(Marguerite Duras, Emily L., tradução: José Carlos González; Livros do Brasil, Lisboa, 1988, p. 5)
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quarta-feira, 31 de outubro de 2007
Cerveja e literatura - 40
(Marguerite Duras, Emily L., tradução: José Carlos González; Livros do Brasil, Lisboa, 1988, p. 5)
terça-feira, 30 de outubro de 2007
Cerveja e literatura - 39
"Aloysia voltará para cumprir o contrato; ela gosta de sentir a admiração das pessoas quando canta. – Josefa olhava-as a todas, as mãos em cima da mesa perto do jarro azul da cerveja. – Acho que esperam que eu as sustente a todas, eu, que fui tão condenada pelo meu amante e que posso nunca mais ter outro, que morrerei solteirona, o que lhe convinha de certeza."
(Stephanie Cowell, As mulheres de Mozart, tradução: Maria Georgina Segurado, Editorial Presença, Lisboa, 2006, p.141)
segunda-feira, 29 de outubro de 2007
Cerveja e literatura - 38
“ ‘Bebo contigo/ cerveja, Whisky/ p´ra que se veja/ mais rubra a crista’ – o marialva que Alexandre O´Neill ridiculariza assim tem a ‘cor local’ a defendê-lo das raras investidas deste género que se lhe dirigem. Dispõe de privilégios, é bom lembrar. Tem mitos, clima saudosista, poetas que o cantam, e não lhe faltam os cronistas do quotidiano – uns para exaltar as fraquezas da mulher, outros a coragem do macho (…)”
(José Cardoso Pires, Cartilha do Marialva, Ulisseia, Lisboa, 1960, p. 175)
domingo, 28 de outubro de 2007
Volta ao Mundo - 8
" 'Demoras a chegar. Demoras a partir. Esta demora dá-te tempo para pensar.'
Diz-me o Gabriel, um homem mais velho do que a idade, numa voz que não interrompe o silêncio. Estamos na cidade com mais silêncio do mundo.
À nossa frente apenas Sul. Pintado com cores de brincar. Parece-me água, mas pode não ser. É demasiado azul, demasiado.
(Torno a abrir a carta enquanto frase soltas, fragmentos, se misturam com recordações)
Assistimos à luta das árvores, a crescerem contra o vento, contra as entranhas vazias da terra. Não contra o Homem. Esse preocupa-se em lutar com a sua imensidão.
Estamos sentados no chão, protegidos por uma árvore diagonal. E esmaga-me o tamanho do céu.
e
(Recordo o frio…)
e
“Morreria sem esta força a puxar-me para Sul, sem a tranquilidade dura deste lugar.”
Fala-me com as mãos. Há vida em cada gesto simples que me oferece.
e
(Releio apenas as últimas linhas:
Ushuaia, 25 de Outubro de 2010
Gabriel)
e
Guardo de novo a carta no envelope. Regresso sempre, mas ainda me lembro da primeira vez que estive no fim do mundo. Quando pensava que a solidão estava só e que o fim não tinha continuação."
Texto: Clara Faria Piçarra
Foto: Miguel Sacramento
sábado, 27 de outubro de 2007
Episódios e Meteoros - 54
Não sei se foi por causa disso, mas, em 2004, o filme de Mel Gibson sobre a paixão de Cristo passou-me completamente ao lado. Para mais, tinha-me ocupado de literatura profética durante algum tempo - fora esse, há mais de uma dúzia de anos, o tema do meu doutoramento - e já me tinha antes deliciado com A Paixão e com toda a Tetralogia Lusitana de Almeida Faria, sem esquecer outras paixões mais frondosas e igualmente venezianas.
Embora hesite habitualmente entre o abismo dos agnósticos - aí está uma palavra que soa sempre a névoa - e uma certa tendência para predador do absoluto - aí está uma palavra que não se deve utilizar numa crónica, a não ser que saiba a vodka -, a verdade é que a grande e única narrativa da minha infância (e da infância católica que, mais ou menos, todos respirámos) era e é coisa que hoje, muitas vezes, me enfastia e que, quase sempre, se vai tornando em matéria para a mais doce das indiferenças.
Seja como for, Gibson frustrou todas as minhas perspectivas (no domingo passado, vi a fita na televisão). Ponha-se de lado a pálida conotação da fé, com todo o respeito pelos anjos; ponha-se de lado a identidade dos personagens, com todo o respeito pelo casting e pela direcção de actores; ponha-se de lado a requintada atmosfera criada pela língua aramaica a contracenar com a hebraica e a latina... e o que sobra é sangue e mais sangue: uma violência de altar barroco e de cenas noctívagas com cobras e corujas em nome da expiação dos pecados do universo. Uma tirada patética, cheia de talha dourada e a milhas da catequese inflamada por que passei há quase meio século: aí, sim, o medo tinha ainda patas de seda e olhos de cabeçudo.
E como não há história baptismal sem demónios, lá surge no filme de Gibson - entre o colorido painel de adereços - uma mão cheia de judeus crispados e almofadados que acaba por convencer o pobre do Fausto romano a cometer o maior dos pecados. Azar o deles.
