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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2005
Sei que vou perder hoje. Mais vale pensá-lo e dizê-lo bem alto antes do jogo. Sem desenganos, sem rumores e sem grandes expectativas. Se, por mistério dos deuses, acontecesse o contrário, então ficaria feliz. Felicíssimo. E teria valido a pena esta confissão recolhida. Raramente um benfiquista pronuncia com as cordas vocais bem sonantes o embuste que, há mais de uma década, lhe estria as artérias. Contudo, hoje, desportivamente, prefiro aguardar pela densa mornidão da normalidade. O niilismo futebolístico é uma espécie de fermento que dança na suavidade dos relvados. Esse estranho estado que precede e pressente o ressentimento, mas sem nunca nele penetrar ou com ele perversamente sequer conluiar.
Folhetim à moda clássica
TERCEIRO EPISÓDIO
(A jarra cristalina e a perdição dos olhares)
Albe olha-se, pela última vez, ao espelho, fecha a porta do quarto, entra no elevador e desce até à sala dos pequenos almoços.
Estamos na alvorada do mundo, pensa Albe sem o saber, sem mesmo o dizer.
A porta do elevador abriu-se e Albe saiu finalmente.
Na sua frente, Edmundo cristalizado e persuadido, há séculos, pelas folhas do jornal que estão abertas, ou desfolhadas, como a rosa imaginada pela doce francesa que, após breve indecisão, o surpreende, o paralisa, o interrompe.
Para sempre.
E Edmundo já de pé, sentado, de pé, com o jornal a enrolar-se na mesa oval e Albe a dizer que dormiu bem - Olá, desde ontem, - Quanto tempo fica aqui ? - Sim, que eu também gosto de me levantar cedo, - Estuda ou trabalha, gosta de chocolates ? - e Albe a dizer que é jurista, advogada, há um mês apenas que acabou o curso.
Vocação ?
Eu ?
Talvez.
Que é o mundo, senão um estranho cruzamento de vocações, de propensões, de chamamentos, de predestinações, de. Edmundo com o lenço branco na mão e o pijama arrastado e não menos branco de Albe; uma mesma mancha solar a soltar-se e a voz, já menos seca, a cimentar o seu lugar, o seu timbre; e o tom, por fim, a ancorar no olhar, dentro do olhar.
- Quem és tu, afinal ? - Em que varanda estarias tu, afinal ? - trocam-se sigilos, tempestades e, por trás, a jarra continua cristalina, alta e envidraçada, uma imensa vocação de transparência sem nome.
(No próximo episódio entrará em cena um antigo amigo de infância de Edmundo. Histórias antigas que irão bater à porta desta novíssima e ainda esfumada que retira a voz à própria voz de Albe e de Edmundo)
Continua
(publicação simultânea da versão matricial em Inglês no blogue Minion)
A noite que ligou o passado domingo ao último dia de Fevereiro foi, mais uma vez, uma espécie de passadiço diáfano onde o luar dos estúdios e a habitual tela de estrelas resplandeceu. Hollyhood é mesmo assim, goste-se ou não. Ilimitada cultora de um pacto quase vulgarizado, a Academia acaba por pôr em cena a nossa imaginação, a nossa descrença, o nosso brilho, a nossa impiedosa doçura e até a nossa vontade de crer na semente do disfarce. É disso mesmo que Hollywood é feita: da celebração pela celebração. Do aceno pelo aceno. Do glamour pelo glamour.
O mais curioso é que o verdadeiro interesse se centra sempre nos famosos. Mas não, como se poderia supor, nos grandes actos que seriam próprios dos famosos e que lhes garantiriam a fama. Pelo contrário, tudo parece cingir-se à lentidão ritual do momento em que chegam, naquela procissão delongada de sorrisos obrigatórios ao longo da passadeira vermelha. Tudo parece cingir-se aos gestos monocórdicos com que batem palmas e se entreolham entre coxias, diagonais, passadeiras e luzes desenhadas à medida. Tudo parece cingir-se aos beijos cronometrados, aos abraços esperados e às frases proverbiais e previsíveis (“And the Oscar goes to…”).
O espectáculo acaba por consagrar - o verbo consagrar repõe a mitificação no lugar que é o seu - os pequenos gestos e as pequenas coisas que são próprias de todos nós, mortais. Mas a verdade é que esses pequenos gestos e essas coisas menores, que são próprios dos habitantes da Transilvânia sombria ou do Haway vulcânico, conseguem atingir, na noite ímpar e única dos Óscares, a condição de um ponto-ómega da existência. Todos os anos assim é. Meteoricamente. E ainda bem.
Quem teve paciência para rever o fausto noctívago do passado domingo não descansou enquanto não viu a cara avermelhada de Leonardo Di Caprio entre apertos de mão efusivos, no momento preciso em que John Reilly sondava, com alguma maravilha, o ar supostamente admirado e assombrado de Kate Blanchet. De algum modo, reviu-se na programadíssima transmissão televisiva o mesmo fascínio inquieto e absolutamente espontâneo que perseguia os primeiros espectadores do cinematógrafo.
A estupefacção que os invadia, há mais de um século, advinha não tanto do pasmo da imagem móvel e dos princípios estroboscópicos então emergentes, mas sobretudo do encanto com que podiam reexaminar os mais pequenos actos do quotidiano: o cão que corria entre os operários que saíam da fábrica, as mãos corpulentas que seguravam num bebé, os arbustos do quintal onde uma mangueira regava de forma descontrolada, as vestes das senhoras ao subirem para os eléctricos, as barracas ao vento na praia de Brighton, etc.
Na realidade, como advertiu Michael Marmot, na sua crónica do New York Times do passado domingo, os prémios da Academia “não são apenas um mero desporto. Eles são, isso sim, uma questão de vida ou de morte. Em média, os vencedores vivem mais quatro anos do que os nomeados que não ganham nada”. E já se sabe que a matemática não falha. Apesar do fascínio, da denegação, da espontaneidade e da previsibilidade do glamour, o mercado é inexorável. E ainda bem, provavelmente.
Apesar de tudo, o certo é que, tal como os peregrinos de há mil anos que andavam a pé centenas e centenas de quilómetros para poderem olhar para os vitrais de uma imensa catedral onde se escrevia a história toda do mundo, também nós, hoje em dia, andamos a saltitar com o olhar pela TV para nos apercebermos de rituais tão hipertecnológicos quanto simples e elementares: pequenas coisas, gestos minúsculos, breves sinais, imagens e mais imagens que se esquecem de ano para ano.
Ao pé de uma tal “miniatura civilizacional”, resta-nos pelo menos um Deus que sempre dura quatro anos.
domingo, 27 de fevereiro de 2005
"My level of sympathy for the almost-did-it millionaire actors is, shall I say, appropriate to their misfortune."
(Michael Marmot)
É de novo manhã. Edmundo desce até ao hall e nem repara na jarra de cristal, alta e envidraçada, que mais parece uma devoradora labareda a desafiar a vasta montra, de onde se vê a piscina.
A noite trouxe-lhe visões de carris em ladeiras inclinadas, rios pousados no olhar demorado das amazonas, vozes ocas em surdina através de palanques e, do outro lado desse troar profundo, entre heras desfiadas, Edmundo ainda a sondar as luzes do hotel, a sarabanda das varandas e da folhagem que só daria sinal de si, a altas horas, já a brisa do Mediterrâneo a tal se permitia.
Antes de avançar para a sala dos pequenos almoços, Edmundo, acabou por aquietar todos os abismos, no momento em que viu noticiada, na primeira página do ABC, a invasão da Checoslováquia.
Nesse brevíssimo instante, o português atirou-se para o sofá e quase esqueceu a porta do elevador, mesmo à sua frente.
Albe sai do banho, passa pela toalha, veste o pijama branco de columbina e imagina duas grinaldas no cabelo, além de uma rosa vermelha e sem espinhos a desenhar-lhe a boca. Sorri na direcção da varanda e espreita, depois, entre persianas delongadas, o azul mais-que-perfeito do mar em estado de falsa mansidão.
São palmeiras abertas e um papagaio, e são horas do sono confundidas com a imprevista aparição de casas claras, quase brancas, e, por cima, vasos com rama frondosa e um santo popular de olhos muito verdes.
