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segunda-feira, 31 de maio de 2004

Por Stefan Müller-Doohm

Para quem gosta de Adorno e de biografias, eis aqui uma mistura adequada. Sobretudo se a língua alemã não foi coisa aprendida a seu tempo.
David



E o rapaz fez subitamente cinco séculos de vida. Parabéns!
Só visto

não se pode simular a própria morte.
Maya Gordon, minha amiga


pintura de Maya Gordon

A meias com o meu amigo e grande fotógrafo, José M. Rodrigues (Ó Zé, lá vai outra vez o... dizer que eu fui um dos produtores do teu Prémio Pessoa), recebi esta semana uma amiga comum dos nossos tempos de Amesterdão, a Maya Gordon. Judia de origem polaca, a Maya, além de pintora, é uma força da natureza e uma imensa cumplicidade de memórias e afectos. Deixo aqui, aqui e aqui alguns registos sobre o seu trabalho e biografia para os mais curiosos.
Foi ontem, no último domingo de Maio, que a Maya acabou por contar (a mim e a um grupo de iluminados, todos reunidos num monte alentejano distante da civilização) uma história que manteve secreta ao longo de anos: a sua fuga da Polónia para Israel em 1957, quando tinha apenas dez anos de idade. Vou agora partilhá-la um pouco.
A história pode aliás ser relatada em poucas palavras. No pós-guerra, não terão sido poucos os judeus que decidiram (voltar a) fixar-se na Polónia. Por crença, por regresso às raízes, por determinação pessoal. O pai da Maya Gordon, um engenheiro de alto nível (chegou a participar em projectos ligados à concepção aeronáutica de ponta), foi um desses homens. Preferiu o destino polaco ao celebrado desígnio utópico da fundação de Israel. Opções pessoais da época.
A partir de meados dos anos cinquenta, quando nada aparentemente o fazia prever, a não ser um certa descontinuidade nas altas taxas de crescimento económico, o partido comunista polaco iniciou uma sistemática e empenhada campanha anti-semita. Nessa onda, muitos judeus veriam os seus empregos ameaçados. Por volta de 1955/7, muitos foram mesmo, directa ou indirectamente, forçados a abandonar a Polónia. A família da Maya Gordon integrou um desses grupos, mais precisamente em 1957, numa viagem de sete dias e sete noites em que nenhum dos passageiros pôde sequer sair do comboio entre Varsóvia e Génova.
A memória de menina leva Maya hoje a insistir na palavra “histeria” para traduzir o desespero daquela viagem e daquele êxodo forçado e silenciado pela história. Em Génova, após vários dias de espera, um barco haveria de levar todas essas famílias para um improvisado campo em Israel. A guerra da independência e o holocausto eram ainda memórias relativamente recentes. O novo país levantava-se a pouco e pouco com coragem.
Até voltar ao nomadismo que a traria à Itália e à Holanda, a Maya Gordon viveu, de 1957 até ao fim dos anos sessenta, num país que se tornou subitamente o seu. Muito do seu trabalho plástico evoca estas rupturas, este caminhar entre lugares e topografias reais e imaginárias. Mas a grande viagem, a que escapou ao sentido de escolha da vida, essa, permaneceu ilesa à memória partilhada. Até hoje.

domingo, 30 de maio de 2004

Sétima vaga

Ontem, Peter Gabriel apareceu com uma voz menos branca e mais ácida. Mas manteve o eco, a proximidade nostálgica e a ira sinfónica (naquele tempo, eu olhava de lado para este tipo de música; preferia mais electricidade, mais som. Hoje - já de madrugada - confesso que senti uma espécie de reconciliação no ar).
Jogos sem fronteiras

António Barreto, hoje:

"Tudo leva a crer, pelo que se vê e ouve, que o governo vai organizar o regresso das velhas senhoras: facilidade, distribuição e benesse. Há umas andorinhas de mau agoiro que trazem certezas."

Ou de como o ano dos festejos ameaça converter-se em jogo de máscaras para esconder outras faces.

sábado, 29 de maio de 2004

Sentir a falta - 2 (act.)


Lynne Prachyl

Escreve J.P. Coutinho:

“Ao contrário do que por vezes se pensa, e até escreve, a ausência dos que mais amamos não se faz sentir nos piores momentos da vida. Mas nos melhores.”

O que é um bom momento? Talvez o rebate irreflectido e súbito da felicidade. Talvez o atrito instintivo e arrebatado do contentamento. Talvez ainda o pasmo consumado e directo de uma consolação. De qualquer forma, existe um espanto nesse breve instante a que chamamos um bom momento.
O que nos traz os outros, ou o outro, nesses hiatos breves, é a desejada partilha, o pressentido testemunho e a imaginada cumplicidade.
Um sentimento, seja ele qual for, percorre sempre a volatilidade com que nos descobrimos ao encorpar-lhe a forma. De repente, o nosso corpo é já o sentimento. E nada mais sobra nessa ocupação tranquila.
No caso de um bom, ou mesmo de um grande momento, não só trazemos a nós o corpo que sentimos em júbilo como estendemos ao outro, ao ente mais querido e ausente, o desejo de uma identificação sem nome. Ao contrário de um mau momento - espécie de convite à nossa qualidade estóica e acrobata - o bom momento apela inevitavelmente ao desdobrar de vozes, à pluralidade das emoções e ao preenchimento dos outros, dos mais queridos, em nós.
A ilusão que dissimula todo este movimento, a tal que leva J. P. Coutinho a afirmar “ao contrário do que às vezes se pensa”, é uma espécie de boomerang.
Quanto pior é um momento, mais o sublinhamos, mais o dizemos, mais o descrevemos. E é por isso que ele lentamente se afasta, na sua enigmática circum-navegação.
Quanto melhor é um momento, mais o entendemos na sua invisibilidade, mais o silenciamos, mais o denotamos pela surpresa. E é por isso que ele tanto se aproxima de nós na sua incorpórea translação.
Dizer um bom momento é percorrer o imperceptível, o intraduzível, o inefável. E é na aura - essa memória única do invisível vivido -, e apenas nela, que há comunhão, compaixão ou saudade. A aura é, afinal, a forma com que resgatamos a falta.

P.S. Charlotte: "celebrar" pode parecer o contrário de "sentir a falta", mas talvez não seja. Ambos requerem remissão: a uma presença ou a uma ausência, respectivamente. O ideal era poder condensar no presente ambas as remissões e adicionar-lhes a celebração e a própria saudade. Sem parar.
O resultado, de certeza fortíssimo, seria qualquer coisa parecido com as Bachianas ou com o Tango (seria?). Que ponto singular seria esse? Tão forte seria esse sentimento que o nome transbordaria de anonimato e vice-versa (desterritorializações, em suma). Je serais un autre.
Passar por quem passou por cá – 2 (act.)



(uma selecção de dez simpáticos visitantes desta última semana)



1-Ou de como a magreza estabelece um diálogo profundo com o pranto.

2-Ou de como pode ser vital inventariar de modo descansado as toxinas.

3-Ou de como não se deve falsear o dogma das origens da nacionalidade blogueadora.

4-Ou de como “waauugghh!” pode assinalar a involuntária data de 28 de Maio.

5-Ou de como a arte de lincagem é mais simples e elementar do que o desvario.

6- Ou de como Mikail Cholokov é tão ignorado como os eventos de 24 de Julho.

7-Ou de como é bom saber o que passa na Casa das Artes de Famalicão (irei lá muito em breve).

8-Ou de como a nomeação do novo Director-Geral dos Impostos é coisa de pólvora.

9-Ou de como a expressão “Mazal tov” denota a generosidade de um bom benfiquista.

10-Ou de como o deleite permite gritar em altas vozes nesse bairro: I love Nina Simone!



(última hora: acabou o Dicionário do Diabo. É pena. Sempre fui um bom leitor do Pedro. Continuarei a segui-lo noutros lados. Abraço.)

Até para a semana!


New Jobs

Quando o Barranquenho e o Mirandês conseguirem o mesmo, a taxa de desemprego diminuirá alguns pontos.
Capangas



Afinal Mourinho andou fugido na passada Quarta-feira e nos dias seguintes. C'era una volta il West.

sexta-feira, 28 de maio de 2004

A sacralização da arte

Onde dantes havia martírio, milagre e criação divina, há hoje memórias do inferno, metamorfoses inesperadas e criação artística. À esquerda, à direita, a montante, a vazante, ao centro, em todo o lado é assim. Há mais de dois séculos.
Persistências

Nem vale a pena acrescentar seja o que for ao que estou a pensar. É que blogar sob a forma do anonimato, numa sociedade aberta e democrática como a nossa, é assunto para Baaaaaaaaaghhhhh!
I love Daclos

Em cerca de 11 meses de Miniscente completei o correspondente a quinhentas páginas escritas. Mãos à cabeça. Teria dado para dois a três romances, ou, em alternativa, para uma sucessão diária de cartas de amor de página e meia cada. Blogar é incorrer em ligações perigosas. Excessivamente. Quando a brincadeira fizer um ano, vou parar para balanço. Ai vou, vou.
Espaços comuns



O governo, pela voz do secretário de Estado Adjunto da ministra da Ciência e do Ensino Superior, Jorge Moreira da Silva, propôs a criação de um mesmo espaço lusófono de ensino superior. Objectivo: "promover a empregabilidade, mobilidade e qualificação dos sistemas de ensino e competitividade das nações".
Ficamos a saber que a Lusofonia se está a transformar numa espécie de Estados Unidos viável e fiável onde a mobilidade, a polivalência e o eclectismo dos empregos vão a par com uma saudável competitividade, no quadro de uma moldura inevitavelmente democrática, madura e baseada em regras por todos reconhecidas.
O que é difícil na Europa, vai a Lusofonia fazê-lo em tempo recorde. É de aplaudir a iniciativa. Agora já compreendo melhor a vantagem única de partilharmos, todos em uníssono, esse espaço tónico do saber global que dá pelo nome de Lusofonia.
Umbigalista

Escreve hoje Miguel Sousa Tavares no Público:

“Comentar temas políticos com cinco dias de idade é, entre nós, quase um absurdo: a política, tal como a seguimos e a vivemos, é um objecto de consumo instantâneo.”