Bem pôde, pois, a minha avó ter-me falado de revoluções e perseguições. Bem pôde o fogo posto de muitas inquisições ter sido extinto. Bem pôde a catequese ter-se tornado num conto de fadas langoroso e longínquo. Bem pôde, para muitos, o simples esquecimento das grandes e variadas tragédias do século XX. Bem pôde tudo isso. Mas não haja dúvida de que a intolerância continua a viver da repetição insaciada duma mesma tónica. Duma mesma carne. Dum mesmo dogma sectário. Por outras palavras: dessa luxúria binária - própria de filme de terror de terceira classe - que afinal anima, do princípio ao fim, o psicodrama de Mel Gibson.
sexta-feira, 26 de outubro de 2007
Cerveja e literatura - 37
"Mas depois de ouvir contar vinte vezes de que modo perdera Jakes o nariz e Sukey a honra – e devemos reconhecer que eram histórias admiravelmenbte bem contadas – começou a enfastiar-se um pouco com a repetição, pois só há uma maneira de se cortar o nariz e outra de se perder a virgindade – ou pelo menos assim se afigurava a Orlando – ao passo que as artes e as ciências tinham em si uma diversidade que lhe aguçava profundamente o interesse. Por isso, embora guardando deles as melhores recordações, deixou de frequentar as cervejarias e os campos de chinquilho, arrumou no armário a capa cinzenta, deixou brilhar a estrela que trazia ao peito e cintilar no joelho a jarreteira, e apareceu de novo na corte de Jaime. Era jovem, era rico, era belo. Ninguém podia ter sido mais aclamado."
(Virginia Woolf, Orlando - Uma biografia, tradução: Ana Luísa Faria; Relógio d´Água, Lisboa, 1924/1998, p. 26)
Pré-publicações - 64/65
"(...) A impressão que Gauguin causava normalmente nas pessoas era de uma força contida, tanto física como psicológica. Fisicamente, tanto Gauguin como Van Gogh eram baixos, mesmo pelos padrões da França do século XIX. A marinha francesa, em que em tempos tinha servido, registava a altura de Gauguin como sendo um 1,63 m, mas ele achava-se alto e de perna comprida. Archibald Standish Hartrick, um escocês que o conheceu na Bretanha, achava Gauguin «uma bela figura de homem».
Vincent transmitia a impressão oposta. Quando vivia na Holanda chamavam-lhe, depreciativamente, «het schildermanneke», «o pequeno pintor». Um vizinho holandês recordava-o como «bem constituído », mas não era assim que a maioria das pessoas se lembrava de Vincent ao longo dos anos seguintes. Hartrick considerava-o «um homenzinho um tanto enfezado, de feições vincadas». Um dos profissionais do hospital de Arles, o Dr. Félix Rey, achava-o um espécime ainda mais desinteressante — «miserável, patético... baixo e magro».
Embora Gauguin tivesse tendência para impressionar à primeira vista, nem toda a gente gostava dele depois de o conhecer melhor. Muitos dos membros do pequeno grupo de pintores parisienses de vanguarda desconfiavam dele, ou eram-lhe mesmo hostis. Camille Pissarro, por exemplo, que a certa altura tinha acolhido Gauguin sob a sua asa protectora, acabou por ver nele um ladrão das ideias de outros artistas, e o jovem pintor Paul Sérusier achava que havia nele uma faceta dúbia, uma certa dose de fingimento e também de crueldade. «Fazia-nos pensar num bufão, num trovador e num pirata, tudo ao mesmo tempo.»
Gauguin tinha modos reservados. Falava numa voz triste e rouca. Tinha, na descrição de um escritor chamado Charles Morice, «um rosto grande, ossudo e sólido e uma testa estreita». A boca era direita e os lábios finos, e tinha «umas pálpebras pesadas que se abriam indolentemente sobre uns olhos azulados ligeiramente salientes que giravam nas órbitas, olhando para a esquerda e para a direita quase sem que o corpo ou a cabeça tivesse de se dar ao trabalho de se mexer»."
Nigel Warburton, O que é a Arte?, Bizâncio, Lisboa, 2007.
e
Pré-Publicação:
e
"A questão da arte parece mais adequada a uma resposta filosófica do que a uma resposta artística. Contudo, tal não significa que a filosofia tenha uma resposta simples. De facto, um dos resultados do estudo da filosofia é a tomada de consciência de que a maioria das perguntas aparentemente simples não tem uma resposta simples.
A filosofia pode fornecer uma base teórica para as nossas crenças mais queridas; mas também pode, do mesmo modo, mostrar quão pouco sabemos. O oráculo de Delfos considerou Sócrates o homem mais sábio de Atenas, o que o surpreendeu, pois Sócrates sentia que não tinha a certeza de coisa alguma. Porém, ao questionar quem estava seguro dos seus conhecimentos o filósofo acabou por perceber que o oráculo tinha razão. A sua sabedoria consistia em conhecer os limites do seu conhecimento, ao passo que os outros emitiam dogmaticamente opiniões indefensáveis. O meu objectivo neste livro é pôr a claro um conjunto de posições indefensáveis, revelando os contra-argumentos e os contra-exemplos que as põem em causa.
