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terça-feira, 5 de abril de 2005

UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
TRIGÉSIMO SEGUNDO EPISÓDIO
(O sortilégio)

Albe não se lembrou de mais nada.
Viu-se freneticamente a correr entre muros altos de xisto, entre devaneios puros e aquela mancha de luz fortíssima e azulada. Uma música branca, monocórdica, diáfana.
Albe, diante de tal cenário meio funesto, imaginou-se para sempre a fugir, a fugir, a fugir, montando um ágil cavalo do Atlas e carregando às costas o precioso saco de violinos em miniatura. E foi no meio desta névoa de elixires que Albe acabou por acordar numa enfermaria do hospital de Salamanca.
A seu lado, dois polícias franzinos e um enfermeiro gordo de bigodes vastos.
Depois, o diálogo foi pouco mais do que brando, distante, uma concórdia alimentada por calmantes e explicações sem grande sentido:
- É o tempo em que agente vive, é o tempo em que vivemos, sabe? Mas, pelo menos, não foi roubada, nem nada de mal lhe aconteceu. Não imaginamos sequer o que os bandidos pretenderiam da senhora. Deverá ter sido um erro da parte deles, pensamos nós. Eles devem ter pensado que a senhora era… quem, de facto, não é.
Albe ouvia ao longe estas palavras sem eco e acenava afirmativamente.
Dois dias depois, já regressada a si, foi levada ao comboio que a levaria de regresso a casa.

*

Edmundo também apareceu subitamente no banco do hospital de Salamanca.
Acasos, passos fortuitos, tensões remotas.
Não era por menos, dizia o Dr. Hernandéz que tinha um rosto tão feérico quanto franquista. A voz gutural, velada e rígida. Tudo não passara, afinal, de um valente susto: baixa tensão, cansaço, luzes cada vez mais densas, uivos de lobo, risos, os rostos a agigantarem mil explicações e, por cima de tudo, o sol feito de papel almaço suspenso na parede suja do compartimento.
E o médico ainda a sorrir e a ter que repetir: - Foi só baixa tensão, mais nada. O senhor tem que descansar um bocadinho mais!
Ao fim de duas horas, Edmundo caminhava já entre plátanos a tentar perceber as vozes que o perseguiam. Uma fonte de água quase gelada, o passeio muito geométrico, dois corvos pretos a cantarolar de modo chão, as telhas a luzirem e a lua nova irremediavelmente esquecida.
Que fazer?
Edmundo, ainda atordoado, acabou por conduzir o carro muito lentamente até junto à estação. Sem grandes lógica, saiu, fechou a viatura com a chave e disse duas ou três palavras muito baixas que nem o próprio narrador conseguiu ouvir.
O medo de guiar invadira-o quase intuitivamente. Comprou já na gare um bilhete para Paris, entrou no bar da sala de espera e, quando o empregado lhe perguntou o que queria, Edmundo respondeu compassadamente: - Não sei.
Foi nessa altura que, por trás, uma mão tocou ao de leve no casado de Edmundo.
Quando se virou, ainda mais atordoado, Edmundo viu e reviu o rosto.
Aquele rosto líquido, veneziano e incendiado pela surpresa.
Desde esse dia quase solar que Albe e o português nunca mais se largaram.
Até hoje.


(O próximo episódio será o último deste folhetim, um dos maiores acontecimentos romanescos do amor fatal já vividos na blogosferta e fora dela)

Continua