Digo eu (ouçam a minha voz): “Ó Miguel, isso passa-se só entre nós? Ou não será antes um vaivém normalíssimo dos tempos actuais, neste planeta em que todos ainda vivemos?”
A solução, adianta o discurso indirecto, é repor o uso da escrita sem ter necessariamente que a escravizar. A angústia expressa no texto de Miguel Sousa Tavares tem a ver com o uso da crónica (publicada em papel) como se ainda respirássemos um tempo diferido, orgânico, historicamente distendido entre passados e futuros. Eu dava um conselho amigo e terapêutico: blogagem. Não creio que seja algo menor, plebeu, portista ou tão-só votado ao meramente “impublicável”.
Pérolas



Vi a Rapariga com o brinco de pérola de Peter Webber. Não é grande filme. Pessoalmente toca-me a memória daquela arquitectura, o ritmo dos interiores, a descrição condensada. E o valor do filme reside precisamente na fotografia, na aspereza da imagem e no deslocamento da história em relação ao traçado modelar de Vermeer. Não me impressionei, não me emocionei e não vislumbrei qualquer aceno mínimo de perdição. E é isso que procuro, confesso. Muitas vezes, na maior parte das vezes, encontro tudo isso subitamente e num único grão. Com meia dúzia de nada. A vida pode brilhar quando menos damos por ela. Respirando. É fim de Maio. O céu a planar sob augúrios de plenitude. Eu estava a falar de cinema? A sério?
Densidades e debates

Sabiam que Giorgio Agamben, Paul Virilio e mais uns tantos vultos com alguma espessura mundial vão amanhã batepapar em Évora?

quinta-feira, 27 de maio de 2004

Conde Barão

Lancho numa esplanada em frente aos antigos armazéns do Conde Barão. Ainda cheira a fumo, a queimada, a cinza desfeita. Os últimos três pisos não passam hoje da consumada memória dantesca do antigo Arsenal veneziano: ferros corroídos, paredes limadas a negro, janelas adormecidas pelo vão das labaredas. Após o limbo - essa imaginação nostálgica vestida de metáfora - o emergir impiedoso da catástrofe. Precisamos todos, afinal, de um inferno. Vejamos: não há como um terramoto para repensar uma cidade, o espaço virgem por saciar, ou a abertura ilimitada dos lugares. Talvez precisemos de ciclos bem marcados: erigir, evocar, acocorar em limbo, arder e, depois, então, imaginar e criar sem freios e sem receios. Porventura, há no recato mais íntimo e repousante da vida este vigorar dos limites, este acender dos extremos, este implacável navegar dos abismos. Adeus Conde Barão!
(escrito anteontem num guardanapo).
Voz primitiva e sem hipocrisia

O futebol é baseado em opções primárias e a-racionais. Há espaço para vibrar, durante o impulso dos jogos, e depois há espaço para enterrar a redoma primitiva e ir normalmente à vida. Mas não sejamos hipócritas! De repente, ficaria bem dizer que todo o país está com o Porto. Mas não está. Nem nunca esteve. As inversas são e seriam verdadeiras em todos os casos. E qual é o problema de o afirmar em voz alta? (agora parece que o Mourinho já caiu em desgraça).
Bagdade: caminhos cruzados (act.)

Ontem encontrei-me com o Rui Tavares no "Bagdade café" em Lisboa. O acaso tem destas coisas simpáticas. Revimo-nos num CD comum e fomos depois, lado a lado, até ao parque onde, há não muito tempo, existia uma pista de gelo. De Bagdade ao pólo. Longos dias têm cem anos, escrevia a Agustina no título de um livro sobre Vieira da Silva (penso que não me engano, embora tenha lido o livro há mais de vinte anos).
Obrigado Planeta Reboque pelo avivar de memórias!
Vale a pena

A visitar com urgência What do you represent, apesar do que se diz das escolas que põem em causa a representação e não são poucas. Ah, Ah, Ah. E há blogues que têm a fineza de pronunciar frases sincopadas como esta: "Há dias assim. Em que o tempo parece ter ficado parado ali atrás, e nós não podemos continuar enquanto ele não nos alcançar."
Eu hoje estou de facto atento aos sinais. Mas não mais do que a "bolinha vermelha" que encima a genialidade exposta do maradona (minúscula oblige) que eu tanto aprecio. Kant exemplificava o génio como uma entidade original, exemplar e mediúnica (mais ou menos isto). E confesso que está lá tudo.
Quando a Google decidiu comprar o blogger (os géneros, em Português, falam com gravidade), terá havido por acaso a consciência do ouro que por aqui, na blogosfera lusa (também), abunda?
Going to the West. Looking for gold. Eis-nos aqui. Douradinhos, sem apito e a ver navios com velas que valem a pena.

quarta-feira, 26 de maio de 2004

Prodígios

Vejam esta maravilha blogosférica. Ainda por cima paredes meias com a minha futura casa off-line.
Feira do Livro

Recomeça, após o feliz ritual da Praça da Alegria, a publicação de bons livros baseados na actividade blogosférica. Parabéns Pedro.
Uma resposta

Amigo MacGuffin: quem me dá essas instruções bicudas, parcimoniosas e tão fragmentárias quanto nietzscheanas é uma ferramenta que se entitula especularmente: “Referring Web Pages, last 24 hours/ Support Arts - Visit trueFresco.Org” (pode ver-se, de modo mais tangível, na parte de baixo do Miniscente). Quanto redigi aquela prosa não estava lá referido o teu blogue, mas hoje, neste momento preciso, consta lá com 3 (três) agradáveis e desejadas presenças. Mais digo: referir-me a ti e às tuas reflexões é sempre um prazer, do mesmo modo que ler os teus textos e seguir o curso crítico do teu blogue é um exercício diário e não menos votado ao comprazimento e à seriedade intelectuais. Digo-o porque o penso.
P.S. - Acrescento ainda que, em matéria de heteronímias locais, assino por baixo três mil e trezentas vezes.
Já agora (act.)


Vermittlung von Kunstwerken, Serge Charchoune

E quando o dia nos interpela acerca da memória indiferenciada de tantos fins de Maio? Não terá sido sempre o mesmo mês, o mesmo tempo, a mesma contemporaneidade? Não terá sempre havido a mesma voragem de vozes e o mesmo céu em curvatura de devaneios? Não terá sempre persistido o mesmo brilho, a mesma memória e o mesmo desejo com nome de calor? Não terei eu sempre vivido neste dia, todos os dias? Subitamente a minha resposta é corrosiva e fatal: sim. Este é o dia.
E hoje é dia de decisões. Difíceis, mas decisões. Falarei disso mais tarde. Assunto delicado, mas para não esconder (refiro-me àquilo que não tiver que ser escondido).
Cahen

O Ma-Schamba volta a lançar alguns dados sobre o conceito esvaziado de lusofonia. Conversa salutar, directa e corrosiva q.b.; no post em causa são propostos vários textos com destaque para a - poderíamos chamar - desconstrução de Michel Cahen.

terça-feira, 25 de maio de 2004

Miniscente em Compacto off-line:

Diário dos Açores (Ponta Delgada), Diário do Sul (Évora), Linhas de Elvas (Elvas), Diário Regional de Viseu (Viseu), Diário do Alentejo (Beja) e O Templário (Tomar).
Hermenêutica da nostalgia (ganda título!)

Acabei de dar a última aula a uma turma em fim de licenciatura. É sempre errático e às vezes desconcertante ver aparecer e ver partir grupos e grupos de alunos. Vão e vêm, à medida que passam os anos, e, em boa verdade, todos eles formam um caudal ou um fluxo a prazo dificilmente reconhecível enquanto grupo. Uma ou duas décadas depois, reconheço-os sempre individualmente (preservo bons amigos entre eles e sigo a carreira de alguns bastante conhecidos, ou nem por isso; a diferença não é capital), mas perco sempre a ideia de corpo, de grupo, de entidade plural fechada. Curioso é o facto de, ao contrário da previsibilidade do aluno de mestrado, interessado, motivado e entendedor do sentido de pesquisa, aqui, mesmo a dias do final de licenciatura, tudo parecer ainda circular entre o facilitismo próprio ("que páginas vêm para a frequência?") o deixa andar afectuoso ("Ai, professor, tanto trabalho e só me apetece é ir para a Caparica") e alguma infantilidade despregada (que não censuro em termos moralóides ou paternalistas, é evidente). Ao fim destes oito meses de testemunho comum, fica sempre a mesma e irrespondível pergunta no ar: que riqueza se terá adicionado (à já existente) em cada uma dessas pessoas de quem fui professor? Mesmo que a resposta pudesse ser dada, individual e até compulsivamente (estilo juízo final, imagine-se"!), jamais as palavras traduziriam o que se respira no que é sincero e sobretudo desejado na pergunta.

segunda-feira, 24 de maio de 2004

Back to Fukuyama?