- Que horror, onde é que eu já vi uma coisa destas ? - Albe olha em volta, rodopia em círculo, dança e quase entontece até voltar a rir para si, a sós.
Que terá acontecido?
(No próximo folhetim, Edmundo e Albe estarão finalmente face a face)
Continua
(publicação simultânea da versão matricial em Inglês no blogue Minion)
sábado, 26 de fevereiro de 2005
Folhetim à moda clássica
O mundo desfez-se subitamente em delírio e a própria hora do pequeno almoço já quase fazia esquecer a catadupa de luzes em que o hotel se havia transformado, durante toda a noite.
Tinham sido pirilampos, mosquitos e moscões e Edmundo sobre andas a caminhar, a imaginar edifícios, construções, ou o imenso mecano do universo, mas, sobretudo, o lugar incerto da varanda de Albe.
Qual seria ?
Que labirinto, que névoa, que sonho podia encobrir o vazio deixado por esse quarto, desde que atravessaste a piscina como uma sereia de ouro, Albe ? - e Edmundo a adivinhar na escuridão uma candeia gigante, os alicerces de um fauno de Tróia, ou o desmedido cavalo sobre rodas para penetrar na varanda, como se fosse Zorro e ela uma Julieta de rara fasquia para fado tão brusco.
E Albe lá estava, diante do espelho, nessa mesma noite de vagas suspensas pelo tempo, a vagabundear ao lado dos touros e pégasos da Camarga com a senha do amor a espalhar-se no sigilo, ou na elementar música com que o seu coração de pomba continua a bombear, com fugacidade, a retina próxima desse dia.
- Quem seria ele, afinal ? - e Albe, diante das sombras inúteis, depois de apagar a luz do quarto, a ver agora o movimento dos vultos desenhados no estuque do tecto e a pele a tumultuar-se sob lençóis muito finos e o calor da noite, sempre a mesma noite pródiga, a dizer em voz baixa o nome da lassidão, da magia, da resposta sem fim.
- Por que me olhou ele daquela maneira ? - e Albe diante da câmara incandescente da noite, as estrelas a preencherem esse vazio de cortinas abertas e os ralos e outros animais invulgares a calcorrearem o mesmo fado, de tão vivo.
(No episódio de amanhã, Edmundo aparecerá já de corpo inteiro. E, depois, o que irá realmente passar-se?)
Continua
O MINISCENTE VAI PUBLICAR O FOLHETIM "UM AMOR CATALÃO" DA AUTORIA, NATURALMENTE, DO PATRONO DESTE BLOGUE.
O PRIMEIRO EPISÓDIO DESTA HISTÓRIA DE AMOR VAI APARECER DENTRO DE CERCA DE DUAS HORAS.
OS LEITORES PODERÃO E DEVERÃO CONTRIBUIR, ATRAVÉS DE COMENTÁRIOS OU MAIL, PARA A PROGRESSÃO DO ENREDO.
ESPERO QUE "UM AMOR CATALÃO" CONSTITUA UMA EXPERIÊNCIA NOVA E DIFERENTE NA NOSSA BLOGOSFERA!
LUÍS CARMELO
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2005
Ou de como um certo radicalismo pode decisivamente contribuir para que jamais se realize um debate a sério.
A polémica de fundo é esta: para muita gente, sobretudo na Europa mas também nos EUA, um alegado "estado de excepção" não pode de modo nenhum legitimar o que realmente se passa, hoje em dia, em Guantanamo; no entanto, para quem acredita que a actualidade pós-9/11 vive sob os inevitáveis e perigosos auspícios de um "estado de excepção", tudo aquilo é normal e necessário.
O texto de Brendan O'Neill é elucidativo. Um livro como o de Robert Kagan (Of Paradise and Power: America and Europe in the New World Order) também ajuda - e de que maneira - a entender o tipo de clivagens que estão a atravessar, neste momento, o Ocidente.
Nada decorre num registo a preto e branco, convenhamos. Nem mesmo a visita de Bush à Europa (incluindo a apoteose de Bratislava e as manifs e contra-manifs de Bruxelas).
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2005
O meu ex-aluno Bruno Ribeiro anda em nomadização voluntária há alguns meses. De vez em quando, tem enviado uns relatos apetitosos. Já publiquei aqui dois. O que se segue são extractos do último e longo relato da série:
“A Argentina é uma perdição. Um mês e meio neste país foi o suficiente para não querer abandoná-lo. O Luís ficou a viver em Buenos Aires, na bela área de Palermo Viejo. E eu tomo o meu avião amanhã. Talvez adormeça e tardiamente acorde com os olhos iluminados por uma comoção qualquer.”
“As montanhas argilosas e calcárias, elevam-se perto da cidade (Quebrada de Humahuaca). A planície é rodeada por estes altos relevos que convidam as pessoas a estarem sentadas, quando tudo permanece silencioso e apenas as plantas ostentam a sua sombra.”
“Depois veio Tucuman e as tucumanas. Dizem que há sete mulheres para um homem nesta cidade; deve ser por uma razão genética, ligada a factores climáticos.”
“Seguiu-se Mendoza. Esta cidade é um exemplo a seguir para futuros urbanistas. O parque central, fica apenas a quatro quadras do centro. É uma longa floresta com infraestruturas para praticar desporto, fazer churrascos, acampar, dormir uma sesta. Cada rua é coberta por árvores muito antigas que nascem nos extremos dos passeios. São regadas por uma água que passa através de pequenas valas e que é também utilizada para limpar as ruas. As vinhas estendem-se à volta.”
Boa viagem de regresso, Bruno!
"I always get suspicious when people put any adjective in front of democracy -- people's democracy, proletarian democracy, Aryan democracy, managed democracy (...)"
(Fonte anónima da comitiva de Bush, hoje, em Bratislava)
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2005
Já há campanhas contra a compulsão criada pelos blogues. Já há peritos a desaconselhar o entusiasmo de fluxo que é próprio dos blogues. Já há, imagine-se a paródia, "bloggers anónimos"!
Reuters
Um blogue egípcio defende que a luta pela democratização do país passa pelo apoio a Mubarak, agora que o seu quinto mandato se avizinha. Contudo, o post é particularmente interessante já que dá conta, de um modo democrático e saudável, dos movimentos que se opõem a esta visão. A ler.
(via Minion)
Quando é que um avião se lembra de libertar compostos químicos na atmosfera para pôr o país, de repente, a sorrir?
O blogue Just One Minute colocou o ovo em cima da mesa e disse em voz alta que a rede de leitores do The New York Times é uma verdadeira "collective expertise" que ultrapassa de longe a esquemática ideia dos editores, segundo a qual, de um lado, estão os produtores de notícias e, do outro lado, estão os leitores como "simples consumidores".
Para que a interacção entre a opinião especializada dos leitores (que atinge números impressionantes por notícia no NYT) e a oferta do jornal possa ser optimizada, o Just One Minute propõe que o provedor dos leitores (Daniel Okrent , "the readers' representative") passe a criar um blogue com todo o material que o NYT absorve diariamente, a maior parte do qual, naturalmente, não é divulgado.
Esta nova forma de pressão que se exerce nas terras de ninguém entre "blogging" e "mainstream media" aparece corroborada, com outras perspectivas, por exemplo por Jeff Jarvis e por Rebecca MacKinnon. (ver mais no Minion)
terça-feira, 22 de fevereiro de 2005
Em Espanha passou-se qualquer coisa de extraordinário. A análise e o juízo políticos do referendo de anteontem recaiu, não tanto no "Sim" ou no "Não", mas antes na arbitrária fasquia dos 40 % de abstenção. Era aí, nessa barreira, nessa medida - não sei com que legitimação - que se decidia a vitória do PP ou do PSOE. E este último acabou por vencer com alguma dose de imprevisibilidade. Estranha forma de vida. Mas tudo isto é a prova provada de que, nos referendos, se vota muito mais no imediato, na conjuntura, nas clivagens paroquiais do que naquilo que é referencialmente posto à votação.
