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quarta-feira, 20 de abril de 2005

O impasse da liberdade e a inevitável clausura
Crítica a Portugal, Hoje - O Medo de Existir de José Gil


Tem sido o Dan Brown do “Olha aqui estou eu na fotografia!”, tem remado ao lado do fascínio detectado pela fórmula “É já a seguir!, É já… a seguir!”, tem sobrevoado ao lado de temas papais e cardinalíceos com uma resistência e um vigor invejáveis. Nestas fantasias que se ancoram facilmente ao quotidiano e que José Gil revê com alguma astúcia de cronista estrangeirado (“Eles falam, falam, falam…”) dispensar-se-ia a adulação e o silêncio. A primeira devedora da fácil repetição da palavra douta do filósofo, a segunda, não menos seguidista do que a primeira, atreita sobretudo à desconfiança mesquinha local (“Vêm estes gajos lá de fora mandar postas de pescada…”). Há ainda, é verdade, o vestígio de uma certa intelectualidade dominante, cuja dicotomia própria e esplendorosa remeto para o final desta brevíssima crítica.

Vamos, enfim, ao livro.

A “não-inscrição portuguesa”, advogada por José Gil no seu livro, Portugal, Hoje - O Medo de Existir, equivale a um certo tipo de potencialidade comunicacional atrofiada que se sente e pressente numa sociedade, devido ao que uma certa tradição francesa caracterizou por lógicas do “preenchimento”. Ao apagamento do desejo colectivo, gerado neste tipo de análise, sobraria a metáfora do “medo” como inabalável sorvedouro que obstruiria o pleno do espaço público, que incentivaria a cultura da festividade colectiva (como involuntária fuga para a frente) e que, por fim, poria em marcha um conjunto errante de sintomas mais ou menos autofágicos (tais como a “inveja”, o “retraimento” dos afectos, o “demissionismo” ou a “grosseria”).

Como modo de despertar e espicaçar o debate num país com pouca escala reflexiva, o livro é óptimo. Como análise, parece-me ficar bastante aquém (até das possibilidades que o livro de José Gil pressuporia). Não por uma questão de estilo, ou de linguagem, mas sobretudo por uma questão mais profunda.

Por outras palavras, a análise de José Gil aparece impregnada de uma visão que parte do princípio do “preenchimento” (segundo a qual um texto e um leque de subtextos anteriores à experiência acabariam por impedir a descoberta de uma expressão própria e saudavelmente conflitual), o que acaba por criar o fantasma de uma excessiva tutela metafísica tipo universalia sunt ante res. Ou seja, sem ponderação prévia das condições de liberdade, o “português” é visto, à partida, e de modo generalizado, como um ser preenchido e não como um ser que vive, pelo menos, na clivagem entre os efeitos do preenchimento (ou, se se preferir, entre os fluxos criados pela cultura e, também, pela hipertecnologia contemporânea) e a inevitável inclinação para a acção, para a procura pragmática da verdade e para o “cuidar” do mundo à sua volta.

O que quer dizer que, para além de o “corpus” português analisado me parecer ocasional e, às vezes, algo casuístico (embora o discurso poético-criativo sobre os sintomas reais do quotidiano pareça contradizê-lo), existe, no ponto de partida de José Gil, um diagrama de fundo que depaupera uma racionalidade (não necessariamente ensaística) que deveria tornar possível um certo diagnóstico de Portugal.

Também morei muitos anos fora de Portugal e identifico-me bastante com o que aparece escrito, ou melhor, aflorado, aqui e ali, em Portugal, Hoje - O Medo de Existir. Mas essa identificação, mais estética, vivencial e até sentimental, não se sobrepõe, de modo nenhum, ao ponto de vista analítico que considero não ser, de facto, o mais correcto e até funcional para o fim a atingir.

Uma última palavra para a dicotomia lusa reinante: devido ao facto de o livro de José Gil ter tido um grande impacto no público e nos mercados, a resenha generalizada - e não a crítica a sério - dividiu-se logo esquematicamente em dois termos. De um lado, os incondicionais, a maior parte dos quais não evidencia uma grande compreensão do alicerce crítico enunciado na obra de José Gil; do outro lado, o modismo anti-gaulês (simétrico e tão igual a si próprio como o modismo pró-francês de há trinta anos) que antepõe a qualquer análise mais séria o anedotário pejorativo e a assumida frivolidade discursiva.

O costume.