Francis Fukuyama, em interessante entrevista ao Al-Ahram, fala de um tema que, a prazo, pode vir a tornar-se importante para o Islão. Não é coisa nova. O autor designa-o por uma espécie de neo-“luteranismo” e visaria conciliar a renovação democrática da tradição ocidental dos últimos dois séculos com a complexidade e a multiplicidade da trajectória do Islão (onde a ideia muito residual de democracia, tal com a entendemos no ocidente, acrescento eu, apenas se terá vislumbrado historicamente na tradição diferencial entre as diferentes escolas de direito sunitas).
Seja como for, um dia destes, iniciarei aqui um conjunto de apontamentos sobre o Kalâm, i.e., sobre as tentativas de encontro entre a interpretação racionalizante que adveio da tradução dos gregos, no século IX abássida, e a própria revelação islâmica. As várias escolas envolvidas nesse proto-Iluminismo islâmico, sobretudo a Mu´tazilita, acabariam por ser abafadas pelo devir histórico monossémico, teocrático e opositor da interpretação mais ou menos aberta ( o tawíl). Estes factos são fundamentais, penso eu, para a compreensão do Islão de hoje - nas suas variantes quase ilimitadas - no mundo.
Voltando à vaca fria, na entrevista ao Al-Ahram, Francis Fukuyama refere-se ainda aos mal-entendidos criados pelas (diversas) imagens de democracia a que o Ocidente recorre, às vezes arbitrariamente, para justificar manobras amiúde injustificáveis. Ou, de como o nome do erro não pode ser sempre baptizado pelo próprio epíteto da democracia. Uma questão interessante e a aprofundar noutros contextos.
Em suma, vale a pena ler. Trata-se de uma abordagem lúcida, cosmopolita, projectiva. Só os cristalizados e ofendidos com a ideia (teoricamente possível) do “colapso da história” (no contexto em que foi visionada) é que recusam ler, ainda hoje, a flexibilidade estimulante e a inteligência prática de Francis Fukuyama.
Tretas e patranhas



Para o normal sentimento de um ocidental, a internet e o cibermundo andam inevitavelmente associados à democracia. Nem podia ser de outro modo. Mas um passeio ao Laos, descrito pelo cronista Joshua Kurlantzick, ilustra o modo como essa inevitabilidade da internet e da rede em geral pode conviver com a mais despudorada das censuras. É assim (ainda) o comunismo; por cá andam sempre com a palavra liberdade na ponta da língua.
Passar por quem passou por cá – 1


Vermittlung von Kunstwerken, Lynn Chatwick

Uma a duas vezes por semana, vou passar a dar conta de uma visita aos blogues que mais me visitam (impor-se-á sempre uma selecção, como é natural).
Começo pela Charlotte, uma das presenças mais assíduas e que melhor recebo cá em casa. No tempo blogosférico, pode dizer-se que se trata já de uma amizade clássica. E assim fiquei a saber pela própria Bomba como aproveitar um Sábado à noite diante da televisão: “Há um prazer e um gozo na maldade que vicia por ter graça.” Espreitar e ver. Vale a pena.
Na nossa breve viagem, também reparámos que os felinos passaram a ter um blogue. Devidamente preenchido. A espécie agradece, naturalmente.
Mais para o interior, com vista para Monfurado e Escoural, há o Digitalis. Um excelente blogue que visito muito regularmente. Aconselho-o a todos.
Já agora que falamos de fontes e de letras, deixo aqui o meu obrigado ao Rodrigho Gurgel pela reflexão sobre as editoras.
Para sul, a caminho do Índico, temos outra cumplicidade longa e mutuamente revisitada: o Ma Schamba, esse aroma esclarecido. Hoje publica-se lá um excelente post "sobre blogues". É ir e ver.
Regressando aos quarenta graus de latitude norte, devo dizer que é inegável o gosto que me dá a escrita do Alexandre Monteiro. Embora, às vezes, me bloqueie o Internet Explorer. E porquê?
Entre o irrespondível, o terrível e devotadamente belo, eis que me encontro com uma das mais recentes imagens de O Projecto: a nova biblioteca pública de Seatle. Obrigado pela notícia. Obrigado pelo contagiante excesso da notícia.
Devido aos baques que estas súbitas visões originam, nada mais aconselhável do que o sonambulismo anunciado pelo Babugem (deve ter sido da feijoada, não?)
Mais acordados e às vezes muito espicaçados, esta outra malta, com alguma razão, diga-se, lá acaba por trocar toda a história da filosofia pragmática por um baralho de nada. Radicalismo à parte, nem Peirce, nem James mereciam isso!
Entretanto, longe de polémicas, este simpático blogue é demasiado lento no profundo azul com que se abre perante o leitor, antes ainda de aparecer. E assim fica, azul, infinitamente azul.
Por fim, O olho de girino, a quem outro dia tentei tirar uma dúvida de época (nesse tempo havia ainda a chamada “fruta da época” nas ementas dos restaurantes), fala-nos da recente realização de Morgan Spurlock sobre os McDonalds. Biografismo e denúncia. Gosto mais de bons legumes, bife de lombo mal passado e umas ervas raras com mostarda, sim senhor. Mas não sou fundamentalista. Até à próxima.

domingo, 23 de maio de 2004

Da memória ao mito



Ver Paul McCartney a falar da invenção da sua conhecidíssima Yesterday, ao longo de demorada viagem entre Lisboa e Albufeira, em plenos anos sessenta. Associar essa viagem entre fenos amarelados e aldeias brancas com o encontro, já à beira-mar, com Bruce dos Shadows (que lhe terá emprestado a guitarra) e Cliff Richard da então famosa Congratulalions. Ver o ex-Beatle a evocar essa longa viagem através do Alentejo, quando a letra da melodia ainda se limitava a rimar “scrambled eggs” com “your legs”. Entender que apenas diante o mar algarvio é que a palavra Yesterday se fez finalmente à história e à descoberta.
Seguramente, um belo momento televisivo da SIC-Notícias de ontem.
Normalidade política

Hoje em dia, em Portugal, há “ministérios parados” onde os ministros e os secretários de estado “não se falam”. Disse-o ontem Marcelo Rebelo de Sousa na TV I. Parece ser coisa normal. Segundo o comentador (e outras vozes correntes mais ou menos avisadas), esta normalidade vai continuar até Outubro, altura de pressentida remodelação menos votada a desígnios cosmético-ambientais. E a oposição, o que tem a ver com isto? Diaconomania? Tragédia?
Da tragédia ao medo

Quando o medo de andar de manga é superior ao medo de andar de avião, mal vai a volta! Não basta já a turbulência, a ameaça terrorista e a hiper-ocupação do espaço aéreo. Agora até nas mangas e terminais dos aeroportos nos passamos a debater com o chamado terror dos patos bravos. Ai, Paris, Paris, que novas pragas nos trazes! (já nos vais trazendo tão pouca coisa)
Perspectivas

Já lá vai o tempo em que se estudava e depois se iniciava uma carreira vitalícia a pensar na reforma. Hoje estuda-se e depois há que continuar sempre a estudar (formação permanente, adequações específicas de know-how, pós-graduações, reciclagens permanentes, etc.). Do mesmo modo, a curva demográfica, por si só, conduz ao reconhecimento objectivo de que a reforma é e será cada vez mais assunto de investimento e não objecto de pura passividade e espera tranquila. Gradativamente, a iniciativa irá ocupar o lugar oitocentista da reivindivação. Nos próximos anos, goste-se ou não, o carácter dinâmico dos empregos, a previsível volatilidade da segurança social e a importância do conhecimento (e das tecnologias) irão tornar-se no triângulo decisivo. De um lado a escassez dos recursos, do outro a arquitectura de um mundo radicalmente novo. Quer-me parecer que o nosso espectro político ainda se dispõe entre a relativa fuga para a frente e a espessa peneira diante do sol. Direitas e esquerdas a tentarem dominar o menino que sublima hoje os valores que pertencem a um mundo que já não existe; ei-lo a encontrar sentido para a vida no fluxo do consumo, na instantaneidade tecnológica, no narcisismo social e nas ficcionalidades televisivas ou on-line. Entre a inépcia das respostas e a indiferença generalizada, o rio que corre do outro lado da minha janela tem a pronunciada cor da invisibilidade.

sábado, 22 de maio de 2004

Demagogias frívolas



A mudança de sede do IAPMEI de Lisboa para o Porto é um exemplo claro de provincianismo populista. Sem uma política de efectiva ligação ao terreno (a tradição centralista em Portugal, natural pela escala, tem tradições evidentes), o governo acena no parlamento com um desígnio casuístico, mais ou menos alvoroçado, e faz lembrar a célebre definição de governar que Eça de Queiroz nos deixou, precisamente nos seus jovens escritos do Distrito de Évora (nº42, 2/6/1867):

“A ciência de governar é neste país uma habilidade, uma rotina do acaso, diversamente influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse”.