Dada a dificuldade de dizer algo positivo e verdadeiro acerca da arte, pode ser tentador rejeitar em bloco a questão da arte. Para quê darmo-nos ao trabalho de filosofar acerca das obras de arte? Barnett Newman sugeriu que os artistas precisam tanto da teoria da arte como as aves da ornitologia. Mas há uma verdadeira questão aqui, que merece ser examinada, precisamente por ser tão enigmática. E quanto mais os artistas põem em causa a noção do é que a arte, mais enigmática parece tornar-se."
quinta-feira, 25 de outubro de 2007
Novidade do dia
Cerveja e literatura - 36
- Deves saber qualquer coisa a este respeito.
As minhas recordações eram um tanto vagas, mas respondi que sim com a cabeça e arrisquei uma observação, da qual não tinha muita certeza que fosse exacta:
- O oiro do mar é o mais dispendioso de todos.”
(Italo Svevo, A Consciência de Zeno, Editorial Minerva, Lisboa, (1923) s/d, p.249)
quarta-feira, 24 de outubro de 2007
Cerveja e literatura - 35
“- Eu estou bem, Dummie. Deixa-me em paz.
Pengiun não se via em lado nenhum no jardim das traseiras. Fiquei no pátio com a garrafa bifada de San Miguel e um Silk Cut acabado de acender. Uma noite fora do vulgar em Begshall: um ar perfumado a madressilva, o perímetro de intrigante escuridão do jardim, vestígios de caracóis e margaridas visíveis no rasgo oblongo de luz da cozinha. Sentia-me (com a cada vez mais forte noção de que a escola – pelo menos a uniforme e repressiva St. Dymphna – tinha acabado) leve e despreocupado.”
(Glen Duncan, Catavento, tradução: Paula Antunes; Publicações Europa-América, Mem Martins, 2006, pp. 94/95)
terça-feira, 23 de outubro de 2007
Cerveja e literatura - 34
- Calor danado!
Mas já o chope lhe incendiava a imaginação. Falou, sem parar e, súbito, fez, de si mesmo, uma biografia portátil: estivera na África, fora legionário. Ela, que só conhecia os legionários de Carnaval, pareceu admirar-se:
- Como legionário?
- Da Legião Estrangeira.
- Aqueles do filme?
Confirmou, numa brusca e desesperadora nostalgia da África e da farda. Lembrava-se, acima de tudo, do sol africano, fixo e alucinante. Com a curiosidade espicaçada, Lourdinha insistiu:
- O negócio lá como é que é, hein?
João riu, alto. E Lourdinha percebeu que o som desse riso a conquistava.”
(Nelson Rodrigues, O Drama/16 em Pouco Amor Não É Amor, Companhia as Letras, São Paulo, 2002, pp.124/125)
segunda-feira, 22 de outubro de 2007
Cerveja e literatura - 33
“Não saberia dizer se a deformação do corpo e do espírito do meu companheiro de viagem tinha a sua origem num longo internamento psiquiátrico, numa debilidade congénita ou somente no consumo de cerveja e de petiscos. Para meu grande alívio, o monstro saiu na primeira estação a seguir a Gemunden, por isso fiquei sozinho na carruagem, com excepção de uma mulher de idade, do outro lado da coxia, que ia a comer uma grande maçã gastando para tal a hora bem medida que levou a chegarmos a Kissingen.”
(W.G. Sebald, Os Emigrantes, tradução: Telma Costa, Teorema, Lisboa, 2001/5 p. 209)
Pré-publicações - 63
"Prefácio"
"Não seria exagero afirmar que, a seguir aos diálogos mais literariamente perfeitos de Platão (Protágoras e Banquete), a grande obra-prima da prosa grega é essa jóia que dá pelo nome de Caracteres. Foi composta no século IV antes de Cristo por Teofrasto, escritor natural da ilha de Lesbos, que se estabeleceria em Atenas para estudar com Platão e Aristóteles; consiste numa sequência de trinta caricaturas miniaturais em prosa, que delineiam, em poucas palavras, toda uma personalidade com traço certeiro, sarcástico e genialmente lacónico.
e
Finalmente, uma palavra de apreço para James Diggle, que chamou a minha atenção para os Caracteres e cuja edição da obra na Cambridge University Press me deu a conhecer a verdadeira genialidade de Teofrasto; e um agradecimento a Carlos Mendes de Sousa, pelas gargalhadas com que reagiu à leitura em voz alta destes textos."
domingo, 21 de outubro de 2007
Post confessional
sábado, 20 de outubro de 2007
Episódios e Meteoros - 53
A grande conclusão da obra (à parte as reflexões semióticas) é a de que, confrontados com coisas desconhecidas, todos nós somos invariavelmente levados a integrá-las em modelos já antes experimentados. O exemplo do cavalo nas civilizações pré-colombianas é, neste caso, semelhante ao do ornitorrinco na Europa sete e oitocentista. E o exemplo do PSD outonal de 2007 não deixa de ter as suas semelhanças com o modo de compreender o ornitorrinco, na medida em que a tentação de se reduzir Menezes a Santana - este último já todos conhecemos - evidencia idêntico e apressado raciocínio. É, pois, natural que José Pacheco Pereira tenha escolhido a metáfora do ornitorrinco para se apresentar, ainda que de modo interposto e virtual, ao recente congresso de Torres Vedras do partido laranja.
