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sábado, 27 de outubro de 2007

Episódios e Meteoros - 54

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(Crónica publicada desde anteontem no Expresso Online)
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A minha avó paterna costumava falar-me das revoluções da Primeira República e das perseguições ao clero. Desvarios do outro mundo. A liberdade é, de facto, uma coisa muito bonita. Aprendi bem cedo essa lição, muitas vezes através do sorriso com que se contam e ouvem as histórias infantis.
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Não sei se foi por causa disso, mas, em 2004, o filme de Mel Gibson sobre a paixão de Cristo passou-me completamente ao lado. Para mais, tinha-me ocupado de literatura profética durante algum tempo - fora esse, há mais de uma dúzia de anos, o tema do meu doutoramento - e já me tinha antes deliciado com A Paixão e com toda a Tetralogia Lusitana de Almeida Faria, sem esquecer outras paixões mais frondosas e igualmente venezianas.
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Embora hesite habitualmente entre o abismo dos agnósticos - aí está uma palavra que soa sempre a névoa - e uma certa tendência para predador do absoluto - aí está uma palavra que não se deve utilizar numa crónica, a não ser que saiba a vodka -, a verdade é que a grande e única narrativa da minha infância (e da infância católica que, mais ou menos, todos respirámos) era e é coisa que hoje, muitas vezes, me enfastia e que, quase sempre, se vai tornando em matéria para a mais doce das indiferenças.
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Seja como for, Gibson frustrou todas as minhas perspectivas (no domingo passado, vi a fita na televisão). Ponha-se de lado a pálida conotação da fé, com todo o respeito pelos anjos; ponha-se de lado a identidade dos personagens, com todo o respeito pelo casting e pela direcção de actores; ponha-se de lado a requintada atmosfera criada pela língua aramaica a contracenar com a hebraica e a latina... e o que sobra é sangue e mais sangue: uma violência de altar barroco e de cenas noctívagas com cobras e corujas em nome da expiação dos pecados do universo. Uma tirada patética, cheia de talha dourada e a milhas da catequese inflamada por que passei há quase meio século: aí, sim, o
medo tinha ainda patas de seda e olhos de cabeçudo.
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E como não há história baptismal sem demónios, lá surge no filme de Gibson - entre o colorido painel de adereços - uma mão cheia de judeus crispados e almofadados que acaba por convencer o pobre do Fausto
romano a cometer o maior dos pecados. Azar o deles.
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Bem pôde, pois, a minha avó ter-me falado de revoluções e perseguições. Bem pôde o fogo posto de muitas inquisições ter sido extinto. Bem pôde a catequese ter-se tornado num conto de fadas langoroso e longínquo. Bem pôde, para muitos, o simples esquecimento das grandes e variadas tragédias do século XX. Bem pôde tudo isso. Mas não haja dúvida de que a intolerância continua a viver da repetição insaciada duma mesma tónica. Duma mesma carne. Dum mesmo dogma sectário. Por outras palavras: dessa luxúria binária - própria de filme de terror de terceira classe - que afinal anima, do princípio ao fim, o psicodrama de Mel Gibson.