Esperemos que o INE não siga o mesmo caminho. Para já não falar no exacerbar das paixões localistas, pacóvias e mesquinhas que a actual descentralização (em curso…) tem motivado de norte a sul (qualquer cidadezinha minúscula, qualquer cacique melífluo, qualquer concelhia gaiteira quer ser capitel solitário de um vaticinado templo imperial). Sabem que mais? Gargalhada geral. Passam os governos e, nestas coisas essenciais (a hipocrisia da auto-estima e outras parvoíces do género), bastamo-nos à intemporalidade. De facto, entre “o dia P” e o aceno casuístico do ministro fica desenhada muita da gesta do nosso presente. Já se sabe, o Gondomarense é que tem a culpa.
Os maiores



Cada vez que agora ouço a Teresa Salgueiro e os Madredeus, mais enfadado me sinto com aquela voz e com aquela sonoridade. Sonolência soporífera. Parece latido de bâmbi em campo de gelo quebrado, parece uivo de panda em cofre quase furado, parece silvo de pavão em fadário meio apagado. E eu que pensava que o meu cansaço se limitava aos pobres diabinhos barbudos dos Onofres (dizem-me que o José Mário Branco quis ironizar! Pior a emenda que a chatice do soneto, digo eu).
Barnabés Zoológicos



Eu bem sei que não posso dialogar (de modo pouco blogueadoramente correcto) com o Rui Tavares. Os alunos poderiam ler. Mas não consigo deixar de reevocar a máxima do seu post de hoje: “(…) nós também somos, à nossa maneira, guardas do jardim zoológico”. Guardar os bichos para que não fiquemos entregues a eles?
Optimismos

Eu sempre antevi que o Nietzsche & Schopenhauer acabaria por finar-se no ano de 2004.
Salvar a falácia!

Há dias, publiquei um post evocador de uma manifestação realizada em Telavive em prol da paz. Sublinhei o facto com uma imagem que evidenciava, em primeiro plano, um cartaz onde aparecia escrita a palavra “paz”. Como legenda, registei eu na altura: “Esta é a diferença entre Israel e o outro lado”. O que eu fui dizer!
Esclareço, no entanto, os mais apressadamente indignados. Eu não quis, nem podia afirmar que “no outro lado” - seja onde for que se identifique Israel com o diabo - não havia partidários da paz. O que eu quis genuinamente afirmar (não tendo sido compreendido) é que em Israel as diferentes opiniões saem à rua e podem exprimir-se. Goste-se ou não - e eu bem sei que está na moda confundir de modo falacioso Sharon com Israel -, estou certo de que no resto do Médio-Oriente tal não acontece. Infelizmente. Para todos os lados da milenar contenda.

sexta-feira, 21 de maio de 2004

New life

A partir de Junho, estarei a residir bem no centro do centro histórico de Évora e a dar aulas em Lisboa no início das semanas (para além do resto). Vida mais-que-perfeita, braços esticados entre as estrelas, o mar e a terra sem fim. Por isso mesmo, passarei a dar conta, de vez em quando, da vida cá na terra. Alvenarias incandescentes e um ruminar que faz da distância a água mais antiga do olhar. Terra de desejo, acredite-se. Um dia destes, levo a cabo por cá uma reunião de toda a blogosfera. Já agora, destaco entre os muitos blogues locais o da SHE-LAB que é obra da Harmonia Eborense (antiga colectividade de origem maçónica que é hoje um pulmão vital da iniciativa cultural da cidade, cheio de malta jovem e porreira). Muito em breve procederei à afixação do respectivo linque.
Visitas

Visitei o Lembrar e gostei. É bom esta proximidade blogosférica (a minha editora está em crise...). Há cumplicidades que nascem do cheiro da terra. Será isso?
Entre bicharada



Um dia no cromeleque dos Almendres. Chego e vejo um autocarro estacionado, não no parque (muito mal tratado, diga-se), mas quase em cima dos menires. Motor ligado e fumarada a soprar sobre as vetustas pedras cheias de báculos, geometrias oclusas e círculos misteriosos. No meio do cromeleque, a rapaziada (era excursão de estudo de escola secundária) põe-se em cima dos menires e fotografava-se uns aos outros no meio de algazarra sadia. Estavam ali como se se passeassem pelas areias da República Dominicana, destino certo e decisivo que os espera no final da universidade. No meio disto tudo, depois de ter pedido com mil cuidados ao condutor para desligar o motor, perguntei em surdina a quem me acompanhava: onde andará a professora? Ao fim de uns minutos, apareceu a moçoila, sim, a professora, e lá continuou, animada e ululante, a avivar a festa e a responder a perguntas do género: onde é que mijamos, professora? A dita sorria e avisava com tom persuasivo e didáctico: paramos ali em Guadalupe (uma aldeia próxima), sempre é melhor, não acham? Democracia em pleno, assentimento geral, gáudio de um dia feliz. Minutos depois, quando o autocarro levanta um pó dos diabos e desaparece, lá voltei a encarar algum silêncio (cada vez mais, uma sorte e um sortilégio). Imagine-se, agora, que eu me armava em Português Positivo e tentava pôr alguma ordem na nave! Havia de ser bonita a resposta (pedagógica, claro). Imagine-se só. Há dias em que estamos entregues aos bichos, não é?
Não fazia a mínima

Durante a tarde, ouço no rádio do meu carro uma entrevista a Hugo Gonçalves, na Antena 2. Não cheguei a perceber qual era o seu blogue, mas, em alguns minutos, tornou-se claro que não apenas tinha um como se referia à blogosfera com alguma familiaridade. Antes de continuar o meu zapping radiofónico, registei esta máxima dita pelo Hugo: “Creio que na blogosfera há muita gente que escreve porque precisa de atenção”. Contudo, de imediato, logo o Hugo se demarcou do team dos carentes, ao afirmar: “No meu caso não é assim, porque tudo o que escrevo no meu blogue é puramente ficcional”. Conclusão, a teoria dos “simulacros de simulação” do Baudrillard (que até é engraçada) acabava de ser posta em causa. E eu ralado! Fosse como fosse, pela boca do Hugo ficava ali solenemente a saber que continuamos todos ainda a viver num tempo em que o real e a ficção são coisas estanques, separadas e distintas.
E eu que não fazia a mínima ideia que assim fosse!

quinta-feira, 20 de maio de 2004

Dúvida tirada

O Olho do Girino anda muito admirado, por ter sabido que o Fialho Gouveia fumou em directo, na televisão, durante toda a noite, do 24 para o 25 de Abril de 1974. Para responder à sua pergunta, devo testemunhar que, nesse tempo, antes e depois, durante uns bons anos, a malta fumava sempre que nem uns desgraçados e por todo o lado. Era assim. Como a bicharada. Mau hálito, mini-saias, barbudos e umas cabeças cheias de correntes de ar esquerda-direita. Mas não havia preservativos, nem essas coisas do ambiente, ou do politicamente e moralmente correcto. E a guerra-fria era giríssima. Nada havia que tivesse fim nem princípio. Hoje, por fim, regressámos ao presente e ao comedimento. Eu até gosto e sou um optimista (mas filosoficamente céptico). O que eu não gostava, fosse em que tempo fosse, era de trocar a ingenuidade pela estultice. E hoje tenho alunos, em fim de licenciatura (para a frente já menos), cujo grau de infantilização anda perto do oxímoro. A sério. Sinal dos tempos, ou sinal apenas de chuva?
Paternalismos

Essa coisa do “Portugal Positivo” feita para os portugueses aumentarem a auto-estima cheira-me a esturro. Patetices para patetas. Idiotice para idiotas. Paternalismos para catervas. Diz-se no site dos “positivos”:

“(…) afectados e porquê?
Se a auto-estima (ou a sua falta) é um inimigo, então é preciso estudá-lo.
Insistir na maledicência, salientar a desgraça, explorar a dúvida, culpar sempre o outro e lançar a suspeita não pode ser o caminho. A lei implacável do mercado apura a crise: em horário nobre, e com deleite masoquista, a comunicação social repete diariamente um estendal de escândalos e misérias. O vício seduz mais do que a virtude, a culpa atrai mais audiências do que a desculpa, o crime é prime time e a inocência pé-de-página.”


Querem localizar a auto-estima e depois o diagnóstico é estilo bode-expiatório. São os média! São os média! Grita o bardo salvador. Mas não entenderão eles que o fenómeno é global e assenta numa lógica ficcional de meta-ocorrências? Salientar a desgraça? Mas não entenderão eles o que é o fado, o Nobre, o Pascoaes e o miserabilismo indígena impregnado nos ossos e nos aceleradores dos carros a leasing? Enfim, esta malta quer transformar o Pessoa tímido de olhos no chão num menino muito crente de si que sorri por rendenção compassiva e por ausência de ironia compulsiva. Eles, plenos de moralidade, querem um país de patetas alegres, muita positivos e cheios de rosinhas do adro para liofilizar o Santo António. Eles, plenos de doutrina, querem a malta a regredir para o Portugal dos Pequeninos. Eles querem que alguém os mande bugiar.
Embuste - 7

O Bazonga da Kilumba (belo nome de blogue!) entrou na dança da discussão sobre a lusofonia. Transcreveu parte de um dos recentes posts do Miniscente, acrescentou alguns elogios de circunstância (tem sido uma semana de babar) e acabou por sublinhar:

Não, o texto não é irónico. É da autoria do recentemente falecido José Augusto de Médicis, quando exercia o cargo mais elevado da CPLP.

