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sexta-feira, 9 de junho de 2006

O “tom” dos blogues – 29


("Ruínas Fingidas", Évora, Cinatti, 1865)
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É conhecida a tradição romântica que endeusou a obra não acabada. A paixão pelas ruínas forjadas fez escola em autores conhecidos e anónimos. William Gilpin (1724-1804), amante da poética das ruínas, chegou um dia a propor a destruição parcial de algumas villas de Palladio para que o gozo do “laconismo do génio” se tornasse possível. No jardim público oitocentista de Évora, um painel de “ruínas fingidas” – são ainda hoje assim designadas – encena com toda a intencionalidade o que restou da demolição do antigo Palácio Real. No final do século XVIII, o círculo dos românticos de Jena, nomeadamente Schlegel e Novalis, também não esconderam a paixão por uma estética do inacabado. Este último poeta traduziu o encanto pelo escorço segundo a fórmula: ‘devolver ao finito uma aparência infinita’. A própria ideia de fragmento, que entrou nos hábitos poéticos a seguir a Mallarmé, passou a remeter, tal como as ruínas, quer para o poema absoluto e acabado (nunca presente) quer para a sua negação.
Em todos estes casos de admiração pelo não acabado, pelo informe e pelo puro fragmento está em causa aquilo que, de modos muito diversos, Freud e Agamben designaram por fetichismo. Ou seja, a substituição de um todo (de um corpo) por algo que o representa com o intuito de simultaneamente o tornar presente e o ofuscar. Declinar o todo e, ao mesmo tempo, torná-lo presente parece uma operação complexa, mas não é. Faz parte integrante do modo como representamos o que desejamos (a fotografia na carteira), o que estimamos e o que coleccionamos (a série aqui dispensa exemplificações). Faz ainda parte do modo como comunicamos (a parte pelo todo – a sinédoque - ou a contíguidade entre termos – a metonímia - são tropos habituais que reflectem o fetichismo). Conseguir que o prazer navegue nestas águas agitadas que unem atracção e aparente desinteresse é, pois, um desígnio estético, sexual, mundano e comunicativo. O fetichismo faz assim parte da fantasia com que se imagina um vaivém regular entre um objecto que se visa e um (efabulado e bem tratado) objecto interposto que o prefigura.
Nos blogues este desígnio fetichista ocupa um espaço significativo da atitude expressiva. Para tal conta o modo como um post desafia os limites (só há limites quando se pensa um todo), como se articula com o tempo (de leitura e de processamento) e como se transforma em mero ritmo de escrita (uma simples palpitação que se contrapõe à natureza tradicional e compósita do objecto livro). Vejamos ponto por ponto:
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a) Cada post tende para variadíssimos textos que nunca constrói integralmente. A geometria do registo blogosférico prefere arrumar-se no fragmento onde não existe um limite claro a que tenha que submeter-se. O post é sempre um segmento que recusou a arquitectura, mas que, ao mesmo tempo, a transformou parodicamente em leve ‘storyboard’. O post é livre e anda à deriva entre várias possibilidades que se imaginarão. Está muito para além da “obra aberta”, porque aquilo que o anima não é a dedução de várias finalidades possíveis por parte de um intérprete, mas sim a pura propagação na rede: dá-se a ver e logo desaparece. Reaparece, dissimula e logo aparece removido. A memória de um post confunde-se sobretudo com a simbólica de um ‘metabolismo inacabado’.
b) A sugestão e a ilusão do inacabado prendem-se também com o tempo. Mesmo as mais clássicas das obras inacabadas (seja o - tríptico cinematográfico - ‘Napoléon’ de Gance, seja a ‘Sagrada Família’ de Gaudi) não dispõem de um tempo que seja efectivamente o ‘seu tempo’. Nos posts, esta suspensão adquire recortes muito mais voláteis, na medida em que o ‘tempo real’ nunca chega a ser o tempo da edição: já passou, já refluiu – sempre - na direcção da reciclagem do olhar. É por isso que a leitura de um blogue se assume de forma oblíqua, descendente e anagramática: o olhar salta, ilude-se e sobretudo fantasia. O olhar desbrava hiatos de escrita e hiatos de não-escrita. Quando o utilizador clica e se retira, fica apenas um ritmo, um cromatismo, um ambiente, uma batida, um DJ em frenética actividade num espaço não sonoro. O tempo de um blogue não é nunca – radicalmente – o ‘seu tempo’.
c) A obsessão (a euforia) que liga o blogger ao blogue nada tem a ver com a pulsão que religava o escritor tradicional ao seu almejado e perseguido objecto: o livro. Este último apareceu sempre como a meta de um processo mais ou menos estável que se ia testemunhando, passo a passo, rescrita a rescrita, de acordo com as metáfora da incubação e da gestação. Curiosamente, alguma tradição literária (e não só, veja-se o caso de Artaud) sempre adorou associar este processo a uma “dor” e a um “sofrimento” terríveis, em analogia com ideia de parto (o livro era, nesta simbólica, o verdadeiro “filho” do escritor). Nos blogues, este tipo de completude quase biológica é substituída pelo mais elementar pulsar. E cada pulsação é uma vida, um texto ou uma mera silhueta que propende para a anamorfose logo que se expande em demasia. As expressões na blogosfera – à procura de si próprias - preferem ceder ao instante, ao ‘zapping’ do corpo, ao ‘copy paste’ que se extingue enquanto se gera. Ao contrário do ‘sofrimento criativo’ moderno, a anestesia blogosférica é vitalícia (a simulação será idêntica nos ‘cyborgs’) e advém do sobrevir, do design efémero e da nova ‘imortalidade da alma’ (ou o curso aleatório, dir-se-ia perpétuo, que os ‘bits’ incessantemente percorrem).