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terça-feira, 12 de abril de 2005

A cultura no arco do poder

Não deixa de ser interessante aquilo que o arco do poder tem a dizer sobre “cultura”, neste ano de 2005. Geralmente, pouca gente lê as fontes, os textos, os programas, ou as moções. É mais útil recorrer às sínteses criadas pelos média, ou pelos comentários arrumados pela sábia mestria dos “opinion makers” da cor que cada um acha ser, ou deve ser, a sua. E assim se propaga a coerência forçada e imutável das opiniões que se vão formatando. É o estratagema do “dicotomicamente correcto”: eu estou aqui (por exemplo, no PS), enquanto tu estás aí (por exemplo, no PSD). E não há mais conversa. Pois eu tive a vontade de criar alguma conversa, alguma liquidez discursiva para atravessar, inundar e superar essa galopante “monogenia” política.
Para tal decidi comparar os eixos principais da moção que António Borges apresentou no Congresso do Pombal com três pontos tematicamente correspondentes (entre os noves que integraram o recente programa eleitoral do PS). O resultado é estimulante e dá que pensar, embora a questão essencial do património não tenha sido aqui tema escolhido. É pena que António Borges associe na sua moção ciência e cultura, sem autonomizar as áreas, já que, como se sabe, aquilo que se designa, hoje em dia, por “cultura” e por “ciência” são realidades muito diferentes (embora multiplamente transversais, como é evidente). Apesar disso, a relação torna-se possível.
Ora vejamos, um a um, os três confrontos:

1.1 - Um “investimento adicional (na cultura e na ciência) só é legítimo se acompanhado de muito maior exigência quanto ao rigor da sua utilização.” (António Borges)

1.2 - “Apoiar a criação e os criadores culturais, segundo critérios de equidade e transparência e estimulando a qualidade artística, o enraizamento social e a sustentação das estruturas não governamentais de criação, produção e difusão.” (ponto 4; Partido Socialista)

A legitimidade defendida por Borges corresponde a critérios de equidade e de transparência e ainda à sustentação da iniciativa no PS (o que eu me pergunto é como é que o estado pode aferir “a qualidade artística”?).

2.1 - “Também aqui (na cultura e na ciência) é preciso criar condições de liberdade de iniciativa para os mais talentosos e eliminar constrangimentos e limitações destinados a proteger quem pretende deter o monopólio da legitimidade e condicionar a iniciativa de outros.” (António Borges)

2.2 - “Apoiar o desenvolvimento e a afirmação do meio artístico português, conduzindo políticas activas de regulação e incentivo mas recusando o proteccionismo, o paternalismo e a subsidiação sem contrapartida, antes favorecendo a pluralidade das correntes e das formas, a diversificação dos apoios, a profissionalização dos agentes e a modernização e racionalização dos processos.” (ponto 5; Partido Socialista)

A recusa da subsidiação sem contrapartida e a regulação activa, no PS, podiam e deviam apresentar-se mais atentas ao agir e à iniciativa livres que, embora de difícil seriação (sempre a questão da difícil aferição da “qualidade”), tendem a singrar nas margens do “sistema” estatuído. É esse o ponto de partida, aliás, de António Borges.

3.1 - “A sociedade da informação é a melhor promessa de um futuro em que o progresso económico rápido fica acessível a todos, desde que se integrem bem nas redes de conhecimento e comunicação modernas.”(…)“A exclusão é neste campo um risco muito grande que tem de ser combatido, para que se mantenha a igualdade de oportunidades de êxito e de progresso para todos.” (António Borges)

3.2 - “Tirar partido das possibilidades da sociedade de informação para melhorar a eficiência e ampliar o impacto das políticas de difusão do conhecimento e divulgação cultural.” (ponto 9; Partido Socialista).

Este parece-me o sector em que, felizmente, existem mais complementaridades, até porque é um tema que atravessa todos as áreas que devem preocupar o estado e nortear o livre agir na sociedade civil. O PS dá particular importância, neste domínio, à reforma do sector audiovisual, “não só porque nenhum avanço sólido no sentido da Sociedade da Informação pode dispensar conteúdos audiovisuais de base nacional, mas também porque este sector é hoje estrategicamente decisivo para a formação dos cidadãos e para a coesão das comunidades(…)”. Contudo, o perigo real de exclusão explicitado por António Borges na sua moção - o qual deveria aparecer com destaque nas preocupações dominantes do PS - não é aí devidamente acautelado, pelo menos, de forma clara.
É curioso concluir que a “info-exclusão” aparece neste “intertexto” sobre a cultura como o reverso do único desígnio utópico: a sociedade de informação. Um outro ponto comum, embora aqui não citado, é a persistente defesa da partilha entre estado e privados.
Para além disso, o PS faz da regulação a sua palavra de ordem mais reiterada, enquanto António Borges valoriza sobretudo a iniciativa. Fica por responder como é que, num e noutro caso (avaliar no quadro da regulação, ou avaliar no quadro do despontar de iniciativas), se caracteriza a “qualidade” do produto cultural.
Não há aqui qualquer voluntária e falsa ingenuidade da minha parte, sobretudo porque vivemos num mundo completamente “esteticizado” onde a separação entre arte e não-arte, por exemplo, não tem mais sentido (como tinha há uns vinte ou trinta anos). O que se faz, hoje em dia, na publicidade, no design, no cibermundo e na produção de “objectos culturais” para consumo de todo o tipo não reflectirá atributos que sempre foram os tradicionais no campo "moderno" da arte (tal como a entendemos do Iluminismo para cá)?