhagem tímida, a breve epopeia das alfazemas tão anónima e solitária quanto bela.
A janela sem rosto, a roldana invisível sobre o poço, a roupa ao vento e a água muito lenta a marejar sobre quadrados minúsculos e azuis.
A relva cortada do outro lado dos jarros bailarinos, os rebentos da macieira a cobiçarem a copa composta onde se escondem futuras ameixas e ainda, na intimidade, os gladíolos muito esforçados, um a um, em luta contra os ossos que o cão Ulisses vai enterrando no canteiro.
E há ainda a respiração dos amores perfeitos para além das jardineiras, do maracujá moribundo, do tédio das pinhas e das buganvílias que visitaram, um dia, uma das grutas avermelhadas de Caravaggio.
Folhetim à moda clássica
VIGÉSIMO NONO EPISÓDIO
(Romeu, o vencido da vida)
Perdi o rasto de António Romeu, há muitos anos. Enquanto pôde manter a vida que desfrutou no Penta, manteve. Depois, passou para uma pensão, ao pé da Feira da Ladra, mas tudo fez para preservar a dignidade do seu estilo de vida. Acordava quando queria, sonhava e fazia apenas o que lhe apetecia e, por outro lado, comia o que queria, ou podia; dormia com quem queria, ou podia; viajava quando lhe apetecia, ou podia.
Ao prazer veio, a certa altura, juntar-se-lhe o poder. Já não o poder de quem dirige, mas antes o poder das óbvias limitações, até porque não há dinheiro que dure para sempre, sobretudo quando a intenção, legítima aliás, é gastar, gastar e tornar sempre a gastar.
António levou, de facto, até às últimas consequências a sua nobre escolha e, por isso, a meados dos anos noventa, já se arrastava pelas ruas de Lisboa como um clochard e ia comer à Misericórdia que havia sido, sob o hagiográfico nome de Santa Casa, a origem real do seu singular modo de vida.
A última vez que o vi, foi no Jardim do Campo das cebolas, creio que em 1996, e António Romeu caminhava, num dia tórrido de Agosto, com um saco de hipermercado pela mão e vestia uma camisa completamente desbotada, onde se inscreviam as letras - nunca mais as esqueci - "Terra Mítica". Era uma velha camisola dos apoiantes do clube de futebol de Valência e isso permitiu-me, na altura, à falta de mais imaginação, descobrir um motivo de conversa:
- Então, agora, andas metido no futebol, não ? - António Romeu tinha-se transformado num verdadeiro farrapo humano. Quase que me evitou, dir-se-ia querer fingir que já não me conhecia. Não o devia fazer, pensei. Sobretudo, porque a coragem do António devorava o próprio destino. Ou nele se fundia. E, por isso mesmo, voltei a insistir:
- Para onde é que vais, Romeu ? - António limitou-se a apontar vagamente para Oeste, para o lado da ponte, para a barra, para o antigo Terreiro das naus. E lá se foi.
(No próximo episódio, Albe sai de Paris e irá à procura de um destino aparentemente perdido. Mas o imprevisto acabará por marcar encontro com ela…)
Continua
sexta-feira, 1 de abril de 2005
Ó Eduardo!
Eu também já estive com Manuel Pinho em casa de um fotógrafo (nessa altura, foi há pouco tempo, não era ainda ministro).
Mas essa definição de "socialismo", que é a chave de ouro do Fio do Horizonte de hoje, é, no mínimo, de antologia:
"Talvez o socialismo seja hoje isto mesmo. Por outras palavras, colocar uma fotografia no meio de um processo de produtividade."
Mas que grande mudança de paradigma! Mas que grande Abrilada!
Ora deixem cá ver: por exemplo... nas presidenciais, vamos ter Cavaco contra Jaime Gama.
Folhetim à moda clássica
VIGÉSIMO OITAVO EPISÓDIO
(A determinação de Albe)
Todas as noites era o mesmo. Albe andava sempre de um lado para o outro dentro do seu novo apartamento da Défense, depois de regressar do escritório meio barroco do Dr. François Lambert, um conhecido advogado parisiense que tinha olhar de Fernandel e voz acerada à George Pompidou. O dia também se repetia sem grande gáudio. Era tudo uma questão de sumo improviso a saltitar de caso para caso: desavenças matrimoniais, heranças complicadas, pecados fiscais, servidões bizarras, dívidas sonantes, nomes lesados, políticos afortunados.
Mas durante a noite, Albe mais não fazia do que andar de um lado para o outro.
Albe nunca esqueceu as grandes manchas de terra barrenta, argilosa, espécie de torrente ou levada de chuvas que na realidade não tinha chegado a ver em Veneza, mas que lhe apareciam agora em sonhos de noite para noite.
Albe não esquecia aquela triste chuva miúda que se espalhara na Giudecca e na boca do Grande Canal, horas depois do pesadelo chamado Edmundo, e antes de ver voar sobre si um violino de prata com que sonhava agora, também, todas as noites: era um homem com mascarilha negra que a vestia com limos negros do Lido e a fazia descer ao centro da terra agarrada a uma prancha de surf onde se viam escritas as letras “ED MONDE”.
Albe acordava desesperada, cheia de olheiras, corria para o metro e, já perto da Étoile, subia apressadamente as escadas até à talha dourada recheada de espelhos oblongos que servia de fundo à sala de espera do escritório de advogados. E o Dr. François, hirto como um flamingo faminto, já a esperava e olhava de alto a baixo como se quisesse voar com ela para o Quénia, envergando camisa de caqui e chapéu à Cantinflas. E de imediato aterravam na arena dos tribunais até à hora do cinema.
Depois aparecia, de facto, o Playtime de Tati para adormecer as náuseas, mas nada, fosse o que fosse, evitava, mais tarde, a rotina solitária de Alba: de um lado para o outro dentro do seu apartamento geométrico como se fosse uma leoa sem selva, uma arara sem árvore, ou uma nuvem sem céu. E ali ficava à janela do seu sétimo andar, entre o prazer agridoce dos Gauloises e a espessura transparente do Marie Brizard.
Hora após hora.
Até que numa noite dessas, Albe, determinada, tomou a decisão da sua vida.
Estávamos já em Janeiro de 1970.
(No próximo episódio, a memória de António Romeu, o amigo de infância de Edmundo que um dia mudou radicalmente de vida, vai entrar de novo em cena.)
Continua