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2005
Ainda não sei como foram recebidos os resultados eleitorais na blogosfera. Tenho que fazer uma viagem. Mas acho que a falta de euforia dos vencedores equilibra o vacuísmo* dos vencidos.
(...mas nada de tirar importância ao jogo do Benfica logo à noite. Esta coisa das eleições enche os noticiários e parece querer tapar o mais importante. Já se sabe: Sport TV às 20.30h. Apareçam cá em casa)
* filosofia que preconiza a existência do vazio para além do mundo.
Só estala o verniz num espaço onde antes foi cultivado, forçado e estriado o próprio verniz. E "Deus" ajuda sempre. É esse o registo patético que não ensombra, é evidente, a frontalidade. Falo de Portas, do mano mais novo.
(Por outro lado, foi nesse momento - "e estou-me nas tintas para..." - que senti que o Paulo Portas se tinha sentido realmente livre pela primeira vez desde 1998. Não devo andar muito enganado)
(E... Nobre Guedes foi eleito por Coimbra? Tenho que ir ler melhor os jornais)
Há, quando muito, aquilo que pode ser designado por duas esquerdas feéricas que clamam e reivindicam infinitas vitórias.
E, do outro lado, há Sócrates.
A euforia do mesmo saco não pertence, e ainda bem, ao território de que agora se espera um governo.
(Entretanto, lembremo-nos de que Portugal tem 730 000 funcionários públicos, 2 591 000 pensionistas da Segurança Social, 477 000 reformados e pensionistas da Caixa Geral de Aposentações, 307 000 beneficiários do subsídio de desemprego, 351 000 beneficiários do RMI.
Número total: 4.456.000 em 10 milhões de habitantes. Com a família mais próxima este número torna-se, ele sim, numa assustadora maioria absoluta)
(Entretanto, lembremo-nos de que as prestações sociais do estado português aumentaram de 14 para 17 por cento do PIB entre 2000 e 2003 - 6,1 milhões de euros. Esse crescimento correspondeu a 90 por cento do aumento das cobranças fiscais no mesmo período - 6,8 milhões de eutros)
O importante na maioria absoluta do PS é não ficar preso à retórica do BE/PCP. Sócrates terá que fazer contas e seguir em frente. Sem esquecer que há pares, é certo, mas levando apenas à prática o que se propôs de facto levar à prática. Sem se ir embora, sem dar continuação ao fantasma das fugas e repondo a noção material do cumprimento dos ciclos politicos. Hoje em Portugal, terá que haver alguma obstinação e até alguma indiferença ao ruído para se fazer o que é normal, por exemplo, em Espanha.
Isto não impede outras incertezas (ver posts em baixo e lembrar a quase ausência de euforia que ontem percorreu as ruas).
Actualizando: tive a ligeira sensação - isto é uma ironia - de que Sócrates não foi capaz de fazer aquilo a que se chama "um discurso de vitória".
Como dar volta a isto? -
"Com um crescimento económico à taxa média anual de 2,2 por cento (1990-2003), a diminuição dos custos com o "pessoal" para 13 por cento do PIB (2008) e 11 por cento (2012) e o aumento das "prestações sociais" à taxa anual de 7,5 por cento (2000-2003), as "despesas correntes primárias" atingiriam os 43 por cento (2008) e os 47 por cento do PIB (2012), níveis insusceptíveis de financiamento fiscal. Neste quadro hipotético, a estabilização das "despesas correntes primárias" ao nível dos 40 por cento pressuporia uma década de crescimento económico à taxa média de 4 por cento."
(Medina Carreira, em O Público)
"Os partidos dificilmente correspondem a essa necessidade de mudança, porque se sentem limitados pela Europa, pela economia, pela pobreza, pelo peso do Estado, e isto prolongando-se durante muito tempo, por vários ciclos eleitorais – e de alguma maneira, desde as maiorias absolutas de Cavaco Silva, os ciclos eleitorais reproduzem uma certa impotência política –, penso que pode ser um problema muito grave."
(José Pacheco Pereira, em A Capital)
O argumento típico da “cultura do livro” relativo à diagonal aparece espelhado no Dicionário da Academia com máxima clareza: “ler em/ na diagonal -- ler rapidamente, de uma forma superficial, percorrendo o texto em ziguezague, em viés”.
Juro que adoro, com o devido sorriso, esta linguagem dos dicionários.
É extraordinária a expressão “ziguezague”. De tal modo que nos leva imediatamente para os patins que resvalariam numa pista de gelo onde cada cristal seria uma palavrinha arrumada, douta e digerida. Esse tipo de ágil deriva ou percurso sobre “o texto” é visto, no dicionário, como exageradamente rápido e superficial. Como se o movimento e a superfície fossem inimigos da compostura e do saber. Aos partidários dessa visão almofadada, aconselho um autor hoje muito na moda: José Gil e o seu livro de 1996 sobre a imagem-nua e as pequenas percepções, do qual deixo aqui um delicioso extracto (p.40):
“O olhar escava a visão. A vista é o único sentido que adquire (assim) uma profundidade interna: o olhar reenvia para o interior do corpo (como para o sem-fundo da alma). A profundidade do tacto depressa se torna superfície; a profundidade do ouvido não existe enquanto tal, mas apenas como engendramento de uma superfície interna, ou de um espaço volumétrico - ambos limitados; a profundidade do olfacto dissolve-se no difuso; a do gosto, esgota-se na assimilação do corpo. Só a vista, através do olhar, penetra até a um sem-fundo”
Não terá sempre o livro tido o seu próprio “sem-fundo”, ao contrário do que pretenderão os cultores da cultura do livro?
Não será “o fundo” do livro - o tal que torna pejorativa a leitura em diagonal - uma grande ilusão de perspectiva (como a dos cenários pictóricos pós-quattrocento)?
Ou será que apenas blogues sabem viver deste “sem-fundo”, onde a diagonal é rainha do seu próprio reino chamado rede?
(esclarecimento: eu sou uma pessoa dividida entre dois amores profundos: o amor pela cultura do livro e o amor pela imaterialidade dos blogues, Por este último, o amor é mais apaixonado, visceral, encantatório. Pelo primeiro, o amor é mais conformado, temperado ou até místico. Daí que a “diagonal” se torne num tema escaldante!)
Sabem qual foi o ponto-ómega literário das diagonais (falemos agora de escrita e não de leitura)?
Foi a famosíssima “chuva oblíqua” do Fernando Pessoa.
(no meu apartamento de Amesterdão, lembro-me que havia uma parede quase toda coberta com um pano minimalista onde apareciam estampadas as formas de uma chuva oblíqua. Há figuras que obsessiva e secretamente nos perseguem. Iconologias pessoais.
Talvez seja apenas uma pressentimento. Ou uma espécie de profecia invertida que parte do futuro em direcção aos fragmentos do presente. Ou um simples paraíso onde se sentem novos impactos: ideias fugazes, argumentos em construção, quotidianos em curso, fragmentos imperfeitos e encapelados, etc.
O ser dos blogues vive na razão inversa das correcções e depurações que são próprias da cultura do livro. Na escala do imediato, fica sempre por dizer aquele corpo que a linguagem um dia diria.
Sim, a cultura do livro sempre idealizou que a linguagem, um dia, iria dizer tudo (de cima para baixo): o futuro, a salvação, a escatologia, a ética, a teodiceia, tudo.
Mas aquilo que se diz na escala do imediato equivale tão-só a uma luz muita viva que já chegou, mas que ainda não chegou a ser. Um corpo dinâmico apenas feito de cometas que se cruzam. Em rede.
É sábado, fim de tarde, tom azulado, solar, um pombo a desenhar o arco levíssimo do céu até pousar na abside quadrangular da igreja. Granito claro e alvenaria puída, suja, áspera, memorial. Volto a olhar para o tampo da mesa onde sou absorvido pelo perímetro irregular do monitor, pixels, ícaros minúsculos, espuma de tempestade errante.
Enfim, seja como for, escrevo no Word porque estou sem internet. Desde Sexta-feira de manhã que, inexplicavelmente, deixei de ter ligação. Sem mais, pum pum, foi assim mesmo como quem diz - Ah! Não queres saber da campanha, então toma!