Para que conste.

quarta-feira, 19 de maio de 2004

Espírito de gatilho

A cultura matinal de Fórum, aberto à participação de radiouvintes, apenas demonstra que nem sempre o oposto do anonimato se confunde com um real ímpeto democrático. Hoje, quer na TSF, quer na Antena 1, o tema é Scolari, Baía e etc, etc. Por vezes, para debater esta questão viriática, aparece gente que adorava liquidar, sem suma piedade e com efusão de sangue, o primeiro espectro que contrariasse o desconcerto tribalista das suas afirmações. Anda assim o país. De gatilho em riste.
Gargalhada

O Cruzes anda de braço dado com o anonimato. Perigosas tentações. Se lhe sai a cruz de cima e o canhoto por um dos lados (qual?), ainda envereda decididamente pelo rumo predestinado. E lá se vai o voto. E lá se vai o soldado desconhecido. E lá se vai a possibilidade de dizer que Ceci n´est pas un nom. Mas tão-só um blogue à procura de uma mão amiga. Qual?
Embuste - 6

No quadro da discussão que tem vindo a crescer, publico agora, Via Ma-Schamba, um extracto do artigo “Que agricultura lusófona é esta?” da autoria de Tomás Vieira Mário (publicado no jornal Notícias, Maputo, a 9 Março 2004):

"(…) nas edições de segunda-feira de alguns jornais nacionais vem um texto publicitário anunciando uma reunião que se chama “II Jornadas de Agricultura...Lusófona” (!). De novo, a inevitável pergunta: de que agricultura estarão eles a falar? Que agricultura será essa, denominada “lusófona”? Haverá alguém com paciência suficiente para me explicar o significado de uma tal expressão, mesmo admitindo que seja utilizado em sentido figurado? Que figura pretenderia ela representar?
Pela lógica das coisas, sou induzido a pensar que eles pretendem, nestas jornadas, falar das possibilidades de investimento luso no sector agrícola em Moçambique, já que diz o subtítulo “Moçambique – terra de oportunidades”. Mas e então porque não dizer logo “Jornadas sobre o investimento português no sector agrícola de Moçambique”?
É que, de contrário, a agricultura moçambicana longe ser “lusófona”, seria “bantófona” (...) já que ela é dominada por camponeses moçambicanos locais, na sua quase totalidade, analfabetos da Língua Portuguesa!
A lusofonia – vozes mais autorizadas já o disseram inúmeras vezes, e com maior veemência – corresponde a um quadro socio-linguístico dos portugueses (lusos), do mesmo modo que nós, moçambicanos, pertencemos a um quadro socio-linguístico bantu. Por “camonianos” que pudéssemos ser!
(…) parece simplesmente ridículo, arbitrário e destituído de qualquer sentido (político, histórico, cultural, etc) atribuir denominações do género “Agricultura Lusófona”, para encobrir formatos de estratégias empresariais portuguesas para África! Ainda seria de considerar qualquer coisa como “Agricultura Luso-Moçambicana”, etc.(...)"


Sem mais comentários (ver posts anteriores aqui, aqui, aqui, aqui e aqui)
Olimpianismo

Há um novo termo na língua portuguesa. O seu aparecimento, a meio caminho entre ratio facilis e ratio difficilis, embora mais vizinho deste último (adaptou-se um termo próximo de outro existente para designar o novo conteúdo), mereceu um conjunto de pareceres e de reflexões interessantes e ficou a dever-se ao conceito de “Olympianism” de Kenneth Minogue:

"Olympianism is the project of an intellectual elite that believes that it enjoys superior enlightenment and that its business is to spread this benefit to those living on the lower slopes of human achievement (...) Olympianism burrowed like a paradise into the most powerful institution of the emerging knowledge economy - the university"

A partir de agora, com forte intervenção da blogosfera na iniciativa e na discussão, passamos a dispor de mais este termo, aliás potencialmente operatório para nos podermos referir aos planetas que giram na nossa imaginação. Mas não só.

terça-feira, 18 de maio de 2004

Toma lá esta!

Ó Bruno, nascer nos fundos recônditos do Estado Novo tornou-se num pecado? Se alguém, por educação e necessidade, sonhou com a tua metáfora, tão contingentemente cheia de soberba - tomba-gigantes -, foi essa multidão geracional, hoje decadente e maioritariamente céptica, é certo (não é o meu caso), que nasceu ainda na Idade Simbólica em que a arte não passava de um elementar revestimento. A invenção dos nossos pobres saberes, antropológicos ou semióticos, criações um pouco anteriores ao meu nascimento, talvez te bastem (?) para a elaboração dessas montagens rápidas e apaixonadas onde tudo aparece fixado na proporção mais certinha e organizada. Fica bem. Havia um autor (exterior aos nossos paupérrimos domínios) que dizia que nós, humanos, apenas conseguimos ver o ser da coisa e não a mera coisa, desapossada de acto e seus instrumentos (como vês, a consciência da montagem é anterior a Griffith e aos soviéticos). E para esse mesmo autor, a arte correspondia à capacidade de rever as coisas desnudadas e libertas do ser, reposto este na sua verdade e autonomia próprias. Metafísica a mais, eu sei. Mas é isso que eu vejo num rectângulo de jogo. Nada mais. Coisas desnudadas que emocionam. Que nos radicam no inexplicável. Que nos refluem ao essencial. À abertura. Ao cenário onde cada gigante é já um simples sintoma de morte no vir-a-ser da vida. Há uma intemporalidade, ou uma poética de excesso nesta merda toda que me impede a compreensão dessa tua leitura geracional e indutivamente narrativa. À parte os nossos clubes, claro. Cada um com o que merece. Abraço.
Liras

Já tínhamos o MacGuffin, mas agora temos também o Crónicas da Terra. Para nos surpreendermos com boa música, há que seguir rastos. Sobretudo se forem diferentes e nos abrirem os alvéolos da alma a sensações inesperadas.
Vermelhão plural

Boa, Pedro. Já somos dois, embora, devido a (pequena) diferença de idade, já me tenha envolvido em mais dessas procissões. E com heróis de outro fausto. Podes crer. Seja como for, revejo aqui as tuas palavras:

VERMELHO: Foi a primeira vez que desci a Av. da Liberdade de vermelho, gritando slogans, ao lado das massas populares e cheio de optimismo histórico. Aos trinta e um, dei em vermelho.

Paixões. Vá o diabo entendê-las e a lua traduzi-las no telescópio do nosso amigo Abrupto!
Embuste - 5



Vale a pena ler este texto, da autoria de João Augusto de Médicis (Secretário Executivo da CPLP), e que é parte de um artigo publicado no jornal Minha Pátria é a Língua Portuguesa em 1 de Março de 2003. O extracto escolhido corresponde a um parágrafo onde se tenta traduzir a própria “ideia” de lusofonia. Num primeiro momento, ela adviria do mar e da língua (tal como é denotado na bandeira da CPLP), mas, num segundo momento, passaria a ter proveniência mais elevada, a saber, a “democracia e a liberdade”. Eu diria, no mínimo, que era bom (penso em Angola, mas não só). Trocar desígnios por desejos, eis a raiz de toda a falácia. Leiamos o texto com a devida vénia:

"Todos sabemos que a Língua Portuguesa começou a difundir-se pelo mundo ainda no século XV, em decorrência da expansão marítima de Portugal, empreendimento que constituiu, sem dúvida, uma das grandes sagas da História universal. Não obstante, o que hoje dá à Lusofonia tanto carisma, o que lhe permite firmar-se com a força de quem existe desde sempre, é o fato de surgir como “ideia” a partir da maturidade política e cultural de seus povos e estados membros. A comunidade da Língua Portuguesa é, sobretudo, filha da democracia e da liberdade. Por isso nasce como fraternidade, como união de iguais, como projecto comum."

Sem mais comentários. Espero que o diálogo sobre o tema se prolongue.
(outros posts sobre o tema aqui, aqui, aqui, aqui e aqui)
4 - Embuste: ondas e língua



Num texto algo protocolar, da autoria do Secretariado Executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), eis como se explica a natureza conceptual da bandeira da lusofonia:

“Numa bandeira de 2 m por 1,40 m, a barra tem 5 cm, as letras da sigla têm 10 cm de altura e o logotipo tem 60 cm de diâmetro. A sigla dista 12 cm do logotipo e 21,5 cm da barra inferior do rectângulo. Em relação ao significado do logotipo, este tem uma razão de ser: Tendo o círculo como base geométrica, resolveu-se dividir em sete partes iguais, tantas quantos os países que formam a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Utilizou-se um elemento modular com forma de onda, tendo este a intenção de simbolicamente representar o mar que, antes da língua, foi o elemento primeiro que serviu ao estabelecimento dos laços que unem os países constituintes da Comunidade. No centro desta estrutura colocou-se um círculo concêntrico a esta, representando o elemento de união - a Língua.” ( Secretariado Executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa)

Um significado explicadinho e discernido à milésima, não vá o paternalismo destapar a perna e aceder ao reumático semiótico que dura subterraneamente há séculos. Para disfarçá-lo, surge este paradouro retórico muito light, tentanto de modo humilde sistematizar o óbvio: primeiro eram as ondas e depois veio a língua. Assim mesmo, sem mais intervalos ou cambiantes. Falta a terceira dimensão, aquela que, por solenidade, sucede ao surf e ao verbo. Deixo-a para o post de cima. Prepare-se o leitor, pois aí já se trata da maturidade democrática que é própria de todas as comunidades que se inserem (adverbialmente) na lusofonia.

(outros posts sobre o tema aqui, aqui, aqui e aqui)

segunda-feira, 17 de maio de 2004

Absurdos e cegueiras

Carlos Vale Ferraz: o que faz alguém afirmar uma coisa destas?

