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sexta-feira, 1 de abril de 2005

UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
VIGÉSIMO OITAVO EPISÓDIO
(A determinação de Albe)

Todas as noites era o mesmo. Albe andava sempre de um lado para o outro dentro do seu novo apartamento da Défense, depois de regressar do escritório meio barroco do Dr. François Lambert, um conhecido advogado parisiense que tinha olhar de Fernandel e voz acerada à George Pompidou. O dia também se repetia sem grande gáudio. Era tudo uma questão de sumo improviso a saltitar de caso para caso: desavenças matrimoniais, heranças complicadas, pecados fiscais, servidões bizarras, dívidas sonantes, nomes lesados, políticos afortunados.
Mas durante a noite, Albe mais não fazia do que andar de um lado para o outro.
Albe nunca esqueceu as grandes manchas de terra barrenta, argilosa, espécie de torrente ou levada de chuvas que na realidade não tinha chegado a ver em Veneza, mas que lhe apareciam agora em sonhos de noite para noite.
Albe não esquecia aquela triste chuva miúda que se espalhara na Giudecca e na boca do Grande Canal, horas depois do pesadelo chamado Edmundo, e antes de ver voar sobre si um violino de prata com que sonhava agora, também, todas as noites: era um homem com mascarilha negra que a vestia com limos negros do Lido e a fazia descer ao centro da terra agarrada a uma prancha de surf onde se viam escritas as letras “ED MONDE”.
Albe acordava desesperada, cheia de olheiras, corria para o metro e, já perto da Étoile, subia apressadamente as escadas até à talha dourada recheada de espelhos oblongos que servia de fundo à sala de espera do escritório de advogados. E o Dr. François, hirto como um flamingo faminto, já a esperava e olhava de alto a baixo como se quisesse voar com ela para o Quénia, envergando camisa de caqui e chapéu à Cantinflas. E de imediato aterravam na arena dos tribunais até à hora do cinema.
Depois aparecia, de facto, o Playtime de Tati para adormecer as náuseas, mas nada, fosse o que fosse, evitava, mais tarde, a rotina solitária de Alba: de um lado para o outro dentro do seu apartamento geométrico como se fosse uma leoa sem selva, uma arara sem árvore, ou uma nuvem sem céu. E ali ficava à janela do seu sétimo andar, entre o prazer agridoce dos Gauloises e a espessura transparente do Marie Brizard.
Hora após hora.
Até que numa noite dessas, Albe, determinada, tomou a decisão da sua vida.
Estávamos já em Janeiro de 1970.


(No próximo episódio, a memória de António Romeu, o amigo de infância de Edmundo que um dia mudou radicalmente de vida, vai entrar de novo em cena.)

Continua