Um dos dramas dos dias de hoje é conseguir chamar um técnico a casa, mesmo pagando bem. É um deserto de oferta à nossa volta. Parece que este tipo de procura tecnológica não é contemplado no mercado com uma oferta de jeito, mínima, apetrechada, séria. Se se tratasse de uma pizza, a coisa não seria bem assim. Até porque esse choque, já Portugal muito assimilou há muito tempo: é o famoso “choque das massas”, ou da fast food rapidinha a sorrir sem freios da sã obesidade e sempre à boleia das motorizadas de estrompido arreliante. Há dias e há horas, dessas pessoanas, urgentes, pungentes como as que são cantadas no cais da Ode, em que me sabe mesmo bem devorar uma dessas iguarias liofilizadas. É a Ceia depois da Ode, ou não fosse esse o étimo vulgar e plebeu da Odisseia (Charlotte não me batas!). Adoro, de vez em quando, só para arreliar os puristas, um belo hamburger encrostado, um pizza ainda a lembrar a gelo, um croquete estaladiço com um ou outro vestígio de esferovite. Nesse campo, já eu, e já todos nós interiorizámos o choque. Falta o outro, o tecnológico.
Perceberam a falta? Mas esse, dizem os peritos, é um tipo de choque que apenas nos irá abalar daqui a uns dez anos. Receita finlandesa. E até lá, perguntou eu?
Vou ficar aqui à espera de alguma empresa “24 hours a day” que se desloque de helicóptero até ao meu pátio encantado? É isto, afinal, a “wireless” (- Eles falam tanto tanto! - Fiquei a gostar mais do Ricardo, sinceramente, desde que soube que ele pertence à mesma maioria absoluta a que eu, o Pedro Mexia e mais seis milhões E MEIO de bons portugueses pertencem)?
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2005
Contudo... a diagonal continua a ser um problema polémico e divergente. Veja-se: ler um jornal em diagonal é normal. Suspeitar que um ministro não conhece os dossiês (lê-os em diagonal) é terrível; já faz perder eleições. Ler as intruções de um software em diagonal pode ser perigoso. Mas andar na Diagonal, em Barcelona, pode ser fantástico (também depende como, com quem e quando). Agora a sério, retomarei o tema.
Continuando a nossa conversa da manhã: não acham que "ler em diagonal" (trata-se de uma expressão ligada à cultura do livro) não é, de certo modo, uma longínqua antecipação da expressão marcadamente contemporânea "navegar/surfar na rede"?
Em ambas o olhar desliza à procura de sentidos que vão unindo elementos dispersos, à medida que se vai formando uma compreensão, também ela deslizante, mas profundamente intuitiva e certamente em forma de um rasgo que apela à manobra maior da inteligência.
Estou certo disso. E qualquer crítico - não me refiro agora ao professor Marcelo - que diga em voz alto o que faz, no dia a dia. Só poderá confirmá-lo. Estou também certo disso. Sem hipocrisias desnecessárias. Até porque uma certa "moralidade" tradicional da leitura, nos tempos que correm, tende mais a confundir-se com ingenuidade provecta do que propriamente com a verdade pura e dura. Ainda estou mais certo disso.
Retomarei o tema.
Veja-se este precioso sinal dos tempos vindo directamente do Iraque (blogue Iraq the Model):
"Maybe the reason for not writing much these days is because of the current situation in Iraq; the elections are over and the results have been announced so there's nothing BIG to reason or to write about.Also, there aren't any remarkable changes in the everyday life in Iraq recently; although the security situation has somewhat improved in Baghdad but still not to the degree that makes a difference. Less explosions and gunfire are heard but criminal gangs still perform their attacks so the citizens of Baghdad are still cautious."
Já não sei quem disse que o tema central do trabalho literário do Eça era precisamente o ócio. Tirando os "gangs" e outras desventuras, cada qual na sua escala e época. É claro.
Ainda seguindo o pretexto da demissão de Eason Jordan da CNN, vale a pena ler este artigo de Elizabeth Spiers sobre a relação entre "blogging" e a (altivamente) designada "mainstream media".
Os casos por cá ainda não constituem uma dramatização com a que é aqui narrada. Mas já há uns sinais. Não há?
Glenn Reynolds apresentou no seu blogue dois (novos) livros de Tony Daniel. Do primeiro, Metaplanetary, disse Glenn ter gostado e até testemunhou o facto com alguma ênfase. Quando ao segundo, limitou-se a afirmar: " (and) Superluminal, which I haven't read yet, but which looks quite good (...)".
É por essas e por outras, talvez, que ninguém ousa, pelo menos em vida, desdenhar o trabalho de William Shakespeare.
Mas, por outro lado, qual é o mal de ler e apreender um livro pela diagonal? (acho que a diagonal é mesmo um bom tema para desenvolver aqui nos próximos dias. Que acham?)
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2005
O Ritornello, programa da Antena 2 de Jorge Rodrigues e Maria dos Anjos Pinheiro, de que sou incondicional fã, tem estado a ser emitido a partir do Brasil. Um óptimo som, uma óptima atmosfera, uma grande serenidade e, hoje, com a voz de Tomás (de Aquino Carmelo) Alcaide, senti um especial sentido de proximidade.
Aaron Ben-Ze'ev acaba de escrever um livro sobre as paixões que podem invadir-nos neste mundo muito particular: Love Online: Emotions on the Internet. O livro, tal como Yuval Dror testemunhou, compara "amor à primeira vista e "love at first chat". Mas não só:
"Ben-Ze'ev writes that this kind of love is based on a "personality cult" in which someone who has certain good qualities is assumed to have others. To illustrate this, Ben-Ze'ev provides quotes from people who say they fell in love with an on-line partner from their very first conversation. He uses this effective strategy throughout the book, which is interspersed with hundreds of quotes (some of them quite charming) from people talking about their on-line experiences".
Já agora, qual é a sua experiência neste campo tão singular?
(via Minion)
terça-feira, 15 de fevereiro de 2005
Sobre recentes demisões na CNN e sobre o impacto dos blogues no Reino Unido vale a pena ler este artigo de Rhys Blakely no Times On-Line.
Então não é que o livro de estilo do The New York Times proíbe o uso da expressão “bullshit”! Trata-se de um caso terrível para um ensaísta como Harry Frankfurt e sobretudo para o seu recente ensaio, “On Bullshit". Lawrence Solum não tem dúvida: é coisa que vale a pena ler. O pior é a elipse mediática (via Minion).
Um bom exemplo de como o "corporativismo" jornalista (a expressão não é pejorativa), às vezes, está ainda a milhas do tempo de abertura omnipolitana em que vivemos é a crónica que aparece hoje no Público, assinada por José Vitor Malheiros.
Vejamos esta parte subtil onde os blogues aparecem referidos:
"Que a lógica displicente de produção de um blogue (que na origem é um diário pessoal) tenha penetrado no próprio jornalismo e no relato dos factos é mais grave. Mais do que relatores, os jornalistas tornaram-se comentadores, fontes de apartes, piscadelas de olho e cotoveladas cúmplices no leitor. Como esta campanha eleitoral mostrou à saciedade (mas já vem de longe), os jornalistas têm uma dificuldade cada vez maior em guardar para si próprios os seus sentimentos e conjecturas, as suas opiniões ou os boatos de que têm conhecimento e acham que eles merecem a glória do blogue, quando não da radiodifusão ou da impressão."
Sem comentários.
Uma outra parte bastante palpitante deste texto é a referência à "verdade" (basta clicar e ler) e sobretudo a sempre ocultada natureza dos seus destinatários que, ao fim e ao cabo, secretamente motivam - e de que maneira - toda a enunciação do encolerizado relato.
No dia seguinte, vimos ao longe, muito ao longe, uma caravana de mercadores. Era um cortejo lento e de tons claros a disputar as hastes do horizonte, já de si um belo e único prodígio de fôlego. No fundo da tela mais do que irreal, o movimento ondulado dos animais e o esfumar esmiuçado das figuras avançava. Personagens de fumo esbatidas na linha quase translúcida que mal separava o azul amplo do céu e a indefinida limpidez do areal avançavam. E tal como magicamente apareceu assim também se desfez esta visão, no último cabo do olhar com que nos era dada a perspectiva. Ou talvez a ilusão. Ou ainda o sortilégio inexplicável e fino do amanhecer.
