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No final da exultante entrevista do académico galego Carlos Oliveira ao filósofo Peter Sloterdijk (que deu origem ao Ensaio sobre a Intoxicação Voluntária, 1999), este último afirmava sem quaisquer reticências: “A escrita é a mais admirável descoberta da história da humanidade – também a que temos menos compreendida, e a mais perigosa. Só há muito pouco se lhe juntou algo mais perigoso ainda: os efeitos radiotelepáticos (…)”. A explicação, depois, não deixa de ser cativante. Sloterdijk separa nas escritas “à distância” duas formas: a telemática, esse “misterioso fluxo que faz passar um quantum de poder daqui até ao ponto distante, onde age” e a telepática, ou seja, o próprio “transporte de signos”.
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Sendo franco, deve dizer-se que o termo “telemática” foi criado por Alain Minc em 1978 (a partir de “telecomunicação” + “informática”) num artigo sobre a “informatização da sociedade” e corresponde hoje, reportando-me à autora contemporânea Cláudia Giannetti, a um campo do saber que investiga a dissociação entre o corpo e a informação. O espaço telemático é assim encarado, nesta acepção como na de Sloterdijk, como uma rede em constante mobilidade que permite visionar a ideia de televiagem e – tal como sustenta Giannetti – a “transladação imaterial para qualquer sítio em tempo real”. Não seria tão utópico (para utilizar um termo marcadamente clássico) e entenderia a dimensão telemática como a própria entidade global composta em rede por ‘hosts’ e ‘routers’ que vive e se expande a partir de uma miríade permanente de interacções locais. A forma telemática condensa assim o circuito que se regenera e metamorfoseia ‘em tempo real’ e que assegura a passagem quase ilimitada de ‘bits’.
Já a dimensão telepática alia conteúdos, ou “efeitos páticos” (mais concretamente: a emissão de ‘formas de conteúdo’ que, tal como na sedução, produzem efeitos nem sempre determinados), ao pressuposto da distância (tele). Este aspecto telepático - que tem a ver com o ‘topic’ das mensagens e com o que se diz e mostra – está hoje em dia a ser muitíssimo subalternizado, segundo Sloterdijk, face à euforia extrema com que a novidade telemática é encarada. Sobretudo porque estaria por estudar o impacto dos conteúdos (a perlocução) em regiões de distância indeterminada.
Como se o que realmente contasse fosse o novo mecanismo, o novo esteio polimórfico de vias, os novos circuitos policentrados: a rede, numa palavra. E como se o que menos realmente contasse fosse aquilo que ‘se vê’, que ‘está lá’ e que ‘passa’ através das mensagens (os conteúdos). No fundo, esta supremacia do telemático sobre o telepático colocaria em evidência a mera sequência discreta de figuras que repete a sua permanente descontextualização, independentemente das consequências daquilo que se mostra e que se diz (a violência, por exemplo).
Para esta tremenda pressão do telemático sobre o telepático existiriam, segundo Sloterdijk, variadíssimas explicações embora todas elas se pudessem resumir numa única: a era “pós-analítica” teria entrado definitivamente em cena, o que quer dizer que o olhar que antes falava de signos se teria transformado subitamente num olhar que se limita a falar dos canais por onde viajam os signos. Deste modo, os signos teriam descoberto a sua quase invisibilidade face ao tempestuoso império dos circuitos.
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A visão de Sloterdijk é interessante, mas desliga excessiva e mecanicamente as operações que decorrem dos usos comunicacionais (quer do uso rede, quer do uso do material que designa por “pático”, ou seja, da ordem dos conteúdos). Ao fim e ao cabo, o uso pode confundir-se com o próprio uso da rede, do mesmo modo que o contínuo processo de criação de significado se pode confundir com o uso de cada signo: um signo é sobretudo um modo momentâneo de apropriação de uma dada linguagem e de um conjunto de codificações que se segmentam. Já lá vai o tempo em que a arquitectura dos signos era estática, monolítica e não entendia, na sua nevoenta ‘estrutura’, a mobilidade e o eclectismo plural dos seus termos (subdivindo-se, quase sempre, em termos binários e estanques).
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Se olharmos com autenticidade empírica para o trabalho diário na (e com a) rede, toda a análise de Sloterdijk se podia inverter, já que é a própria realidade tensional entre telemático e telepático que nos deverá fazer pensar nos novos modelos semióticos e comunicacionais do presente e não o contrário (sendo que o contrário tem a sua origem, quase sempre, num juízo que localiza a priori um incómodo). Isto é: interessará sempre mais o dado e tudo o que ele (teoricamente) suscita, do que a perversão de uma realidade não desejada que é, afinal, movida pela própria alteração incessante de dados reais.