Há, com efeito, em Pacheco Pereira uma visão do partido político à imagem da perfeição cívica, facto que mais se aproxima do modelo de José Régio, quanto, na Confissão de um homem religioso, contrapôs o "deus dos filósofos" ao "deus da fé". É que o primeiro correspondia a qualquer coisa que podia ser reflectida, equacionada e ponderada. Enquanto o "deus da fé" apenas podia ser vivido como desígnio puro e espiritual. O verdadeiro PSD, que os amantes do ornitorrinco inevitavelmente designam por "populista", é um partido de fé, não discutível e profundamente profano ao nível da sacristia do aparelho. O PSD da reflexão, o de Pacheco Pereira , é como o "deus dos filósofos" que poucos entenderão: um pouco ao sabor da ideia platónica de cavalo que nada tem que ver com cada cavalo em concreto, revisto na sua crina incerta, na sua vitalidade selvagem e no seu destemido fôlego de trote.
A razão tê-la-á Pacheco . Como Sócrates, o antigo. Enquanto Menezes começa a fazer da imagem ambígua do ornitorrinco a sua própria marca. Veremos se o embaraço que Menezes já está a criar se pode comparar ao dos investigadores ingleses de 1799, diante desse "exemplo fantástico de adaptação ambiental", como escreveu Eco, "que permitiu a um mamífero sobreviver e prosperar nos rios".
sexta-feira, 19 de outubro de 2007
Cerveja e literatura - 32
- E depois? – Inquiriu Justin Merlin.
- E depois…- o empregado do bar limpou a espuma que ficara a assinalar a passagem do automobilista e levantou a caneca suja… - e depois começaram a fazer asneiras. Primeiro, o administrador do acampamento… não se sabe onde foram desencantá-lo, mas parecia mais um guarda dos campos de concentração do que o gerente dum lugar de prazer para pessoas chiques. Levava tudo aos berros. Só lhe faltava o cacete…”
(Elsa Triolet, Luna-Parque, tradução: Mário Braga; Portugália Editora, Lisboa, 1961, p.49)
quinta-feira, 18 de outubro de 2007
Pré-publicações - 61
"A nova entidade reguladora no quadro das políticas de comunicação em Portugal"
por Manuel Pinto* e Helena Sousa**
"Este número temático da revista Comunicação e Sociedade resulta do trabalho desenvolvido no âmbito da Conferência “A nova entidade reguladora no quadro das políticas de comunicação em Portugal”, que teve lugar na Universidade do Minho no dia 10 de Abril de 2006. Pensada para debater as políticas de comunicação e a regulação dos media no nosso país, esta conferência foi uma iniciativa do projecto Mediascópio, do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, que procura acompanhar, com as ferramentas teóricas e metodológicas das Ciências da Comunicação, o panorama mediático português num quadro global.
A entrada em funcionamento da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC) serviu de mote a uma necessária reflexão crítica sobre os mecanismos de regulação mediática no nosso país. A ERC é uma faceta, porventura uma das mais visíveis, de outras mudanças já definidas ou em processo de definição:
• no jornalismo (um novo estatuto que comporta uma maior responsabilização dos profissionais);
• no audiovisual (redefinição do serviço público, televisão digital terrestre, provedor do telespectador e do ouvinte);
• no mercado dos media (clarificação das condições e limites à concentração de empresas de media)."
Cerveja e literatura - 31
“Há bocado vi-te a beber cerveja, mas disseste-me para te trazer o mesmo que eu ia beber, por isso touxe-te destas. Não tinha bem a certeza do que querias.
– A Pepsi serve perfeitamente.
– Tens a certeza? Há cerveja de sobra nas geleiras, e já sei como são os tipos que andam na rua.
Eu soltei uma gargalhada desdenhosa. – Não tenho dúvidas a esse respeito – retorqui, abrindo a lata.”
(Nicolas Sparks, Juntos ao Luar, traduçãode Alice Rocha; Editora Presença, Lisboa, 2006, p. 46)
quarta-feira, 17 de outubro de 2007
Cerveja e literatura - 30
e
“Flagstaff, Arizona. Um dia de arrasar. O resto do deserto. Monument Valley, como se tivesse sido criado apenas para o John Ford ali situar os seus westerns. Arranha-céus de rocha recortados no horizonte. O Grand Canyon, paisagem lunar sulcada por uma serpente sinuosa com a forma de rio. Dead Horse Point. Ponto onde os mustangs eram encurralados. Quando finalmente arranjámos hotel, era já demasiado tarde para outra coisa que não fosse comer hamburgers na cafeteria. Derreados de cansaço e pó, gastámos a noite a beber cervejas na varanda. Uma rotina a instalar-se nos nossos exercícios nocturnos. O Rogério e a Lena repetindo escaramuças sem fim. Uma espécie de ruído de fundo a que se não presta atenção. A Maria José trocando comigo palavras sobre o nosso dia. Lançando os planos também para o dia seguinte. Activa apenas a Clara, num frenesim de desenhos, notas visuais fazendo as vezes de uma máquina fotográfica. E recolhemos cedo. Desta vez, foi a Maria José que me desafiou a ir até ao quarto dela: for same serious drinking. O que fizemos até cerca da uma. Eu a falar, ao de leve, de Portugal, do meu trabalho, de pequenas coisas quotidianas. A Maria José a falar, ao de leve também, do que tinha sido a sua vida na América. Nenhum de nós disposto a abrir ao outro muito mais do que a sua face mundana.”