(continuo a escrever, já se vê)
Já tudo aconteceu no deserto:
já aqui se cruzaram oceanos, florestas luxuriantes, rios caudalosos, savanas intempestivas, praias temperadas e desalentos estépicos. Toda essa lembrança aparece agora distentida no horizonte, grão a grão, cacto a cacto, esqueleto a esqueleto, miragem a miragem, memória a memória. Aqui a morte e a vida, o pecado e a virtude, a brancura e a treva igualam-se. O que deve ser e o que pode ser equiparam-se. Sobra sempre a distância, o extremo, a voz erma, o som dos violinos, o desejo.
(continuo a escrever, já se vê)
Estava reclinada sobre a noite
a entrever as giestas e um desses volumes
de alvenaria que vão dar à alma
era a impressão nítida de não haver mais nada
dizia
Vermeer
o pintor
teria gostado de ver
voaria através da luz inclinada
e dessa penumbra inventaria a noite
que o rio antigo absorveu.
The Night
She was reclining on the night
glancing at broom shrubs and one of those blocks
of masonry that lead to the soul
there was a clear sense of nothing else existing
she said
Vermeer
the painter
would have liked to see it
he would fly through the oblique light
and from that shadow invent the night
the ancient river absorbed.
(tradução de Bernardo Palmeirim)
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2005
O país tornou-se subitamente numa menina frágil e susceptível, dessas pré-rafaelitas pintadas por Rossetti. Qualquer evento, qualquer estrela cadente, qualquer aceno mais discreto parece logo gerar uma volta ao mundo, uma ofensa, uma praga ou um pasmo desnecessários. Decreta-se um luto sem sentido. Os partidos suspendem ou moderam campanhas. A respeitabilidade torna-se num elefante agitado e ruidoso dentro da cristaleira. A demagogia apressa-se a envenenar a seriedade, enquanto os reizinhos ficam subitamente nus, sem tanga, sem fio dental, sem nada. Diante de todos. E os iluminados que quereriam convocar a questão religiosa, hoje, em Portugal, acabam por mostrar-se tão ridículos como aqueles que impusessem, à força, a discusão pública acerca das diferenças entre Gungunhana e Zurara. Uma farsa. Tristeza. Pensam que é assim que ganham votos?
A democracia precisava, neste momento, de um pouco mais de dignidade. E a ética, qualquer ética, mesmo a do luto, só poderá advir de dentro de cada um. Jamais de fora, de forma pesada, falsa, alarmada e pretensamente institucional. Haja juízo.
domingo, 13 de fevereiro de 2005
Caro Flávio:
É certo que teremos que aceitar o livre fim do Ma-schamba, mas tal não significa que não o deixemos de ver com esse misto de tentação que teria levado, um dia, Orfeu a olhar para dentro dos olhos de Eurídice. Face a face, perigosamente.
Eu preferiria manter a cena dentro da cena. Há liberdades que chocam com o prazer alheio, amigo Flávio. Mesmo assim, são liberdades. Respeitemo-las. Até porque os limites que lhes poderíamos imaginar cabem unicamente no ditame e na decisão do seu autor.
Contudo, apetece repetir: deixa-te de coisas, anda lá blogar com a gente!
A celebrada expressão "Obviamente demito-o", pronunciada por Humberto Delgado há mais de quatro décadas, ainda não fazia realmente parte de um jogo. Foi uma frase de corajosa e feliz ruptura que, independentemente das abismadas perspectivas da época, separava o possível do impossível e demarcava os campos em presença. E se algum jogo estava aqui em causa, então era um jogo muito grotesco, falseado à partida e incomunicável.
A permuta da expressão "Olhe que não, olhe que não", reiteradamente utilizada no frente a frente Soares-Cunhal durante o escaldante Outono de 1975, já era uma evidente peça de jogo, embora ainda com regras muito rígidas e estriadas: a linguagem era posta a oscilar com muito cuidado (e sem extravasar as medidas) entre referências reconhecíveis, pesadas e claríssimas. Tudo era possível dentro dessa moldura. Tudo era possível dentro dessas imagens fixas, imobilizadas e próprias de uma inevitável doxa. E todos conheciam excessiva e feericamente as regras do jogo, qual cartilha que simetricamente se distribuía pelas barricadas dos contendores. Foi assim que a revolução se pôs em marcha: como um eldorado orgíaco e vivido no presente, como a grande ilusão do ponto-ómega social, como uma varinha de condão que perpetuaria o homem numa espécie de novo deus.
A recentíssima expressão "Este sabe quem é", assim como a variada tradição dos "Choques" (ou os “rumos” e as “utilidades”) já constituem peças de um jogo que não tem fronteiras, nem pilares alicerçados em valores e em referências hierarquizados. Tudo agora passou a ser possível, sem que seja necessário um "de dentro" e um "de fora" que separassem as simulações, os piscares de olho do "media training" ou os acenos em torno do delírio.
A linguagem tomou conta dos acontecimentos, não como um meio para vaticinar palavras de ordem (de unicidade ou de pluralidade), mas como fim apoteótico onde deslizam afectos, imagens fluidas, crenças esparsas, cores, estilhaços de design, simulacros (de ordem, de confiança, de missionário, de dandy) e estereótipos vulgares (o líder a quem se “compraria um carro em segunda mão” ou “com quem se sairia à noite”). A linguagem tornou-se num fluxo que faz e fez a própria campanha eleitoral. É o uso da linguagem, em cada partido, que passou a criar a ideia de um sentido. E não qualquer objectividade, verdade ou materialidade.
Já se sabe que a linguagem institui sempre os seus marcos de experiência, as suas balizas próprias, as suas coordenadas, para além de se adaptar quase geneticamente a cada campo onde é chamada a germinar. Já se sabe - é clássico - que a linguagem transcende quem a utiliza, autonomizando-se face ao locutor, ao emissor, ao actor. Mas, no nosso mundo, essa autonomia deixou de ser um facto que se contempla e analisa para passar a ser o turbo de um motor que se utiliza. E por isso, neste nosso mundo onde a linguagem do fluxo de imagens passou não só a caracterizar mas também a identificar o perfil fantasmático de cada jogador, o vencedor será sempre o próprio jogo. Apenas o jogo. Nada mais: o jogo.
Mas a pergunta persiste: e depois do jogo?
Se for à National Gallery, em Londres, poderá recorrer ao programa "ArtStart" que permite interagir instantaneamente com simulações de obras de arte famosas e, portanto, descobrir detalhes ínfimos que, até agora, eram impossíveis de descortinar através do olhar corrente.
É o que acontece com "O retrato de Arnolfini" do flamengo Jan van Eyck, o qual, segundo parece, tem mais histórias ocultadas daquilo que se possa imaginar.
A partir de agora, o poder de vaticinar histórias sobre figuras invisíveis da história da pintura universal vai deixar de ser um dom exclusivo de Dan Brown. Qualquer alegre mortal poderá passar a celebrar tais vaticínios. É tudo uma questão de tocar.
Tocar na imaterialidade mística dos pixels e, de repente, sentir a glacialidade da mão de Deus, ou dos deuses: that´s what it´s all about.
Continuamos com o mesmo fascínio de Huijgens, apenas trocámos a roldana, a lente e a matéria pelos domínios ilimitados do interface on-line.
sábado, 12 de fevereiro de 2005
Acabo de receber por mail um documento designado “Queremos um País Culturalmente Activo” (diz respeito ao concurso para "Apoio a Projectos Pontuais de teatro, dança, música, arte contemporânea e projectos transdisciplinares em 2005"). Referem os organizadores da iniciativa que o mesmo "já foi subscrito por mais de 70 estruturas e (por) mais de 200 profissionais das artes".
Acrescento eu: seria muito bom ver esse documento subscrito por quem, justamente, não pertence às "estruturas profissionais das artes".
Seria um extraordinário sinal de que uma luta, em Portugal, pode ser uma luta não corporativa.
Quando aparecerá, um dia, esse tipo de manifestação verdadeiramente aberta e não exclusivista no nosso espaço público?