“Tendo este terrorismo como causa as causas de todas as guerras ele é, e não passa disso, uma modalidade de acção de uma batalha. Como modalidade de combate é tão legítima como todas as outras.”

Como se a auto-invenção do Ocidente dos últimos duzentos anos (pluralidade, democracia, abertura, responsabilidade individual, civilidade) e os mundos teocráticos, fechados, ditactoriais e a-racionais se pudessem colocar num mesmo plano.
Ou seja, poder-se-á colocar no mesmo baú as guerras religiosas do século XIV, a Guerra da Crimeia, a Segunda Grande Guerra Mundial e a actual guerra global que põe em cena o Ocidente e o novo tipo de hiperterrorismo pós-09/11? (ler, a propósito, um óptimo artigo de Fernando Ilharco no Público de hoje).
É normal que quem pratique um acto o legitime. Quem pratica o hiperterrorismo, legitima-o, naturalmente. Mas deverá o Ocidente legitimar aquilo que é o oposto da essência da sua própria história, abertura e aprendizagem?
Talvez seja esta a pedra de toque - legitimar ou não o que é uma operação terrorista da morte pela morte (encenada, mundializada, massiva e desligada de qualquer sociabilidade) - por que venha a passar, nos próximos anos, aquilo que dantes era o biombo às vezes esquemático que separava esquerdas e direitas. Eu já sei há muito de que lado estou nesta leva da nossa contemporaneidade hipertecnológica: uma espécie de ponte entre aquilo que foi o desígnio galopante da modernidade e um Ainda Não, todo ele enigmático, ao mesmo tempo potencial e rico, quanto globalmente tribalizado e perigoso.
Embuste - 3



Dando continuação ao nosso diálogo com o Ma-Schamba, visitamos hoje a página da WEB designada por Portugal em Linha - Comunidade Lusófona. Ao abri-la há de tudo (gastronomia, conto, ensaio, opinião, classificados, endereços, páginas, ligações, notícias, etc.); basta abrir e ver. Mas sobra a questão: o que é a lufosonia ?
No texto de abertura, as linhas de força são as seguintes:
Em primeiro lugar, um desígnio de reunião: “Vamo-nos conhecer” todos, “vamos” todos ser “compatriotas”.
Em segundo lugar, fica a chamada à desinibição nesta curiosa e inesperada passagem: “se não é Português” (um adjectivo com maiúscula) “não se iniba”. O que quer dizer que, fora do rectângulo luso e ilhas adjacentes, há razoáveis potencialidades de inibição (interpretações históricas, seguramente).
Em terceiro lugar, o derradeiro apelo: se “sente proximidade com a lusofonia” - sem se explicitar do que se trata - entre “em contacto” connosco.
A legitimar o ambicionado contacto, patrocinado pelos enunciadores da página Portugal em Linha - Comunidade Lusófona, surge por fim Camões a mobilizar as hostes. Ora leia-se:

Aqui se inicia a viagem. Vamos conhecer as Comunidades Lusófonas espalhadas pelo Mundo.
Onde estão. Quantos são. O que fazem. O que sentem. Estas páginas são de todos. Estamos todos convidados para o seu desenvolvimento. Vamos todos dar-nos a conhecer e vamos todos ficar a conhecer compatriotas vivendo em locais que não imaginávamos. Vamos fortalecer as nossas relações. Participe. E se não é Português não se iniba. Fala Português, tem curiosidade acerca dos Portugueses e de Portugal ou sente, de algum modo, uma proximidade com a Lusofonia ou é de um país onde se fala Português? Então esperamos por si. Porque, como diz o Poeta: …Que eu canto o peito ilustre lusitano,/ A quem Neptuno e Marte obedeceram;/ Cesse tudo o que a Musa antiga canta,/ Que outro valor mais alto se alevanta.


Um mimo. Como diz o nosso amigo Ma-Schamba, era bom ver esta discussão abrir-se um pouco mais (ver aqui posts anteriores). Creio que se trata de um terreno minado, politicamente incorrecto e pleno de vacuidade. Esvaziado e sem arena consistente que justifique invocações épicas, inexplicáveis tenças e discursos de retórica agravada e sobretudo liofilizada.
(próximos posts: a bandeira da lusofonia e análise de um texto da autoria do Secretário Executivo da CPLP acerca da natureza da lusofonia)

O cantinho glorioso

Parabéns, Benfica! (Só é pena que o motivo destes parabéns não seja uma coisa mais normal)

sábado, 15 de maio de 2004

Hilariante

Por este andar, para a próxima, ainda se candidatam 1000 gajos (os/as) magros ao Nobel da Paz.
Ontem em Telavive


Haaretz

Esta é a diferença entre Israel e o outro lado.
Ganda elogiuuu!

Um novo blogue vindo de Berlim e com o nome do bolo que nos dá de volta o secreto nome da magnífica urbe, o Bola de Berlim, decidiu colocar o Miniscente nos seus linques ("blinks") com a designação "Blog da Inteligência". Pois então, muito obrigado!
Embuste - 2

Diz o Ma-Schamba, em comentário, e com toda a razão:

Concordo. Mas fica ainda para discutir o que é isso da lusofonia. Embuste sim. Mas de que tipo? não só por sua inexistência prática, mas também pelo tipo de conteúdo político/conceptual que deseja integrar e que nada mais é do que um vácuo intelectual escondido sob uma "língua comum que nos une".

É a esse vácuo que me referia no meu post Embuste. Não seria interessante discutir-se esta panaceia, sobre a qual esvoaçam discursos patéticos e miragens de irmandade que toda a gente sabe serem praticamente inexistentes? Foi bom o Ma-Schamba ter pronunciado o seu verbo. A discussão sobre a nudez do rei segue dentro de momentos. Assim espero.

sexta-feira, 14 de maio de 2004

Referências



Durão troca cátedra portuguesa no México por futebol na Alemanha. Não sou dos que se chocam de modo visceral e enervado com a escolha. Era o que mais faltava. Mas a coisa dá para entender a nave em que viajamos. Hoje, o estado é mais permeável e sensível ao colorido ululante e efémero do que à expansão do património cultural português no mundo. Não fico indignado, repito, até porque julgo compreender o que está em causa.
A cultura, o património e outros devires mais ou menos racionais da modernidade já não correspondem ao que sempre foram do final do século XVIII para cá. O futebol e outros fluxos de massa, assentes na simulação de gladiadores, têm-se convertido num negócio magistral e numa aura meio sacralizada que parece cada vez mais subsumir-se àquilo que fez, em tempos, da cultura um substituto da antiga graça divina.
Quando a conversão se alia ao numerário, faz-se luz no Olimpo. Essa é uma lei ancestral.
Durão vai onde vai, questão de referências. E faça muito boa viagem.
Pam Pam


Aadnohr blog

Eis aqui o pior do pior do pior do pensamento binário e esquemático:

Àqueles que por aí vão insinuando que quem criticou Champalimaud nunca pensa e só se limita a repetir a cassete, eu sugiro: e se mudassem a cassete da "cassete"? Vocês é que estão sempre a repetir a mesma cassete.

Vrruuumm: vocês é que, eu é que, vocês é que, eu é que, vocês é que… Aaghghhh!

quinta-feira, 13 de maio de 2004

O embuste

Ninguém em Portugal iria afirmar que a lusofonia é um embuste. Pudor, paternalismo, assimetria de culpas mal repartidas, auto-imagem desfocada, tudo se converte em razão plausível para que uma tal heresia nem possa ser sequer pensada.
Mas a verdade é que a lusofonia é realmente ignorada pela vasta maioria dos habitantes dos países que refere.
Em Portugal, a lusofonia atravessa em boa parte o âmbito de um instituto do estado (o Instituto Camões), cuja natureza, infelizmente, tem sido a da quase perpétua crise, apesar dos vários governos e boas vontades que o têm gerido e dirigido. Para além do esforço do Camões e da proto-imaginária UCCLA, a lusofonia é sobretudo, goste-se ou não, assunto de bolsas e viagens pagas a uns tantos “criadores”. Músicos, escritores, interessados e professores universitários de áreas dessa criação generosa (muitos deles com excelsas intenções e produção respeitável, não é isso que está em causa). Acrescente-se à mansão do pressuposto lusófono alguns entusiastas nos média lusitanos e um número razoável de empatias nas antecâmaras dos países africanos sempre dispostas a avançar para comemorações exaltadas, para evocações inflamadas e para partilhas fictícias de uma história comum, no fundo, no fundo, muito menos desejada do que ficcionalizada (não é menos verdade que a persistente mentira histórica - caso da história judaica portuguesa - convive às mil maravilhas com a instrumentalização do passado ao serviço de algum politicamente correcto do presente).
Por que haverá, de facto, tanto pudor na abordagem deste tema, cujos resultados e obras práticas resvalam o nulo dificilmente igualável em terras de pouco eficácia?
Não se creia que este meu post revele menor simpatia e mesmo admiração pelo grande Brasil ou pelos países africanos que foram Portugal até à Revolução. O que eu viso, essencialmente, é o carácter amorfo, inofensivo, impotente e inadequado das instituições que emprestam visibilidade ao conceito de lusofonia. O que eu viso é o contraste entre a redoma mínima de entusiasmos reais pela lusofonia e a indiferença de facto que me parece, senão generalizada, pelo menos tremendamente dominante. E porque não me apetece ser platónico, devo confessar, em jeito de conclusão, que a lusofonia, sem armadura real e fática que se veja, conceptual ou prática, não passa de um dos maiores embustes que vagueia, hoje em dia, na ficcionalidade portuguesa.
Tirada de príncipe

Um aluno meu, o Tiago Valente, surpreendeu-me anteontem numa aula ao estabelecer a comparação entre o que designou por “alter-ego” e por “alter-lego”. O primeiro, a voz que lhe segreda em tons vigilantes sempre que escreve. O segundo, a extensão das potencialidades e dos mundos possíveis que encontra sempre que escreve.

quarta-feira, 12 de maio de 2004

Devir inquisitorial?