terça-feira, 16 de outubro de 2007
Cerveja e literatura - 29
“ – Tio Bud! – Miss Myrtle agarrou o rapaz por um braço, puxou-o detrás da cadeira de Miss Reba e sacudiu-o, fazendo-lhe a cabeça redonda oscilar nos ombros, com uma expressão de serena idiotice. – Não tens vergonha? Por que não deixas em paz a cerveja destas senhoras? Estou com uma grande vontade de te tirar o dólar, para comprares uma lata de cerveja a Miss Reba! Vai ali para junto da janela e não saias de lá, ouviste? ” (…) “ – Tio Bud, queridinho, não queres ir brincar para o pátio com Reba e Mr. Binford? – perguntou Miss Myrtle.”
(Willian Faulkner, Santuário, Editorial Minerva, Lisboa, p.180)
segunda-feira, 15 de outubro de 2007
Cerveja e literatura - 28
Havia fixado o caminho para voltar, mas as paliçadas de caniço repetiam-se tão iguais que ela se desorientou.
Acabou por perguntar a uns miúdos que jogavam tampas de cerveja nuns buraquinhos feitos simetricamente na terra, uns de cócoras, outros sentados. Um deles, o que jogava na altura, apontou para um charco de água suja, onde uma pata e seus filhotes se banhavam precariamente, e disse:
– Chega ali e vórta pra cima.”
domingo, 14 de outubro de 2007
Episódios e Meteoros - 52
Ia a atravessar a Diagonal, em Barcelona, como quem vem da “Alta” para o “Fórum” e eis que, a certa altura, reparei na janela oval que unia o rés-do-chão às folhagens do plátano que acolhiam o resto da exuberante fachada. E dizia o meu amigo Jordi, engenheiro hidráulico e por isso conhecedor de raros equilíbrios poéticos, que aquela janela sempre o havia levado a imaginar que, do outro lado, se esconderia uma sala imensa onde se sentam à mesa todos os descobridores do mundo. Colombo, Pinto, Polo, Scott, Zarco, Rhodes, Gama e muitos outros ali se encontrariam fora do tempo, discutindo as curvaturas do planeta e as terras do nada que se entreabrem entre o que se diz e o que acontece.
e
Quando aterrei em Lisboa, segui quase automaticamente para o novo interface dos sentidos que é, como se sabe, o sofá diante da televisão (para o homem medieval, esse interface teria o nome de uma qualquer oração). Era noite, estava cansado e dei comigo a ver o exaltado “Eixo do Mal” na SIC-Notícias. Reparei que, tal como na belíssima janela da Diagonal, havia por trás da exaltação dos comentadores o incontido ímpeto de falar acerca de acontecimentos que a semana portuguesa suscitara. Os personagens focados pela novela eram Menezes, Mendes, Lopes, Sócrates e alguns outros que, para mim, subitamente, pareceram navegar fora do tempo. Com efeito, depois dos dias em que me consegui escapar da paróquia, aqueles nomes tinham-se tornado tão irreais quanto os que Jordi ainda continua hoje a imaginar perto da fonte onde um grilo catalão serve água a uma ninfa de olhos vendados.
e
A sensação de ver discutir sobre o que se passa num aquário fechado, embora aparentemente ilimitado, não é exclusivo de ninguém. A oração para o homem medieval cumpria precisamente a mesma função hermética. Só que, no seu caso, a água escorria na vertical, como acontece nas oclusas do Canal do Panamá, entre ele e uma omnipresente divindade. Enquanto que, no “Eixo do Mal”, as cinco vozes vivem do hímen que as prende às narrativas delicadas do nosso rectângulo, ainda que com a aparente certeza de que o que se diz dá a volta aos oceanos da Terra, à moda endiabrada do El Niño. É por isso, porventura, que os novos deuses são tão, ou mais invisíveis que os medievais: “enquanto fazem as contas” e aguçam os planos, já as coisas aconteceram. E já tudo sobre elas terá sido dito. E esgotado. Fica apenas um ruído ao longe. Como o dos ralos de Atenas. Deixei-me, pois, dormir. Que nem um menino. E fui logo para a cama. Mau feitio, o meu.
e
Mas o Jordi, o Colombo, o Pinto, o Polo, o Scott, o Zarco, o Rhodes e o Gama lá continuam ainda, como se nada fosse, no número 422 da Diagonal.
sábado, 13 de outubro de 2007
Volta ao Mundo - 7
"Só tem um medo: não conseguir acordar. Nunca dorme mais de duas horas e bem encostadas à força do dia para que se sinta sempre a amanhecer.
Na noite anterior tocou como nunca. Saía-lhe música por cada poro. Foi canção, vida, poema.
(por que chorava ela?)