Sou eu que escrevo o que aqui aparece. Não haja a mais pequena dúvida. Mas também não é menos verdade que, ao reler este meu blogue, verifico amiúde existirem involuntárias personagens autonomamente criadas que acabam por inscrever um ambiente, uma locução, uma enunciação, um estilo e até uma encenação muito peculiares. Redundantemente específicas. Não há nada a fazer. A linguagem estatui sempre o seus mapeamentos de experiência, as suas balizas, as suas coordenadas e sabe sobretudo adaptar-se quase geneticamente a cada campo onde é chamada a germinar. Neste caso, o campo é uma ciber-experiência espontânea, pouco orgânica, fragmentária, de natureza instantanista e dotada de um auditório impreciso, ou seja, um blogue. São muitas as vozes que habitam a voz do Miniscente. Mas não só. Não há blogue onde este tipo de mise en scène não seja a genuína expressão que garante, afinal, a sua verossimilhança e individualidade. A sua haecceitas.
A Europa descrita por Anthony Lane no The New Yorker de hoje:
"Most Americans know nothing of the location, composition, or purpose of the European Union. There is no shame in such ignorance, for most Europeans are in the same position—rather worse, indeed, given that they are the ones who are meant to be experiencing a pleasant sensation of unity. If anything, the view from the States is more precise: Europe is that Shrek-shaped landmass to the left of the Middle East, and the European Union, or E.U., must therefore be the constitutional equivalent of a group hug, designed to insure that no Finn, say, will ever launch a first-strike attack on a Greek. Europeans themselves, however, cannot even decide where Europe begins and ends. Does it include Turkey, which has taken the first step toward joining the E.U. in 2015? Does it even include Great Britain, a founding member? To most Englishmen, the geography is unambiguous: Europe is what you get if you are stupid enough to venture any farther than Kent."
Mas vale, de facto, a pena ler na íntegra.
Sempre é muitíssimo melhor do que aturar a campanha eleitoral (um choraminga com o passado, o outro choraminga com os média que o delapidam, outros choramingam com as notícias propositadamente falsas, outros choramingam ainda com percentagens delirantes que alvitram, outros... por que não se vota já amanhã?)
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2005
Acabei de repor o novo endereço do Rua da Judiaria.
Lê-lo é sempre fonte de prazer, de amizade e de rigor.
A direcção editorial do Público deu hoje à estampa uma nota onde se lê:
“A direcção editorial do PÚBLICO reconhece que fez uma má escolha do título de capa ao optar pela expressão "aposta em", expressão ambígua a meio caminho entre o "prevê" e o "apoia".”
Contudo, é óbvio que a acção de “apostar” está muitíssimo mais ligada à acção de “apoiar” (durante a corrida, eu apoiarei fortemente o cavalo em que antes apostei) do que à acção de “prever”.
Prever é sobretudo neutro, ou seja, é meteorológico, é conjectural e é científico (a “thirdness" de Peirce). Parece-me que o “meio caminho” advogado pela direcção editorial do Público é uma espécie de pântano embebido por alguma “má” consciência.
Teria sido melhor enunciar tão-só o erro, apenas isso. O que, aliás, acontece na dita nota.
Os mais novos não se lembram. Mas a letra era mais ou menos assim:
"Ninguém me telefonou do PSD a dizer que era um jantar de campanha. Isso é mentira! Vamos acabar com essas chatices, vamos acabar com as tricas. Vamos fazer deste país um país a sério, e não um país de mentiras."
À chegada a Santa Apolónia, Simone de Oliveira tinha o país inteiro à espera. Foi um Festival da Eurovisão memorável.
Ouvi hoje um ex-líder da bancada parlamentar do PCP dizer que estava impressionado pelo facto de o partido de Portas ter decidido utilizar uma palavra de ordem “sua”. O que eu, já agora, achei verdadeiramente patético. Mas não é que o PCP, para disfarçar o comunismo nas mesas de voto, não tinha já inventado uma coisa chamada CDU, precisamente o nome de um conhecido partido cristão-democrata europeu?! Simetrias interessantes, afinal.
Um amigo meu que não tem paciência para voltar a arrancar com o seu blogue, disse-me que, durante estes dias, procurou máscaras de Santana Lopes por todo o lado. Mas em vão. Já não irá votar nele. E eu também não (mas quem me dera ter à mão o Democracia 66 holandês).
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2005
O romance - virá a ser mesmo romance? - que estou a escrever desde o início da semana passada entrou hoje numa nova fase. Chamo-lhe, há muito, a fase do "não retorno". Quer dizer que já sei que é coisa para ir até ao fim. Para já é o que sei e é o quanto basta. E é muito. Mas não esqueço o que aprendi com Calvino:
"O problema de não acabar uma história é este. Seja como for que ela acabe, seja qual for o momento em que decidimos que a história pode considerar-se acabada, verificamos que não é para esse ponto que (se) conduzia a acção de contar, que o que conta está noutro sítio, é o que aconteceu antes: é o sentido que adquire esse segmento isolado de acontecimentos, extraído da continuidade do contável."
Aquilo que eu desigo por fase do "não retorno" é a certeza formada e fundada de que sei que o tal "noutro sítio", porventura no plural, já habita a centena e tal de páginas que enformam o borrão ainda sem título que estou a trabalhar. Preciso agora é de encontrá-lo (ou encontrá-los). Amanhã terei mais um dia, de sol a sol, apenas para essa demanda. Não é bom?
Num mês de Geoloc, o Miniscente foi lido em:
Portugal - 8620, Brasil - 651, Estados Unidos - 465, México - 124, Espagne - 113, Moçambique - 108, Reino Unido - 107, França - 90, Alemanha - 88, Itália - 54, Holanda - 51, Canadá - 42, Luxemburgo - 30, Suíça - 21, Bélgica - 21, Peru - 18, Venezuela - 15, Noruega - 14, Colômbia - 13, Argentina - 12, Filipinas - 9, Angola - 9, Austrália - 9, Chile - 7, Polónia - 6, República Dominicana - 6, Japão - 6, Hungria - 6, Singapura - 6, Áustria - 6, Suécia - 6, Porto Rico - 6, Coreia do Sul - 3, Dinamarca - 3, Bahrain - 3, Malásia - 3, Taiwan - 3, Belize - 3, Israel - 3, Macau - 3, Índia - 3, Paquistão - 3, Sérvia - 3, Finlândia - 3, Roménia - 2 e Irão - 2.
Obrigado a todos!
terça-feira, 8 de fevereiro de 2005
Notas oportunas do blogue do Diário de Campanha da SIC:
“Os repórteres que andam na campanha do PSD (e é-me fácil falar, estando no conforto da redacção) sabem que a agenda de Santana é muito parecida com a de uma ambulância do INEM. Não tem nada marcado e avança em situações de emergência."
(Ricardo Costa)
“No mesmo dia dedicado ao tema ''pobreza'', Louçã foi a... Cascais. Era segunda-feira de Carnaval. A acção de rua no centro da vila apanhou turistas surpreendidos e gente apressada com a ameaça da chuva.”
(Joaquim Franco)
“Com nenhuma carga cientifica e a poucos dias do próximo barómetro da SIC arrisco dizer: o PP vai ser uma surpresa e aproximar-se muito dos 10 por cento, o Bloco não vai ser a terceira força, o PCP não vai ter uma hecatombe, o PSD vai apanhar um susto valente e o PS não está a fazer nada para ter maioria absoluta.“
(Ricardo Costa)
“Disse Eurico de Melo, ontem, em Castelo Branco, num esforço físico visível que “O Pedro é um Sonhador”, que “anda nisto há mais de 30 anos”, que o “conhece bem”, que Sá Carneiro “gostava da ambição política dele” e que “ele, (o Pedro) não mudou”. O Pedro não ouviu. Nunca ouve os que falam antes dele.“
(Pedro Cruz)
“E ao final da noite, Paulo Portas disse que depois do Carnaval, sairá à rua para o contacto directo com o povo que ainda não teve.”