Parece que na Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) há quem tenha caído na velada tentação, ou na longínqua pretensão de abolir a lusa blogosfera. Será verdade? Já há desmentidos. A coisa parece querer aquecer. Nada melhor do que ler a passagem do Expresso On-Line sobre o caso. Há sempre umas miúdas, as jornalistas estagiárias, que pagam por casos destes. Culpas repartidas, ou gatão preto pretão com cauda peluda de fora? Vejamos:

Autoridade quer acabar «blogs»

A Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) pretende acabar com os chamados «blogs», páginas de opinião muito em voga na Internet, alegando que estes sítios são frequentemente utlizados para difamação, afirmou ao EXPRESSO Online Pedro Amorim, especialista em direito para as novas tecnologias da informação.
O jurista falava à saída do seminário «Ciberlaw'2004», organizado pelo Centro Atlântico, que decorreu na terça-feira no Centro Cultural de Belém
«Os blogs estão cada vez mais a ter uma relação com o jornalismo, e prevê-se uma grande tendência para a difamação. O objectivo da ANACOM é acabar com a criação de "blogs" e espero que seja cumprido», disse Pedro Amorim.
Quando questionado acerca dos problemas que marcam a sociedade de informação, Pedro Amorim aponta os direitos de autor como um dos mais preocupantes - «será sempre um dos problemas do mundo digital. Mas isto leva também à tendência da segurança 'versus' liberdade de expressão, que vai ainda pôr em causa este último princípio».
A protecção dos consumidores é outra das preocupações, uma vez que eles «são os mais lesados, por exemplo, numa venda on-line. O consumidor é sempre a parte fraca».
«Devia haver apenas uma entidade para a defesa dos consumidores, contrariamente às "n" que existem», salientou.


Isto só visto! Numa palavra: esperar para crer, ver para entender.
A semana de Rosaura: uma sátira quotidiana

Segunda - Rosaura decide contar para Samuel que uma pessoa a fotografou beijando um desconhecido à força. Samuel desconfia que as fotos foram parar nas mão de Luís Mário.
Terça - Cláudia lê a carta de Anselmo que diz para Rosaura encontrar sua avó e tomar cuidado com Maria Júlia. Imediatamente, ela conta para Dona Cruz o que leu na carta e fica muito feliz com a esperança de que Rosaura seja a neta que Dona Cruz procurava: Gabriela.
Quarta -Eva conta para Eduarda que Rosaura descobriu a verdade sobre o acidente com o cavalo. Luís Mário está decidido a ficar longe de Camélia, mas ela faz de tudo para não perdê-lo.
Quinta - Camélia está decidida a não deixar que Luís Mário a abandone. Seu amante, Patrício telefona para ela e a ameaça caso eles não reatem.
Sexta - Camélia encontra Patrício em uma praia deserta e entrega a pulseira que roubou de Eduarda. Patrício não resiste e a agarra pelas coxas. Ela joga areia nos olhos dele e foge desesperada.
Sábado - Rosaura, Luís Mário, Patrício, Camélia, Eva, Samuel, Maria Júlia, Dona Cruz, Gabriela e a heroína Camélia se suicidam virados para o mar. Se furam com espadas da Wilkinson e o mar vira vermelho vermelhão (toca música da Galo).
O diabo existe



Lá prenderam o diabo do Sasser que tanto nos molestou na passada semana!

terça-feira, 11 de maio de 2004

Favas, memorial e ternura



Escreve-me com imensa ternura a Carla Pais do belo blogue Cenas da Lua. Diz a Carla, minha aluna há uma década, que sou eu o responsável por ela se ter metido nestas andanças da blogosfera. Fico orgulhoso. E abro um sorriso a resvalar para o melancólico que gosta de adular a brincadeira com os seus próprios e recônditos fantasmas. É por isso que cito uma frase que a Carla evoca no seu simpático mail: “O meu nome não é Caramelo. Nem Camelo. É Carmelo", foi assim que começou a primeira aula, já lá vão quase 10 anos”. Tal e qual, Carla. Uma alegria com suma matéria a ilustrar a ritual dança da vida. Era bom que as aulas fossem sempre assim. Para o serem, Carla, nada melhor do que a evocação, essa espécie de mistura entre o desejo que pulula na saudade e a irascibilidade que nos leva a sentir a falta do que já não está aqui. Curioso é também o facto de uma década assumir um perspectivismo muito diferente para quem tem vinte e tal, trinta e tal ou quarenta e tal anos de idade. De resto, por enquanto, nada sei. Mas adoro hortelã na salada que acompanha as favas. A Primavera atrai sabores, saberes e luas.
Responsabilidade individual

Texto excelente de Helder Ferreira no Aviz.

segunda-feira, 10 de maio de 2004

Saudade vs Falta de

O comentário da Charlotte sobre a saudade e a ideia de "falta de" reconduziu-me às reflexões e aos mundos que me acompanharam durante a escrita do meu romance As Saudades do Mundo (1999). Na saudade há um apelo - ou um espaço - que oscila entre a quase rendição e a miragem de redenção, o que possibilita um deambular e uma errância interiores que nos concedem uma certa imagem de controlo do tempo. O passado parece redimido, o futuro aparece com suavidade e o presente torna-se no campo onde frutificam os delírios que advêm do apelo da própria saudade. Já a ideia de "falta de", tal como eu a pensei no meu post da última Terça-feira, é insolvente e essencialmente inapelável. É por isso que eu utilizei o verbo (inventado) "desviver" para a caracterizar. Resumindo: a "falta de" implica uma redução da ficcionalidade dos afectos e não a hipérbole quase delirante que anda sempre de mão dada com a saudade.

sábado, 8 de maio de 2004

Está quase

Deambular obsessivamente por páginas e páginas de livros para ter que chegar a uma escolha final. Questão de compromisso. Tarefa ingrata. Tarefa sempre idiota, a de jurado. Haverá escolha final? Pois aí é que está. Eu acho que não. E, apesar de tudo, vou ter que escolher.

sexta-feira, 7 de maio de 2004

Delírios para um Sábado frio (act.)



Há dias em que aparecem frases espantosas na blogosfera. Hoje é um deles. Vamos por partes. A primeira tirada digna de registo não deve estar dissociada do frágil Maio com que nos temos cruzado. Diz o ilustre J.P. Coutinho:

"Às vezes, e só às vezes, o talento não enfia o carácter pelo cano."

Seja como for, a macieza do tempo não justifica tudo, embora a Charlotte nos confidencie que “a moda de Verão deste ano” vai ser uma coisa “pavorosa”. Nem tão-pouco os elementos justificam as desmesuradas aventuras do talento, aliás tão mal distribuído por arcanjos e mortais. Eis a razão pela qual, como se escreve no Janela Indiscreta:

“Nem tudo é duro no crocodilo.”

Será fábula, porventura.
Com um olhar bem mais pragmático, os nossos amigos benfiquistas, anti-liberais e alentejanos da orla do sul deixaram bem espelhada a voz comum que atravessa a grei anti-americana que anda de bardo em bardo como nunca antes:

“Todos os americanos fazem o mesmo, são todos iguais a Bush.”

Ao lado desta suprema ciência, não podíamos deixar de contornar as imprevistas tentações de um dos mais notáveis e recentes blogueadores da nossa praça:

“Aproveito aliás o momento para contribuir com uma das minhas morenas preferidas, a espanhola Penélope Cruz.”

Salvo seja.
A propósito de inovações na blogosfera, não seria deslocado pôr em evidência uma das fusões mais esperadas pelo mercado nesta semana. Nunca se comprou e vendeu tanto papel, juram os analistas. Em tempos de concentracionismo capitalista é assim. E é o próprio Blogue de Esquerda II quem o afirma (sem qualquer linque), dando conta

“do super-blogue Barnacaldas. Este, já de si o resultado de uma fusão entre dois gigantes do sector – o Barnabé e o Blogue do Caldas”

Para terminar este Sábado de finuras, deixo-vos com o mais sibilino e puro dos delírios. É fechar os olhos e ler, saboreando (nesta altura ainda não se sabia que o Maniche tinha sido apanhado com os copos):

“A juíza do processo Apito Dourado, Ana Cláudia Nogueira proibiu Valentim Loureiro e Pinto de Sousa de falarem com Pinto da Costa.”

E assim se remata a saga. Outra melhor não existiria para ilustrar a semana que acaba de se passar. Suave e conturbadamente (foi o João de Melo quem, um dia, me disse que não há frase digna desse nome sem um bom advérbio de modo? Talvez fosse. Talvez).

