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Na caixa de comentários de “
O ‘tom’ dos blogues – 30”, Sarah Brasseur do
Flor de estufa fazia eco de um aspecto importante da blogosfera: como é que o 'autor – enunciador - editor' encara o seu blogue? A “sério”, como uma inevitabilidade lúdica, como um "brinquedo" (a expressão é da Carla do
Bomba Inteligente), como uma companhia, como uma fábrica expressiva, como um conclave de desabafos, ou como o quê? A resposta - sempre incerta - a estas perguntas denota desde logo o leque de novidades com que o novo meio cerca o
blogger, perante a sua ilusória e quase ilimitada liberdade.
É um tipo de pergunta que esteve provavelmente mais em voga nos idos de 2003, quando entre a emergência da blogosfera e a reflexão sobre o fenómeno ainda havia um certo e compreensível pudor. Geralmente, a seguir às revelações foi preciso deixar passar alguns séculos até que a teologia aparecesse (neste caso, Santo Agostinho está para o Cristianismo como o
Mu´tazilismo e o Kalâm estão para o Islão). Acontece que na blogosfera, um século é um ano. E é por essa razão que hoje se pode dizer que já lá vai o tempo em que o
metabloguismo era visto como um excesso.
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Nos tempos iniciais da blogosfera, a impressão de imediatismo na autoria e edição já se confundia com aquilo que era a difícil arrumação da linguagem no novo meio (assim como o que ela podia vir, ou não, a dizer). O “tom” já andava por aí, embora algo informe. A ideia de “impetuosidade” traduzia muito bem, à época, no
Glória fácil, este súbito encantamento de partilhas:
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"Metabloguismo/ O blogue é para impetuosos: os que abrem isto e, num instante, despacham uma ideia com as vírgulas no sítio. Os outros estão condenados ou a deixar-se ir pelos seus raros ímpetos (e a escrever pouco) ou a dedicarem-se à patética figura de "treinar" postes: espera aí meia-hora que eu tenho de apurar um "post". Acho que não consigo escrever mais por isto."
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O metabloguismo também aparecia na altura entendido como uma forma de contornar e objectivar a súbita “vertigem” da comunicação entre novos autores. Esta metáfora – a “vertigem” - é recorrente ainda hoje e traduzia, como ainda traduz, a matéria de que é feita o novo meio (geralmente esta matéria confunde-se mais com a celeridade do processamento e menos com o impacto de conteúdo que imprime – a
perlocução):
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"Discutir devagar/Os blogues, apesar de não terem aparentes constrangimentos físicos à publicação de textos longos, não "aguentam" textos longos, por razões certamente complexas (como a leitura em hiper-texto e a leitura em formato-écrã, associadas, claro, à eventual falta de interesse dos textos). Para contrariar isso, devemos pedir ao leitor que nos leia devagar, que imprima o que escrevemos - o que fica sempre mal à modéstia que se exige a quem escreve -, que continue a ler noutra janela. Mas nada disto funciona muito, porque é a própria escrita que tem um ritmo vertiginoso, casando-se bem com posts curtos, convidando também a uma leitura vertiginosa. Ora, a vertigem é inimiga da calma exigida à reflexão e ao aprofundamento de uma ideia, ao tempo necessário para assimilar ideias ou imagens complexas. Os textos longos, os livros, são uma forma de recuo em relação ao imediato, e esse recuo exige tempo. Daí também tanta necessidade regular de metabloguismo."
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O início da blogosfera denotou ainda algumas marcas de pureza que prenunciavam claramente a actual procura do "tom", i.e., a pesquisa de uma expressão que se optimizasse na esquadria proposta pelos vários ‘hosts’ de blogues. O
Francisco do Aviz explicava o seu aparecimento na blogosfera “para ver se era possível dizer alguma coisa”. Depois, percorridos os primeiros tempos, tudo “acabou por” (o sentido dedutivo é interessante pois pressupõe uma experiência de facto pioneira em que tudo podia ter acontecido) encontrar sentido através de uma estrutura previamente conhecida: o “diário”. A linguagem acomodava-se assim ao novo meio que era também desenhado como “intimista”. Leia-se o
post em causa:
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O que falta à blogosfera/ “Comecei o Aviz como toda a gente: para experimentar e para ver se era possível dizer alguma coisa. Acabou por ser um diário com poucas interrupções; nunca medi audiências e o assunto pouco me interessa; tem uma circulação que desconheço (uso o netcode.pt para fazer rastreio de «referências» e não para contar visitas); é «intimista» quando me apetece, confessional quando preciso, irritado quando acontece. Ainda no meu caso — o que é estritamente pessoal, portanto, oscilando nesta fronteira do semi-público — nem sequer o faço para escrever sobre coisas «que não cabem noutro lugar» ou para «fazer exercício». Faço-o enquanto houver blogosfera, e mais nada — e enquanto tiver tempo ou precisar de escrever sobre o que me apetecer, sem agenda, sem alguém a pedir-me satisfações.”