(Ana Margarida Póvoa)
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2005
Do Wittgenstein do Tratado Lógico-Filosófico (enviado a Russel em 1920 e publicado em 1921) para o das Investigações Filosóficas (escrito durante 16 anos, tendo ficado pronto em 1949) há uma diferença abissal: o primeiro ainda acreditava numa forma de significação baseada nas condições de verdade, enquanto o segundo já entende a significação como qualquer coisa directamente ligada ao uso da linguagem.
Esta diferença perseguiu o quotidiano em mudança da segunda metade do século XX e ainda hoje nos bate tranquilamente à porta.
O que interessa cada vez mais é, pois, o sentido criado pelo modo como nos olhamos, como nos julgamos, como comunicamos. Muito menos interessará, nesta lógica, o arco-íris de verdades que todos os dias, por esse magma omnipolitano de imagens, se imprime nos nossos olhos.
É por isso que o modo de aparecer da política no espaço público é, hoje em dia, o de uma arte da comunicação e não mais o de uma clara e objectivada proposta de resolução dos problemas.
Seja como for, é cem mil vezes mais importante o agir livre de todos do que qualquer normal palhaçada no uso da linguagem, ou do que o próprio emparedamento da verdade.
domingo, 6 de fevereiro de 2005
A ser lido por todos. Obrigatoriamente. É um artigo essencial de Medina Carreira. Deixo aqui este extracto:
"Dispersos na nossa sociedade, temos 4,5 milhões de indivíduos que integram uma espécie de "Partido do Estado". Têm em comum a dependência directa do Orçamento e representavam, em 2003: 43 por cento da população residente; 56 por cento do eleitorado; 62 por cento da população com mais de 24 anos de idade. Pensionistas e subsidiados (mais de 3,8 milhões), equivaliam a 70 por cento da população activa. Este "Partido do Estado" absorvia 70 por cento dos impostos cobrados (1980); atinge agora os 85 por cento (2003). O pessoal político dos principais partidos "invade" progressivamente o Estado e pretende mais funcionários, mais pensionistas, mais subsídios e mais subsidiados, porque aí pode angariar mais votos. Os que ainda estão fora do "Partido do Estado" constituem uma minoria cada vez mais desiludida, reduzida e silenciada, e menos influente. Adormecido e enganado, Portugal trilha o caminho para o desastre financeiro do Estado e para uma pobreza mais generalizada dos portugueses. Ninguém nos acode."
sábado, 5 de fevereiro de 2005
Não há nada como a entrega total à casualidade do acaso. Bate sempre certo. É a forma ideal de transformar uma asserção em facto. Muitas vezes, basta a fé para que chova, noutras é suficiente gritar o nome da nossa equipa para que ela meta golo. Tudo uma questão de convidar a realidade a cumprir o apelo enunciado. De resto, o hábito faz o monge. Ora leiamos o que escreveu J. Carlos de Assis:
"O presidente Lula espera que, tendo sido da Europa o século XIX, e dos Estados Unidos o século XX, o século XXI seja o século do Brasil. Deu-me a impressão de que ele estava lendo o discurso. Se é assim, é mais grave. Trata-se de um delírio coletivo. O presidente acha que sua presença no governo é um fator decisivo, por si mesmo, para melhorar as perspectivas brasileiras, independentemente do que ele faça ou não faça no poder. Dito de outra forma, o Brasil vai melhorar porque tem Lula na Presidência, e não exatamente pelo que Lula vier a fazer nela."
Há quem diga - estou a lembrar-me de F.Kermode - que a nossa relação com a instabilidade do tempo contemporâneo tem três traduções possíveis: esta, o famoso "self-fulfilling prophecy", a também atractiva metáfora da "crise" e ainda a mais clássica, mas sempre actuante "teoria dos ciclos" (de decadências e retomas sucessivas).
Qual preferem?
Na secção dedicada ao "leitor", é esta a pergunta de hoje do Jornal do Brasil:
"Quando fala em público, devia Lula ter a seu lado um assessor para evitar gafes?"
Esperam-se respostas. E, já agora, generalizemos o caso.
(Globo. Ontem em S.Paulo)
"Quem não vai cair na folia, nem gosta de assistir programas de carnaval na TV, não precisa se preocupar: a RCA, concessionária de tevê a cabo em Teresópolis está com uma programação diferenciada nesses dias de carnaval. A concessionária, que distribui mais de 60 canais, divulga programas especiais para os que não gostam das festas de carnaval."
via O Diário de Teresópolis
(Idêntica atitude podiam ter as televisões portuguesas, não em relação ao Carnaval - que por cá é patético, triste e ridículo -, mas em relação à enfadonha campanha eleitoral que amanhã oficialmente começa)
Leio na Folha de S. Paulo:
"O governo brasileiro escolheu a China como um dos parceiros para investir na troca de experiências sobre direitos humanos. O país asiático é notório freqüentador de relatórios que condenam governos que violam esses direitos regularmente."
Carnaval?
Tenho sincera dificuldade em compreender. Espero comentários das terras do Brasil!
Ora aí estão 750 mil euros bem gastos. Gerir os recursos na nossa terra está a ser, cada vez mais, uma obra artística à Marcel Duchamp: Urinol na galeira de arte e basebol em Abrantes. Pois então.
Vi o debate na SIC, no passado dia (quando foi?), e até hoje ainda não fui capaz de ter uma reacção de jeito, tal o modo pungente como me tocou.
Apenas entendi agora o que se passou, ao reler o Ohio Impromptu (Improviso de Ohio) de Samuel Beckett. Ou seja: “Little is left to tell”
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2005
Portugal é fértil em soluções jurídicas que afirmam A e ao mesmo tempo o seu contrário. Basta um requerimentozinho a uma autarquia para que a excepção se torne campeã entre regras. Para deixar as coisas como estão, não valia a pena conceber sequer uma nova lei. E para imaginar um diploma que mudasse, bastava copiar o irlandês. Agora, assim, é para rirmos. Todos. Fumadores activos, passivos e os outros. Mas esta solução era inevitável, tão portuguesa porque tão vizinha daquele “deixa andar” levemente incomodado com as chatas das mudanças que se sentem “lá fora”.
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2005
O que “mostra” o exibicionismo?
Dá sobretudo a ver aquilo que é inevitavelmente reenviado para outra e outra coisa. O exibicionismo não “mostra” nenhum objecto, antes o suprime.
A vida privada pode exibir-se e, ao fazê-lo, cria naturalmente uma série de conotações (em princípio encenáveis) sem fim.
Mas isso não significa de modo nenhum que se “mostre”.
Deus, enquanto foi Deus, foi-o porque não se “mostrava”.
“Mostravam-se”, sim, as suas consequências. As suas marcas. As suas linguagens (cujos alfabetos se espraiavam na natureza ou na sintaxe histórica, pelo menos a partir do epicentro das religiões ditas “axiais”, ou do “Livro”, ou crentes numa dada escatologia).
Na Ética de Bento de Espinosa, pensamento e realidade do ser provêm de uma única substância. Contudo, a “natureza naturante” (ou Deus) é a única realidade substantiva, enquanto que “a natureza naturada” seria entendida como desprovida de substantividade, dispondo de existência meramente “modal”, isto é, ao nível das manifestações que adviriam da produtividade una e divina.
Nesta medida, a realidade seria única, eterna e imutável, embora no plano do acontecer transitório fosse efémera.
Pode esboçar-se uma certa alegoria contemporânea, na relação entre privado e público que, se aproxima desta mecânica espinosista.
O que se "mostra" neste último tem origem ao nível das manifestações que estão diante dos nossos olhos todos os dias.
O que se "mostra" naquele outro, no privado, é um misto de coisas onde há um fundo insondável de “natureza naturante”, mas também fragmentos ou imagens processadas pela “natureza naturada”.
Não há, pois, uma forma exacta e possível para “mostrar” o privado, porque não cabe, porque não se adequa, porque é ambígua a substância ou a natureza a que realmente pertence.
Seria mais fácil um mundo onde taxativa e drasticamente o público e o privado se separassem. Fronteiras rígidas. Mas isso não acontece.
Mais uma vez: trata-se de um dado, de um facto.
Tal como a existência de nuvens incertas em dia de muita chuva.
A imprensa cor de rosa “mostra” encenações que se destinam a evidenciar coisas, mas não a vida privada.