Olha para o espelho. Passa a mão pela barba, como se a agressividade dos pêlos lhe garantisse estar acordado. Não consegue deixar de sentir culpa sempre que tem noites assim. Sabe que a cada movimento de braços rouba um pedaço de alma ao público. Agarram-se às cadeiras, prendem-se ao chão, recordam, sorriem.
(por que chorava ela?)
Mas não consegue parar. Nesses momentos toda a cidade se resume ao seu corpo. Luz, arte, movimento, literatura. Toca a decadência. Toca o desejo. Toca para não largar a noite.
Enche de gente cada intervalo seu.
(por que chorava ela?)
Abre a porta de casa. E recomeça.
s
As luzes acendem-se no preciso instante em que a música acontece.
Uma dor aguda invade-me como se me roubassem lentamente pedaços de passado.
(por que choro?)
A minha alma salta para o palco. Sai-me por cada poro. Transformo-me em canção, vida, poema. Sinto a cidade como se sempre tivesse sido minha. Uma dança sofrida de arte, luz, movimento, literatura.
(por que choro?)
Sou apenas aquele momento. Nenhum gesto é exagero. Nenhum som ultrapassa a música. Nada acontece fora de mim.
Choro por saber que nessa noite amanheci.e
sexta-feira, 12 de outubro de 2007
Cerveja e literatura - 27
“Estávamos no Café Riviera quando os escuteiros, em sobressalto, nos contaram o que se tinha passado na igreja. Deram-lhes umas cervejas para acalmar. O seu chefe disse que tinha sido pena porque o reverendo estava prestes a ter com ele uma conversa séria de homem para homem sobre a actualidade da Igreja.”
(Hugo Claus, Rumores, tradução: Ana Maria Carvalho; Edições ASA, Porto, 2001, p. 123)
quinta-feira, 11 de outubro de 2007
Pré-publicações - 60
e
"O avô Teixeira, com todo o ar dostoiewskiano, casou em Março de 1867 com Justina, filha de José Bento de Bessa, do Lugar do Barral. Ele tinha 41 anos quando casou e ela 28, idade que, para uma noiva, era já um pouco avançada, nesse tempo. Explica-se isso porque Justina ficara enamorada desde os sete anos por José, com 20 anos, quando ele a ajudou a passar um ribeiro em dia de invernia e lhe disse que se casaria com ela, um dia. Esse dia chegou a 3 de Março de 1867. O casamento durou 35 anos, sem que se apagasse nunca a memória do amor da infância e o espírito duma união em que os elementos tiveram a sua parte mais sensível. É possível que fosse em Março que se viram pela primeira vez. Como em Março nasceram quatro dos seis filhos.
O rapazinho à direita é meu pai, Arthur Teixeira de Bessa, que foi para o Brasil aos doze anos, por efeito da ruína da casa de lavoura e duma questão perdida em tribunal. Amélia, que foi o modelo para A Sibila, tinha dezassete anos quando o irmão partiu para o Rio de Janeiro, onde steve vinte e cinco anos e fez fortuna considerável. Uma parte da Rua do Ouvidor pertencia-lhe. Eram tempos airosos de fantasia para quem se fazia ao mundo. Eu tive que abrandar o espírito de aventura e do sabor do ganho não tirei partido. Porém, gosto do triunfo que, para ser desculpado, se diz que é aprovação de Deus.
Meu avô Teixeira era perdulário, valente, amava as mulheres, o que é mais do que as desejar. Tinha por elas um respeito gracioso e sem adulação. Elas adoravam-no e faziam bem. Que há poucos homens que saibam amar as mulheres e merecê-las."
"Não gostava que lhe fizessem lembrar a pequena condição do brasileiro de torna-viagem, que, em geral, se ficava pelo negócio do restaurante típico ou pelo armazém de secos e molhados.
O português trabalhava, o brasileiro era funcionário público. Meu pai, levado por um tio que tinha comércio de frutas na Baía, foi colocado no Rio, não sei se numa pastelaria onde o deixaram comer doces até os ter por inimigos para o resto da vida. Creio que me transmitiu o desinteresse pelas coisas doces, que eu prefiro o sal e o vinagre.
Em vias de ser adoptado pelo casal da pastelaria, que não tinha filhos e se agradara da criança bonita e mansa que foi o meu pai, ele fugiu de casa. Nesta fuga estava a vocação da aventura sem espavento e sonhos fantásticos. Entrou no submundo do Rio, vivia na praia com outros da mesma idade a comer o peixe deixado pelos pescadores. Fez-se corredor num rink de patinagem. Entrou no jogo com um mulato que, possivelmente, era o banqueiro e o lado facinoroso da sociedade. O jogo era um campo de acesso à fortuna e às relações perigosas. Meu pai falava pouco desse tempo que lhe descobriu a vocação, senão o vício. Amava o jogo, não de azar, mas de lúdica sabedoria. Esse contraste entre a presa e o predador, antiquíssimo arrebatamento dos sentidos. Quem se perde pelo jogo não se perde por mulheres nem por mais nada. Minha avó Justina ficava a pé na cozinha até às três horas da manhã, a fazer paciências com cartas. Era uma mulher apaixonada e orgulhosa que tinha pena das amantes do marido e as socorria quando eram abandonadas. A mulher forte da Bíblia, austera, paciente, que faz do amor um contraveneno das próprias 16 desilusões. Qualquer ficção a diminui e não a retrata."