Por outras palavras ainda: tradicionalmente, o telepático correspondeu àquilo que a mente sempre processou, apesar dos meios que tal processamento implicava. Na contemponareidade, os ‘meios’ (o telemático) e o que ‘se diz’ (o telepático) há muito que se subsumem mutuamente. Esta avassaladora e híbrida ‘integração’ é, aliás, muito semelhante à que se processa, a todo o momento, a nível neural: as mil biliões de conexões interneuronais criadas por fibras conectoras (entre células e neurónios) são de facto indissociáveis daquilo que ‘dizem’ as imagens da nossa mente (e que fazem aparecer - utilizando a terminologia de A. Damásio - o “proto-si”, a “consciência nuclear” e esse “grande-filme-do-cérebro” que dá pelo nome de “consciência alargada”).
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Estes factos têm igualmente impacto nos blogues, essa parte da rede que amalgama discursos da primeira pessoa numa sintaxe latitudinal (vertical) de fragmentos em que a actualização corresponde a uma faixa de topo e em que o sentido de comunidade corresponde a um tipo de interacção diverso da dos websites tradicionais.
Com efeito, no caso dos blogues, a análise de Sloterdijk aparece um tanto viciada em contraste com o que se passará noutros tipos comunicacionais da rede. Em primeiro lugar, pela menor atenção que no seu seio é dada aos impactos telemáticos – i.e, aos efeitos imediatos do circuito – e, em segundo lugar, pela maior atenção que é concedida à criação telepática, sobretudo através da recusa tácita dos blogues em constituírem-se como simples bancos de dados passivos.
É verdade que na blogosfera, o que é telemático decorre sobretudo da preocupação com o tráfego e com os ‘links’ (o espectro dos contadores e de sistemas como o Tecnhorati). É nesse espanto, mais ou menos fetichista, que a magnitude dos circuitos – da rede - é revista na enunciação dos próprios blogues. O que é telemático, curiosamente, tende a tornar-se um tanto preponderante. Por exemplo, a remissão entre blogues pressupõe quase sempre um diálogo entrecortado profundamente “pático”, carregado de pequenos impactos mais ou menos calculados (sátira, cumplicidade, ênfase, crítica, alegação, referência simples, etc.), enquanto o chamado estado ‘pós-analítico’ - que Sloterdijk evoca no seu texto - não parece já corresponder aos temores e pudores com que se revelou há uns anos na blogosfera (em 2003, o metabloguismo era quase um tabu; hoje é um dado devidamente enquadrado e mais descomplexado). Também não se descortina no mundo dos blogues a atitude judicativa que implicasse repor forçadamente os desequilíbrios entre os níveis telepático e telemático; ao invés, vislumbra-se antes a construção a posteriori de uma linguagem e de formas expressivas renovadas que se estão a adaptar ao novo meio no seu todo (a questão do “tom”). É esta - mais uma vez - a questão-chave, na medida em que a própria adaptação é, em última análise, uma integração sui generis dos novos meios postos à disposição dos bloggers (o telemático) ao que é possível ‘dizer-se’ e ‘mostrar-se’ (o telepático).
Sendo franco, deve dizer-se que o termo “telemática” foi criado por Alain Minc em 1978 (a partir de “telecomunicação” + “informática”) num artigo sobre a “informatização da sociedade” e corresponde hoje, reportando-me à autora contemporânea Cláudia Giannetti, a um campo do saber que investiga a dissociação entre o corpo e a informação. O espaço telemático é assim encarado, nesta acepção como na de Sloterdijk, como uma rede em constante mobilidade que permite visionar a ideia de televiagem e – tal como sustenta Giannetti – a “transladação imaterial para qualquer sítio em tempo real”. Não seria tão utópico (para utilizar um termo marcadamente clássico) e entenderia a dimensão telemática como a própria entidade global composta em rede por ‘hosts’ e ‘routers’ que vive e se expande a partir de uma miríade permanente de interacções locais. A forma telemática condensa assim o circuito que se regenera e metamorfoseia ‘em tempo real’ e que assegura a passagem quase ilimitada de ‘bits’.
Já a dimensão telepática alia conteúdos, ou “efeitos páticos” (mais concretamente: a emissão de ‘formas de conteúdo’ que, tal como na sedução, produzem efeitos nem sempre determinados), ao pressuposto da distância (tele). Este aspecto telepático - que tem a ver com o ‘topic’ das mensagens e com o que se diz e mostra – está hoje em dia a ser muitíssimo subalternizado, segundo Sloterdijk, face à euforia extrema com que a novidade telemática é encarada. Sobretudo porque estaria por estudar o impacto dos conteúdos (a perlocução) em regiões de distância indeterminada.
Como se o que realmente contasse fosse o novo mecanismo, o novo esteio polimórfico de vias, os novos circuitos policentrados: a rede, numa palavra. E como se o que menos realmente contasse fosse aquilo que ‘se vê’, que ‘está lá’ e que ‘passa’ através das mensagens (os conteúdos). No fundo, esta supremacia do telemático sobre o telepático colocaria em evidência a mera sequência discreta de figuras que repete a sua permanente descontextualização, independentemente das consequências daquilo que se mostra e que se diz (a violência, por exemplo).