Existirá a “live life”, a não ser na imaginação de Duchamp?
O fim das mediações é talvez a única utopia contemporânea e é própria dos que crêem na “cyborgização” do mundo (o termo original é, creio eu, de Manfred Clynes), i.e., no pós-humano.
Nessa altura, o acto de “mostrar”, na acepção de pôr a nu todas as virtualidades, passará a ser um gesto redundante.
Sem sentido.
Só há sentido, quando é preciso traduzir aquilo que não pode, de modo nenhum, ser “mostrado” através de telepatia. Em ficções como The City and The Stars (Arthur Clark), em filmes como Robocop (Verhoeven), ou no conhecido manifesto de Donna Haraway (Manifesto for Cyborgs), o entendimento do sentido e do “mostrar” alteram-se profundamente.
A grande diferença é que, apesar dos delírios, o nosso tempo hipertecnológico é um tempo muitíssimo mais próximo (e contíguo muitas vezes) destas voragens do que Verne era, por exemplo, de um elementar motor de uma fábrica téxtil.
O grande paradoxo dos nosso dias é funcionarmos como se já não existissem mediações (como se tudo se visse, como se tudo se “mostrasse”), quando, no fundo, a “Darstellung” kantiana, o pôr em cena esquematizado ou simbólico, continua ainda a reger toda a nossa comunicabilidade. E toda a nossa capacidade de significar.
Daí tanta ambiguidade ilusória e sugestiva em torno do simples acto de “mostrar”.
O acto de“Mostrar” nem tão-pouco existiria, se todas as virtualidades de “y” que se quisessem “mostrar” alguma vez se imaginassem expostas à luz do dia.
Como disse Vattimo, glosando Gadamer, “o ser que pode ser compreendido é linguagem”. É, pois, natural que, em época de incremento radical de linguagens especializadas e de enunciados fragmentários tipo zapping, o que haja a “mostrar” sejam tão-só imagens de imagens que, por sua vez, se subsumem a vestígios de imagens de imagens. Fluxos ficcionais mundializados ou regionais. A coisa é realmente homóloga ao mundo de imagens da nossa mente que Damásio tão bem explicou em O Sentimento de Si (sobretudo na concatenação dos relatos de imagens que se processam entre os níveis do "proto-si", da "consciência nuclear" e da "consciência alargada"). É por isso que a vida privada, esse conteúdo complexo, essa labiríntica rede de fenómenos de um determinado quotidiano, não pode jamais ser “mostrada” como um absoluto. Pelo menos do modo antinómico - e um pouco preto no branco - que pressupõe a oposição entre “mostrar em público a vida privada” e a necessária implicação de ausência dessa mesma “vida privada” (ainda por cima sob conjectura algo legitimadora de uma dada teodiceia).
Aforismo: “Mostrar em público a própria vida privada é coisa de quem não tem vida privada”.
Comentário: Um instrumento que (no mundo) sirva para "mostrar" já está referido a qualquer coisa antecipadamente.
Esse instrumento e/ou essa ferramenta "mostram" sempre aquilo que um contexto determina que possa e deva ser "mostrado".
Um guia de viagens ou uma lista telefónica funcionam assim. São de certa forma programados.
Mas, por outro lado, não há nenhuma determinação que condicione a "mostrar" o que pode ser "mostrado", quando se fala de “vida privada”. Precisamente porque a vida privada é um amplexo, ou é algo que não pode ser sequer descrito, ou é uma entidade e não propriamente um organismo delimitado que, por isso mesmo, escapa à capacidade redutora de a linguagem o traduzir na plenitude (com a excepção para a incursão de natureza poética, para a qual o comum e o incomum dos políticos, e mesmo quase todos os mortais, convenhamos, não denotam particulares aptidões).
O acto de "mostrar" “y”, entendendo “y” como a complexidade que a vida privada apresenta, corresponde seja ao que for menos a uma propriedade de “y”. Nesta medida, por mais que se tente "mostrar" “y”, este “y” persistirá sendo o que é, ou flutuando na ordem com que flutua.
Neste tipo de casos complexos, como o é o caso da “vida privada”, "mostra-se" sobretudo a linguagem que procuraria "mostrar" “y”, mas é certo e sabido que o determinante de “y” repousará no seu enquadramento, no seu ambiente neonatal e na sua ocultação, afinal.
É por isso que ninguém vê a vida privada de Santana Lopes ou de Sócrates ou de Portas, por mais que os média desenterrem, voluntária ou involuntariamente, partes dessas virtualidades.
É antes o jogo criado em torno dessa “realidade” (criada pelo agregado de N imagens que tentam “mostrar” “y”) que pressupõe a lide que faz aparecer, no quotidiano, a ilusão dos tais “castigos”, prémios, críticas, boatos, denodos, vergonhas, insultos, rumores e outros pandemónios conhecidos e, já agora, muito tristemente em voga.
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2005
É rara a vez que vejo os meus amigos escritores que têm blogues a escreverem sobre a sua própria escrita, enquanto escrevem (digo, enquanto se fecham para escrever romance, ensaio, poesia, ou seja o que for).
Às vezes, chego a sentir uma certa timidez em fazê-lo, pois pareço demasiado só nessa aventura. Ou talvez eu funcione ao contrário: reservo dois a três períodos do ano em que o resto tudo, rigorosamente, deixa de existir (partes de Fevereiro, de Junho e de Setembro), em vez de espraiar e misturar as várias escritas num único plano aberto ao tempo.
Mas, que diabo, à noite, ou nos intervalos, há sempre espaço para espreitar e marcar esta caixinha que tem como legenda "Publish Post". Não será?
Bom, vou continuar. Estou em Nova Iorque. Enquanto escrevo. Mas ligado, ligadinho às vezes que estive lá. In fact.
Escreveu Luciano Amaral:
"Há na blogosfera um problema a que provavelmente nunca me conseguirei habituar, e que é o registo simultaneamente público e privado do seu conteúdo."
Eu penso que isso, essa flutuação público vs. privado, é sobretudo uma característica da contemporaneidade. É um dado, tal como acontece - num certo nível de flutuação - com os pares real vs. ficção, auditórios vs. públicos, esquerdas vs. direitas, simulação vs. instantaneidade, etc. Tal como acontece com a electricidade ou com as redes globais.
Neste tempo, em que velhas linguagens ainda convivem com os novos tempos, é necessário algum cuidado. Até porque estas são as primeiras legislativas que se cruzam com a blogosfera e a quase inevitável radicalização pode conduzir ao abismo da ofensa. Esperemos, contudo, que o exercício da liberdade - e ser-se livre acarreta responsabilidades - implique respeito e não apenas denegação do outro sob a capa da mais redutora cultura dicotómica. Ser-se frontal não implica elidir, suprimir, anular (ontem, Sócrates, na RTP-1, libertou-se um pouco da amarra do "media training", mas foi preciso sentir na pele a infeliz ofensa santanista traduzida pela palavra "colo". Saliente-se o facto).
terça-feira, 1 de fevereiro de 2005
Nunca me tinha acontecido. Até porque já tenho partido de notas, de cruzamento de textos embrionários, ou até de rascunhos sem qualquer sentido. Às vezes, de nada. Mas partir de uma peça de teatro, isso nunca tinha acontecido. Escrevi-a há quase três anos e meio e, até agora, apenas foi motivo de uma leitura em sítio respeitável, embora pouco conhecido (uma possível encenação, aliás muito interessante, chegou a andar em negociações avançadas no início do Verão de 2003). E não é que agora estou a partir desse texto dramático na direcção de uma narrativa!?
O fulgor inicial projecta a coisa em romance. Vamos ver. Para já, as personagens estão a responder, é só simpatia, é só compreensão, diálogo frutuoso e tudo parece encaminhar-se para um desafio maior. A ossatura do texto já está a robustecer, a tonificar, a ampliar-se. Fevereiro é sempre um mês generoso para estas coisas. De um lado, as frequências e, do outro, uma única aula de mestrado; no reverso, fica diante dos meus olhos toda esta maresia muito calma em que o tempo se distende e promete evasões felizes.
Vou reiniciar mais um dia de trabalho. Até logo.