P.S. Não podia deixar de acabar com a melhor expressão blogueadora do mês, indo directamente à irónica fonte que se confessa com algum desencanto e nostalgia:
"dantes ainda tínhamos algum fio de back" (!)
Promessa

E quando o apelo assume a forma de incómodo, eu levanto-me e fico à espera dessa palavra. Como se a tivessem prometido. Quando? Quem? Eis duas bases ideais para encetar uma breve história com vários inícios e sem qualquer fim. Como deve ser.
A fixação do eu

E no momento em que volto a desafiar a voz (é preciso dizer, pronunciar, soletrar), ela surge-me tão estranha que parece ter sido registada num desses gravadores em que as bobinas arrastavam fitas morosas em tardes nevoentas de spleen marítimo.
Alandroal

A três de Julho há um encontro de blogues no Alandroal. Era simpático uma grande concentração de blogueadores muita urbanos, cheios de lincagem, gana e de tricas afogueadas em terras do subterrâneo deus Endovélico! Não era?


pela minha parte, vou tentar ir.

quinta-feira, 6 de maio de 2004

Pão de ló e balas de seda


exemplar peculiar de cerâmica do Marajó (Brasil)

Lembro-me de a Natália dizer que o problema da Agustina era não ter um belo sexo de homem (as palavras eram outras). Hoje há certos blogues que gostariam de ter tido, um dia, uma revolução entre mãos. Mas nunca tiveram! E por isso falam de rajada, binariamente, como se o ressentimento que não podem sentir fosse uma ausência forçada, uma entrada vedada, ou um pudor à procura de sentido. Faz dó. A inversa (a da contra-revolução) também é amiúde verdadeira.
Trópicos

E daqui (terra natal do Chiado) envio um beijinho à carioca Isabel Guimarães que, ao tirar os óculos, logo pressentiu sua nova visão desnudada: "além de desvelar a beleza de tudo, essa luz maravilhosa seca o mofo da alma."
É assim a blusosfera (gostam da palavra?)
Judicativa

Escolher um livro entre dez é tão penoso como descobrir uma folha de rosa numa roseira.
Fragrâncias

Ainda não tenho o meu computador de volta. Danos colaterais, dir-se-ia. O que me tem prejudicado, nas mais várias direcções, esta ausência! Reentrei em Évora e, da autoestrada às estradas, lado a lado, passo a passo, apenas vislumbro um intensíssimo mar de flores.

quarta-feira, 5 de maio de 2004

À cabeçada

A reflexão é uma resposta involuntária que se dá a um aumento, às vezes invisível, da pulsação. O cinema não reflecte, mas põe em marcha, por projecção, o contraste luz - sombra. De onde tudo emerge. Até a dor de cabeça que neste momento me aterra.
À Méliès

Uma nuvem, não mais que isso, pode ser fundamental para tudo o que se vai passar - e passou - num dia como este. Quando acabar esta espionagem blogueadora, voltarei a subir ao Chiado e vou transformar-me num candeeiro. C´est tout.
À coelho

Deixei de fumar a 27/3/1997 e não custou nada. Fui à boleia de uma gripe ligeira e não tive que apertar os dentes na descida.
À Sá Carneiro

Se calhar, vai ser assim: espero que faça um ano de idade (13/7) e, nessa altura, acabo com o Miniscente. Vou pensar.
Compasso

Chuva. Tempo regressivo. Viagem sob cores densas, pesadas, desprovidas de avidez. Tempo ermo. Chuva. Novembro em Maio, meias espessas, blusa de malha, casaco apertado, desconforto. Um dia, hei-de trocar o teclado pela auscultação dos rosmaninhos.

terça-feira, 4 de maio de 2004

Mar e mar!

É verdade, eu gosto de olhar para a fotogenia do Índico!
A frase do milénio

"Um dia a mais antiga categoria de honra do Sport Lisboa (1904-1905) fez ascender um sol intenso e alado".
Estou por dentro.
Ímpio

Peço desculpa: eu não sou grande admirador!
Clamor

Diz o nosso Avatar, depois de assinalar seculares contrastes com a quadriculada terra de Vermeer:

"(...) é muito normal um casal de namorados nos 20 e muitos, que toda a gente "sabe" que começou a vida sexual há muito, ter que dormir em quartos separados quando são acolhidos em casa dos pais de um deles."

A sério? Isso acontece ainda? É experiência vivida e revisitadamente redundante?
Eu não ando, de facto, a respirar neste mundo.
Ciência pura

Querem saber o que é a desconstrução?
Eu preferia que fosse um simples blogue.
Bato no fundo

Após a actualização dos comentários dos últimos dias, fiquei a saber pelo Daniel Oliveira que, "às vezes, não é sobre" mim "que se está a falar. Mas só às vezes". Fico triste, pois pensava realmente que todos os discursos do planeta se referiam à minha pessoa. Tarde de irrevogável down. Náusea indistinta. Abismo longilíneo! Quase entendo o que significa soletrar baixinho o nome de Soares dos Passos.
Sentir a falta?

Lembro-me do tempo em que sentíamos a falta da televisão. Bastava uma ida à praia, quando eu ainda era um jovem a medir forças com o mundo. Dava-se então pela falta de um complemento imaginativo, de uma companhia informe, ou de um certo sentido de completude. Não era trágico e tinha o sabor da melancolia que se misturava com o revigorar de um bem estar ainda não completamente perdido.
Hoje, vivemos no tempo em que não se sente a falta. Isto é, se acaso nos escapam os computadores, o telemóvel e o fluxo das imagens posto à nossa disposição (não chamemos já a isso televisão ou telefonia), o que se passa é que ficamos desvividos.
Já não se trata de sentirmos a falta de, ou de tão-só navegarmos numa melancolia indecifrável. Agora trata-se de uma amputação, de uma redução do ser, ou de um desaparecer radicalmente carregado de indiferença.
Blogueadores anónimos

A virose entrou em força nos computadores da minha casa, incluindo o portátil. Só na Quinta terei o material a funcionar em pleno. Volto agora a nadar na blogosfera três dias depois das ocorrências negras e faço-o num ciberlugar anónimo, algures em Lisboa. Boa tarde, blogueadores!

sábado, 1 de maio de 2004

Nexos

Quando vou abrir a porta do carro, parte-se a chave e metade fica lá dentro. Quando chego a casa, o meu computador principal pifa de modo fulminante.
Acho que hoje me vou limitar a contar o número de ramos do limoeiro do quintal.
Agenda europeia: alguns sinais



Hoje o que vai estar na agenda é o alargamento europeu. Nos próximos dias, vamos assistir a um fluxo obsessivo acerca deste tema. Pelo globário fora, incluindo no nosso liliputiano aquário luso, todos os chips se preparam para enunciar (pela imagem, pela voz e pela letra) a mesma realidade. A mesma meta-realidade. Aquilo que, na actualidade, se designa por jornalismo é um ofício que se subsume ao fluxo e que, por isso mesmo, não tem qualquer rosto (fotografia sem fotogenia). Seja como for, antes de me silenciar face à voragem da homogeneidade discursiva, deixo aqui algumas reflexões.



Em primeiro lugar, acho que o colonialismo soviético, o pós-Segunda Grande Guerra Mundial, i.e., a longa ressaca da Guerra-fria e um mar de memórias intransigentes e anti-democráticas chegam hoje ao fim. Pelo menos simbolicamente. Para trás fica a longa herança de uma tragédia. Das maiores do século XX. E fica para trás sem que se tenha desvendado o seu real alcance (poder-se-iam apurar algumas responsabilidades para tal). Pergunto: a Europa de hoje à noite é, ainda que muito parcialmente, aquela que foi sonhada por kant na sua (hoje) removida Konisberg?



Em segundo lugar, o que já se sabe. Os novos países têm quase todos uma média de 80% dos cidadãos com o ensino secundário completo (a nossa média nem atinge os 20%); os novos países têm um PIB por habitante bastante inferior ao nosso (com excepção de Chipre, Estónia, República Checa e Eslovénia que andam lá perto); e todos estes países têm uma mão-de-obra baratíssima ao pé da portuguesa. Junte-se a este factos a recolocação das topografias, dos centros e das periferias do novo continente europeu. A conclusão é só uma: acabou-se a papa doce que reinava desde 1986. Mais: nos próximos decénios, a competitividade fará de nós - ou não - aquele país que nunca chegámos a ser após o culminar do Século de Ouro, após vaga de ouro brasileiro ou após a Regeneração oitocentista. Será que é desta que transformamos um clímax histórico em duração, ou repetiremos, mais uma vez, a nossa linha oscilante e fatalista que une alguns pontos altos e casuísticos às imparáveis e duradouras caídas? (Ah Portugal, tanto do teu fado que ilumina a vaga, a vaga ainda chã que o quebranto fez alta!)



Em terceiro lugar, a oportunidade. Passados os impérios escatológicos e ideológicos, a Europa sorri agora sem vergonha desde o vento do Báltico até ao coração de Malta, desde a fronteira ucraniana até à finisterra que é nossa e é irlandesa. A Europa herda um continente de travessias, uma face defensiva e misantropa, mas também uma face capaz de entender a dimensão global e democrática do Ocidente. A Europa herda a dimensão plural que habita as suas fronteiras internas, sejam elas étnicas, religiosas ou culturais, mas também o seu lado temerário ou ousado. Porque é necessário e essencial entender o mundo após-09/11.
Europa, terra para a redescoberta, terra para a oportunidade. É esse o seu único caminho de futuro: superar-se, aliar-se ao flanco democrático global, cimentar o seu corpo variado, abrir-se e repensar com leveza o peso que a faz ser, ela mesma, Europa. Filão capital da liberdade.