quarta-feira, 10 de outubro de 2007
Cerveja e literatura - 26
(Ilse Losa, O Mundo em que vivi, Plátano Editora, Lisboa, 1975 - 4ª edição - , p.186)
Pré-publicações - 59
"A sumária descrição do papel do general no campo de batalha, foi escrita por onasander em meados do século i da nossa era, mas reflecte um estilo de comando que persistiu pelo menos durante setecentos anos e que era tipicamente romano. o general ali estava, dirigindo a batalha, para inspirar os soldados, fazendo-os sentir que estavam a ser observados e que qualquer acto visível de coragem seria recompensado, na mesma medida em que seria punida a covardia. Não lhe competia mergulhar na refrega, de espada ou lança na mão, lutando à cabeça dos seus homens, partilhando os riscos. os romanos sabiam que Alexandre o Grande tinha conduzido os seus macedónios deste modo, vitória atrás de vitória, mas não se esperava dos seus comandantes uma emulação desse heroísmo. onasander era grego e um homem sem experiência militar, escrevendo num género literário estabelecido no período helenístico, mas todos os estereótipos literários usados para descrever o chefe militar no seu O General eram decididamente romanos. o livro foi escrito em roma e dedicado a Quinto Verânio, um senador romano que morreria no comando de um exército, na Britânia no ano de 58 da nossa era. os romanos orgulhavam-se de ter copiado dos inimigos externos muitas das suas tácticas e do seu equipamento militar, mas a sua dívida para com os outros era muito menor nos domínios da estrutura básica do seu exército e nas funções desempenhadas pelos seus comandantes.
e
Este livro debruça-se sobre generais, especificamente sobre quinze dos mais bem sucedidos comandantes romanos, desde os fins do século III a.c. a meados do século vi da nossa era. Alguns deles são ainda relativamente conhecidos pelo menos entre os historiadores militares –cipião Africano, Pompeio e césar serão seguramente passíveis de figurar na lista dos mais hábeis comandantes da História– enquanto outros se encontram esquecidos. Todos, com a possível excepção de Juliano, eram, no mínimo, generais competentes, que ganharam relevante sucesso, mesmo nos casos em que terminaram derrotados, mas, na sua maioria, eram bastante talentosos. A selecção baseou-se na sua relevância, tanto no domínio da história de roma, na sua generalidade, como no desenvolvimento do modo romano de fazer a guerra, e também na existência de um suficiente número de fontes de informação que permitisse descrever com algum detalhe a sua acção. Para os séculos ii, iv e vi da nossa era, temos uma única individualidade, e nenhuma para os séculos iii e v, simplesmente porque a informação para esses séculos é muito pobre. Pela mesma razão, não podemos analisar em detalhe nenhuma campanha de um qualquer general romano antes da Segunda Guerra Púnica. Apesar de tudo, o leque é suficientemente vasto e as personalidades escolhidas ilustram cabalmente as transformações, quer na natureza do exército romano quer no relacionamento entre o general em campanha e o Estado.
Mais do que seguir uma carreira individual no seu todo, cada capítulo centrar-se-á em um ou dois episódios concretos das suas campanhas, observando com algum detalhe os modos como cada um interagiu e controlou o seu exército. A ênfase será colocada sempre nas acções do comandante em cada fase de uma operação e em quanto contribuiu para o resultado final. esta abordagem, com elementos biográficos e uma especial atenção ao papel desempenhado pelo general – na estratégia, nas tácticas e seu desenvolvimento, na liderança–, corresponde a um estilo bastante tradicional de história militar. Inevitavelmente, envolve uma forte componente narrativa e descritiva dos mais relevantes episódios das guerras, batalhas e cercos, trombetas e espadas. embora popular entre o grande público, este tipo de história perdeu respeitabilidade académica nas últimas décadas. Os académicos preferem olhar para um mais vasto cenário, tentando captar os factores económicos, sociais ou culturais, tidos como de mais relevante influência no desenrolar dos conflitos, do que as decisões individuais ou os acontecimentos guerreiros. Para tornar este tópico ainda mais fora de moda, este é também no essencial um livro sobre aristocratas, uma vez que os romanos pensavam que somente os bem-nascidos e privilegiados mereciam ser encarregados dos altos comandos. Mesmo um «homem novo» (novus homo) como Mário, desprezado pela elite do Senado, onde pretendia forçar a sua entrada, pelas suas origens vulgares, vinha simplesmente da baixa aristocracia, não sendo de todo um representante da população indiferenciada."
Pré-publicações - 58
terça-feira, 9 de outubro de 2007
Cerveja e literatura - 25
“O táxi meteu, por fim, pela Reeperbahn: music-halls, cervejarias, dancings e cabarets. Cingido de mil letreiros multicolores, Sankt Pauli desprezava o aguaceiro!
– Já não conheço este bairro! – exclamou Dieter. – É certo que não venho aqui há quinze anos. Esqueci-me de dizer-lhe... Sou de Berlim e passei uma parte da guerra, e do após-guerra também, na América.”