Para esta tremenda pressão do telemático sobre o telepático existiriam, segundo Sloterdijk, variadíssimas explicações embora todas elas se pudessem resumir numa única: a era “pós-analítica” teria entrado definitivamente em cena, o que quer dizer que o olhar que antes falava de signos se teria transformado subitamente num olhar que se limita a falar dos canais por onde viajam os signos. Deste modo, os signos teriam descoberto a sua quase invisibilidade face ao tempestuoso império dos circuitos.
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A visão de Sloterdijk é interessante, mas desliga excessiva e mecanicamente as operações que decorrem dos usos comunicacionais (quer do uso rede, quer do uso do material que designa por “pático”, ou seja, da ordem dos conteúdos). Ao fim e ao cabo, o uso pode confundir-se com o próprio uso da rede, do mesmo modo que o contínuo processo de criação de significado se pode confundir com o uso de cada signo: um signo é sobretudo um modo momentâneo de apropriação de uma dada linguagem e de um conjunto de codificações que se segmentam. Já lá vai o tempo em que a arquitectura dos signos era estática, monolítica e não entendia, na sua nevoenta ‘estrutura’, a mobilidade e o eclectismo plural dos seus termos (subdivindo-se, quase sempre, em termos binários e estanques).
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Se olharmos com autenticidade empírica para o trabalho diário na (e com a) rede, toda a análise de Sloterdijk se podia inverter, já que é a própria realidade tensional entre telemático e telepático que nos deverá fazer pensar nos novos modelos semióticos e comunicacionais do presente e não o contrário (sendo que o contrário tem a sua origem, quase sempre, num juízo que localiza a priori um incómodo). Isto é: interessará sempre mais o dado e tudo o que ele (teoricamente) suscita, do que a perversão de uma realidade não desejada que é, afinal, movida pela própria alteração incessante de dados reais.
Por outras palavras ainda: tradicionalmente, o telepático correspondeu àquilo que a mente sempre processou, apesar dos meios que tal processamento implicava. Na contemponareidade, os ‘meios’ (o telemático) e o que ‘se diz’ (o telepático) há muito que se subsumem mutuamente. Esta avassaladora e híbrida ‘integração’ é, aliás, muito semelhante à que se processa, a todo o momento, a nível neural: as mil biliões de conexões interneuronais criadas por fibras conectoras (entre células e neurónios) são de facto indissociáveis daquilo que ‘dizem’ as imagens da nossa mente (e que fazem aparecer - utilizando a terminologia de A. Damásio - o “proto-si”, a “consciência nuclear” e esse “grande-filme-do-cérebro” que dá pelo nome de “consciência alargada”).
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Estes factos têm igualmente impacto nos blogues, essa parte da rede que amalgama discursos da primeira pessoa numa sintaxe latitudinal (vertical) de fragmentos em que a actualização corresponde a uma faixa de topo e em que o sentido de comunidade corresponde a um tipo de interacção diverso da dos websites tradicionais.
Com efeito, no caso dos blogues, a análise de Sloterdijk aparece um tanto viciada em contraste com o que se passará noutros tipos comunicacionais da rede. Em primeiro lugar, pela menor atenção que no seu seio é dada aos impactos telemáticos – i.e, aos efeitos imediatos do circuito – e, em segundo lugar, pela maior atenção que é concedida à criação telepática, sobretudo através da recusa tácita dos blogues em constituírem-se como simples bancos de dados passivos.
É verdade que na blogosfera, o que é telemático decorre sobretudo da preocupação com o tráfego e com os ‘links’ (o espectro dos contadores e de sistemas como o Tecnhorati). É nesse espanto, mais ou menos fetichista, que a magnitude dos circuitos – da rede - é revista na enunciação dos próprios blogues. O que é telemático, curiosamente, tende a tornar-se um tanto preponderante. Por exemplo, a remissão entre blogues pressupõe quase sempre um diálogo entrecortado profundamente “pático”, carregado de pequenos impactos mais ou menos calculados (sátira, cumplicidade, ênfase, crítica, alegação, referência simples, etc.), enquanto o chamado estado ‘pós-analítico’ - que Sloterdijk evoca no seu texto - não parece já corresponder aos temores e pudores com que se revelou há uns anos na blogosfera (em 2003, o metabloguismo era quase um tabu; hoje é um dado devidamente enquadrado e mais descomplexado). Também não se descortina no mundo dos blogues a atitude judicativa que implicasse repor forçadamente os desequilíbrios entre os níveis telepático e telemático; ao invés, vislumbra-se antes a construção a posteriori de uma linguagem e de formas expressivas renovadas que se estão a adaptar ao novo meio no seu todo (a questão do “tom”). É esta - mais uma vez - a questão-chave, na medida em que a própria adaptação é, em última análise, uma integração sui generis dos novos meios postos à disposição dos bloggers (o telemático) ao que é possível ‘dizer-se’ e ‘mostrar-se’ (o telepático).