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terça-feira, 19 de abril de 2005

Que vazio celebram os regionalismos?

Há dias, uma nova Fundação foi criada em Évora. Nos seus estatutos, definia-se o que era um alentejano com algum detalhe e preceito, já que os apoios previstos se destinavam a alentejanos ou quase só a eles. À definição da proximidade dos progenitores (acautelada por uma lógica numérica estudada) aliava-se um período de vários anos de gestação, para que um “não-alentejano” pudesse ser, um dia, considerado como um verdadeiro alentejano.
Este tipo de casos, independentemente da bonomia específica dos seus criadores (não a porei em causa na minha pequenez de mortal), vale apenas enquanto sintoma, nada mais. Podia ter acontecido no Algarve, no Minho, nas Beiras ou em Trás-os-Montes. Mas o sintoma não deixa de revelar, com alguma gravidade, uma auto-imagem fechada, crispada, irredutível e até mesmo agressiva para os que caem “de pára-quedas” numa “região” que “não” seria “a deles”.

Num mundo globalizado onde as preocupações se estendem em rede e onde a luta pela soberania significa, cada vez mais, a salvaguarda da liberdade e da democracia, não apenas no território ocidental onde fez e faz história, mas também nas vastas diásporas que se movem cada vez mais entre os vários blocos democráticos do Ocidente e as mais diversas origens e paragens do planeta (China, mundo árabe, etc.), como é possível que, em certos meios, se produzam ainda enunciados deste tipo?
Num mundo que se está a tornar num movimento de sucessivos reencontros, de acordo com o conceito de “sinoecismo” (synoecisme) defendido por Paul Virilio, e que se centra, de dia para dia, na grande cidade cosmopolítica para que o mundo contemporâneo tende, como é possível que, em certos meios, se produzam ainda enunciados deste tipo?

O regionalismo que fez letra na Constituição portuguesa de 1976 e que se transformou em autonomia nas antigas “Ilhas Adjacentes” não é um fenómeno uniforme, contínuo e dependente das mesmas palavras de ordem. Varia bastante geograficamente, apresenta vozes, inquietações e notoriedades diversas, detém lógicas de poder mais fáticas ou mais efectivas conforme o seu peso relativo, manifesta-se de modo tacitamente político ou através da emergência dos discursos ditos “identitários” (fazendo das variedades gastronómicas, musicais, arquitectónicas e outras o que, para o Estado Novo, eram “singularidades da alma lusitana”) e dá corpo a exigências variadíssimas, na esfera do quotidiano, quer através da enunciação tacitamente política (por via dos órgãos democráticos do estado que a Constituição - e bem - consagrou), quer, na maior parte das vezes, através do filtro de fenómenos massificados (tendo-se o futebol tornado, nas últimas três décadas, entre outros, num dos mais eficazes e mordazes dispositivos deste tipo).

Passados trinta anos sobre o 25 de Abril, e apesar da (lúcida) desaprovação das regiões em referendo próprio, pode dizer-se que o regionalismo se tornou, bem menos numa afirmação legítima da sociedade civil e numa partilha saudável dos vários níveis do estado (em contraste com o caciquismo e o centralismo do antigo regime), do que numa espécie de indomada cascata de excrescências onde abunda uma constelação de interesses quase sempre avessos à natureza do mundo contemporâneo. O que interessa a este regionalismo mais serôdio, tacanho e dominante é a ordem da fachada (para quem uma universidade em cada cidade seria sinal de “progresso” e não uma marca de rigor científico), é a identificação forçada (delimitando fronteiras fantasmáticas e denegando aberturas ao “outro”), é a celebração autista de pequenas e ridículas rivalidades (em diversas escalas: Porto vs. Lisboa, Viseu vs. Coimbra ou Beja vs. Évora, etc.), é o vulgarizar de discursos delirantes (Alberto João Jardim vive no paroxismo desse efeito retórico) e é, sobretudo, uma visão muitíssimo restritiva do espaço público (os actuais organigramas partidários e também corporativos movem, de maneira quase invariavelmente reversível, pouco mais do que uma centena de pessoas em cada região).

Não sei qual vai ser o caminho do regionalismo em Portugal. Mas temo que o aproveitamento partidário do fenómeno nos conduza, cada vez mais, a uma nova espécie de cegueira social e política. Quando a referência de fundo deixar de ser o mundo, o global ou tão-só a Europa, o que nos sobrará (neste nosso nobre e tão segmentado cantinho)?
Ou a ascensão definitiva dos regionalismos ao poder central (o que já vai sendo, aqui e ali, mais ou menos normal e “folclórico”), ou a reentrada em cena de um cenário ainda pior: o nacionalismo (essa catarse silenciosa e arbitrária das fés regionalistas).