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Por vezes, a dificuldade em aceitar a ‘teologia’ face à ‘revelação’, colocava em evidência o “narcisismo”, como se ele fosse a principal ilação deste confronto entre o submergir do novo meio e
um discurso que evitasse o inevitável encadeamento especular:
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“Em 1999 a Fundação Gulbenkian organizou uma exposição com os auto-retratos da sua colecção. Ontem encontrei por acaso o catálogo dessa exposição. Lembrei-me então de quando a visitei e das deambulações teóricas que nessa altura uma guia da exposição fez a propósito de um pintor – Gaetan – que só pintava auto-retratos. O Narcisismo era o ingrediente, tal como agora o vai ser, dada a importância dessa substância no nosso metabloguismo.”
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Três anos depois, apesar de tudo, o blogger ainda hesita no modo como deve (ou não) encarar e articular-se com o seu blogue. As perguntas permanecem irrespondíveis e não encaixam em nenhuma das respostas tradicionais, apesar da indivuação clara que invadiu a blogosfera (nem naquelas respostas que subsumiam o papel do autor a mecanismos formais, nem nas respostas que evidenciavam a subjectividade como uma mancha quase já diluída na conectividade da rede).
Nada melhor do que alguns bons exemplos.
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1-
Paulo Gorjão reata em
post recente, ainda que involuntariamente, um conhecido subtexto literário (“Um
Blogger apresenta-se”) com um acrescido interesse: a curiosidade dos interactores. A tentação não é imune a alguma hesitação e chega mesmo a evocar os “leitores” (que “acabam por ter alguma curiosidade sobre como será a pessoa por detrás do blogue.”), contrastando assim em absoluto com o que significava, há uns séculos, a palavra ‘
curiositas’ (sobretudo heresia). Veja-se e leia-se, já que a interessante apropriação das linguagens e meios presentes fala por si própria:
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“E por falar em media/...tive a oportunidade de exibir a minha gravata preferida no jornal da meia-noite da SIC NOTÍCIAS, de quinta para sexta-feira. Apesar das notórias entradas, devo dizer que a imagem me favorece, uma vez que não se vê a careca. Note-se que ainda por cima tive o cuidado de voltar a fazer a barba...
Enfim, esta conversa serve apenas de pretexto para colocar aqui a minha fotografia, uma vez que sei pelos emails que recebo que os leitores -- alguns, pelo menos -- acabam por ter alguma curiosidade sobre como será a pessoa por detrás do blogue.”
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2-A consciência da individuação não é ainda, nos nossos dias, uma coisa muito clara. Mas a lógica de uma procura – ou e uma pesquisa - não parece entregar-se a juízos alheios. Em três anos, apesar de tudo, a névoa desceu e alguns contornos da hesitação expressiva tornaram-se mais límpidos. Existe, de facto, um novíssimo “Eu” em cena a contracenar com o globo e com a solidão. Fritz Lang
teria apreciado a encenação simples mas operática:
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“Metabloguismo/ Há blogues sobre eu e o mundo e blogues sobre o mundo e eu. Prefiro os primeiros. Eu à procura do mundo.”
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3-Por fim, como se fosse um renovado clímax da hesitação, há momentos em que as perguntas de fundo ainda se continuam a propagar: O que move os blogues? Qual o movente? Os detalhes confessam-nos, muitas vezes, que a individuação é capilar e que, por isso mesmo, se move de forma autónoma como se existisse um algorritmo que a pusesse em marcha sem qualquer
determinação a priori:
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“Os interesses/ Agora que o registo de interesses está na moda, seria curioso que os bloggers também os declarassem. Interesses, no caso, não tem nada a ver com o dinheiro que têm, que querem ter, as relações que cultivam, ou até os prazeres que perseguem. Não, nada disso. Algo de muito mais concreto, mais rasteiro - seria bom que muitos bloggers dizessem claramente o que os move. Eu sei que é difícil, mesmo nos casos em que está na cara, é difícil reconhecermos em público as pequenitas deficiências de carácter, de lógica, de pensamento, apenas por um conjuntozito de ódios ou, ao invés, de aspirações na vida. Pois...”
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Uma outra forma de colocar em evidência as chamadas perguntas de fundo é reenviá-las
a posteriori com toda a simplicidade (uma coisa dada, mesmo se incómoda, está lá: deixemo-la!). No final do primeiro
post onde evocava o Grande Prémio da APE-2005 que acabara de vencer, o
Francisco da Origem das Espécies (os autores vão-se adaptando às marcas) rematava dando corpo a esse espírito parcimonioso:
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“Também é verdade que foi o livro que mais gostei de escrever. Diria muito mais coisas, mas não estamos aqui para isso, pois não?”
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O “topic”, a “aboutness”, aquilo de que se fala – ou de que não se fala - continua tão resolvido como por aclarar. Vantagem nossa (a primeira pessoa do plural é própria de uma comunidade). A expressão não é, pois, apenas o acomodar da linguagem no novo meio; é também o modo como ela se transforma à medida que o meio se torna cada vez mais povoado e gregário. Daí que o modo como o 'autor – enunciador - editor' encara o seu blogue dependa muito mais da zona de impacto das interacções do que de meia-dúzia de certezas provisórias (a provisoriedade no metabloguismo de rede é inversamente proporcional ao excurso da teologia).