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terça-feira, 27 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 44

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Uns dias após o Natal de 1919, Marcel Duchamp comprou numa farmácia de Le Havre um frasco de vidro. Com a cumplicidade do farmacêutico, desfez-se do líquido que o frasco continha e voltou a fechá-lo hermeticamente. Uma semana mais tarde, já em Nova Iorque, Marcel Duchamp deu a “obra de arte” à família que o alojou e baptizou-a com o singelo nome de “Ar de Paris”. Quando, vinte anos depois, este mesmo frasco - já então parte da Colecção Arensberg - foi aberto de forma involuntária, outro destino não o aguardava senão atravessar o Atlântico para receber em Le Havre - e na mesma farmácia - um novo ar e uma nova tampa. Claro que o nome da “obra de arte” se manteve incólume: “Ar de Paris”.
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Agora que se reatou o tema dos predecessores dos blogues (ou da retrodicção criada pela blogosfera), este exemplo evocado por Sloterdijk num recente livro sobre o terrorismo*, aproxima-nos doutra dimensão actual dos blogues que não deixa igualmente de ter os seus óbvios antecessores. No exemplo, à parte a consideração artística, canonizada e ‘datada’ do ready-made, o interessante é que o facto de nomear prevalece - sem quaisquer ironias - sobre a força do verosímil (de tal modo que uma falha na encenação plástica da “obra” obrigá-la-ia a atravessar o Atlântico, no delicado ano de 1939, apenas para se encher de “ar de Paris”… em Le Havre), independentemente da relativa virtualização atribuída ao “ar”, ao objecto e à locução.
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De facto, quando Duchamp se entendeu com o farmacêutico de Le Havre, naquele dia 27 de Dezembro de 1919, o frasco subitamente tornou-se num objecto com uma nova significação. O mesmo se poderá dizer da imaginação associada ao “ar” nele contido e ao jogo de linguagem que passou a denotá-lo e a conotá-lo (“Ar de Paris”). De certo modo, transpondo esta metamorfose significativa para a arena dos nossos dias, poder-se-ia dizer que o frasco passou a metaforizar uma espécie de hardware, que o ar teria passado a metaforizar o que geralmente se traduz por ‘éter da rede’ (a imaterialidade dos novos circuitos) e que as designações - “Paris”, “ar”, “de” – teriam passado a metaforizar as linguagens que ciclopicamente a atravessam.
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Levando mais longe este paralelismo, de que Marcel Duchamp podia ser o epónimo: ao blogar, em plena cibernavegação, mais não se faz do que sucessivamente retirar e fixar a tampa ao paródico frasco de Marcel Duchamp. O ar desse frasco ter-se-ia generalizado, dando origem a numa novíssima atmosfera que já não habita nem dentro nem fora do frasco, que já não é nem imaginária nem real, e que já não é nem relíquia estética nem obra incomum (dir-se-á que se passou a confundir com o próprio espaço da rede – essa informe globário de ‘hosts’ e ‘routers’ feericamente ligados entre si).
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A atitude performativa de Marcel Duchamp já semeava este propósito vivido hoje em dia na blogosfera: designar, dizer, referir ou preencher o espaço do ‘post’, em primeiro lugar, e ancorá-lo a um dado verosímil apenas depois. Não é, com efeito, a relação ‘verdade-não verdade’ que persegue o actual fascínio da leitura e da escrita na blogosfera, mas sim o ímpeto e o contraste entre os sentidos que vão sendo criados. Numa esfera profundamente auto-referencial onde os contextos são rápidos e estão imersos na enunciação ‘post a post’, aquilo que, no tempo de Marcel Duchamp, foi um gesto “criativo” e singular é hoje um dado pragmático, ou um elementar denominador comum da novíssima navegação.