(Christine Garnier, Uma Mulher em Berlim, tradução de José Saramago; Publicações Europa-América, Mem Martins, 1957, p.20)
segunda-feira, 8 de outubro de 2007
Cerveja e literatura - 24
(João Guimarães Rosa, O Cavalo que Bebia Cerveja em Primeiras Estórias, Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 83)
domingo, 7 de outubro de 2007
Episódios e Meteoros - 51
O que se pensa numa insónia não é nunca objectivo. É antes uma súmula indistinta, sem grandes contornos. Uma pintura expressionista à procura de sentido. A insónia é um sarcófago sem múmia, um canal sem Veneza à volta, um Stabat Mater sem Vivaldi. Geralmente, a esperança rareia na insónia. É da praxe. Mas sabe-se, apesar do tom crepuscular, que tudo irá continuar. Para além do muro. É curioso que, na literatura, a insónia é amiúde encarada como tema menor. Por que será, meu caro Marcel?
Bem esperei pela resposta, mas Marcel não respondeu. Nem nunca nos responderá. Sabe-se, contudo, que, entre esse silêncio irrespondível, Marques Mendes saiu da sua insónia, enquanto, desprevenido, Menezes nela terá entrado. De fora, a tentar acordar do pesadelo, Santana Lopes esgaravata à sua volta e não gosta nada que o tenham acordado à pressa, sem jeito, para mais num directo nocturno que ostenta uma personagem tão sonhada quanto adulada. Qual sarcófago, qual Veneza, qual Vivaldi!
No governo, a tecnologia e os rankings internacionais descansam os espíritos. Para além do mais, até Dezembro, haverá muita Europa e ainda mais dilemas a converter em matéria de crónica (Mugabe é, nessa vasta amálgama, apenas uma gota de orvalho). E se 2009 vai ser terreno fértil de campanha eleitoral, resta a 2008 ser o palco de todas as decisões. Há quem seja apólogo da teoria salvífica que revê em Manuela Ferreira Leite a encarnação sebástica do próximo Outono. Enfim, conjecturas sonolentas, cenas de vigília, mágoas de sabor gótico.
Certo é que, dez anos após a euforia da Expo, nove anos depois de Timor ter sido um generoso talismã para Guterres e vinte anos após o estado de graça de Cavaco, nos preparamos para um 2008 igualmente eufórico. Portugal gosta de altos e baixos, de carrosséis ondulados e abismados, de nevoeiros densos que alternem com um sol escaldante e porventura hipnótico. Portugal gosta de acordar a meio de um desígnio traçado (neste caso, o tecnológico) e expor-se depois à insónia. Ou seja: ao pequeno debate, às ínfimas travessias e a todo o tipo de logro que venha por bem. Qual sarcófago, qual Veneza, qual Vivaldi!
O Portugal profundo, mais do que um país de poetas, é - e sempre foi - uma terra de bravos insones.
Cerveja e literatura - 23
“- O almoço é contigo, o vinho comigo! – Vê na carta alguns vinhos franceses e escolhe um: - o vinho é para mim uma questão de honra. Não percebem nada de vinho, os nossos compatriotas, e tu, embrutecido pela tua Escandinávia bárbara, percebes ainda menos.
Conta-lhes como as amigas se recusaram a beber o Bordeaux que ela lhes levara:
- Imagina, um milésimo de 1985! E elas, de propósito, para me darem uma lição de patriotismo, beberam cerveja! A seguir tiveram pena de mim e, já bêbadas de cerveja, continuaram com o vinho!
Conta-lhe, tem graça, riem.
O pior era que me falavam de coisas e de pessoas das quais eu não sabia nada.”
(Milan Kundera, A Ignorância, tradução: Miguel Serras Pereira; Edições Asa, Porto, pp. 159/160)
Um ano de Reactor
quinta-feira, 4 de outubro de 2007
Chuva, chuva
quarta-feira, 3 de outubro de 2007
Pré-publicações - 57
"Como se a chuva viesse com as nuvens baixas. Como naqueles dias de Inverno em que as nuvens são escuras, pretas, quase que não se imagina o sol por detrás do frio. Como se a chuva viesse nesses dias com o vento que as faz voar como pássaros pelo céu, e nós aqui, agasalhados até aos ossos, os guarda-chuva não funcionam, dobram, partem, e nada se pode fazer senão deixar que o Inverno passe, pensar que sim, que o Inverno ainda há-de passar e que essas nuvens baixas e ventosas são passageiras.
Mas foi assim, como se a chuva viesse. Foi com esse frio que algo se passou e ainda agora, algum tempo depois, eu não sei o quê. Vi, só. Nada mais. Estava no centro comercial e vi pelos vidros enormes que dão para o adro e para a avenida e logo me apeteceu descer as escadas rolantes em desespero e ir ajudar, ver o que se teria passado, mas o que se está a passar, pensava, o que é isto, as pessoas, as pessoas, este vento de sul que parece vindo do mar, a oeste, um vento que trará a chuva, para já só salpicos, quase toda a gente sem guarda-chuva na avenida que desce até ao rio.
Foi assim: as pessoas a caírem. E eu estava à espera que as horas passassem, tão-só. Eu estava encostado ao vidro, no centro comercial entre as minhas coisas, entre os meus desejos mais íntimos, entre as minhas loucuras diárias e a minha vida.