quarta-feira, 31 de março de 2010

Design: uma revolução em curso

Quando hoje em dia olhamos com atenção à nossa volta, não é difícil percebermos de imediato como o design se entranhou na nossa vida. Tudo, de facto, aparece incorporado e moldado pelo design: os jornais que lemos, as cadeiras em que nos sentamos, as imagens que pululam nos sites e outdoors, os sapatos com que andamos ou as malas e sacos onde guardamos as nossas coisas.
O design resolve problemas, atrai a estética até ao nosso corpo e parece conferir ao mundo que nos rodeia, objecto a objecto, uma espécie de pulsação. Esta omnipresença do design tornou-se tão comum que acaba por misturar um fio de surpresa – quando nos concentramos na sua presença – com a mais elementar constatação do óbvio.
A quase invisibilidade do design é um dos aspectos mais fascinantes do seu triunfo no nosso dia-a-dia. Ao envolver-nos, o design preserva a maior das discrições mas garante um novo tipo de bem-estar. Nos últimos trinta anos, muita coisa aconteceu para que tivéssemos chegado a este vaivém de pulsações entre nós e os objectos que nos vestem, transportam ou acomodam.
Dois breves exemplos. O primeiro, já um clássico, deu pelo nome de “Lateral Thinking” (E. de Bono, 1970) e baseou-se na oposição entre a arrumação “vertical” da mente (sistema de “construção de padrões”) e as mensagens cujos formatos a conseguissem pôr em causa. As imagens “Benetton” dos anos noventa – hoje vulgarizadíssimas – constituíram um bom exemplo deste tipo de desmontagem, na medida em que obrigavam a suspender a padronização habitual da mente. O segundo exemplo tem apenas cinco anos e apareceu por via das ideias de Lindstrom (“Brand Sense”, 2005) que estão agora a invadir o mercado sob o signo dos designs sensoriais: “saborear”, “cheirar”, “tactear”, para além dos mais clássicos “ouvir” e “ver” (Damásio acrescentar-lhes-ia certamente a variante “somatossensorial”).
Estas duas formas visuais de atenção realçam, de modos diversos, a característica mais emblemática do design actual: fazer do presente um território realizável e crível capaz de incorporar as nossas emoções e não um “mero trânsito”, como pretendiam os místicos medievais ou os ideólogos oitocentistas.
Os designs contemporâneos estão, pois, a estimular a migração dos nossos processos mentais e sensoriais, transformando o espaço público num complexo orgânico onde a nossa carne, as nossas pulsões e impulsos se revêem como se agissem no seu espaço mais íntimo.
O design chegou para mudar a nossa vida. Ele é a maior revolução do nosso tempo.
(hoje no PNETdesign)

terça-feira, 30 de março de 2010

PNETdesign começa a 31 de Março


PRESS RELEASE

O PNETdesign estará online a 31 de Março.

O novo site da rede PNET, o
PNETdesign, abre as suas portas no último dia de Março. Durante o mês de Abril, a cobertura do Salone de Milão (14/4 a 19/4) está já na agenda. O painel de cronistas é variado e reflecte as várias esferas de produção, criação e gestão do design em Portugal e no mundo, atravessando campos de actividade que articulam o mercado, a educação, os eventos, o branding, o ciberdesign, o design gráfico e, também, a opinião.

Para além do editor, Luís Carmelo, e do administrador da rede, Eng. Vítor Coelho da Silva, colaboram no
PNETdesign, desde o seu primeiro dia, Sara Goldchmit, Mário Anastácio Santos, António Nunes Pereira, Helena Souto, Eduardo Côrte-Real, José Bártolo, Eduarda Margarido, Humberto Moreira, Márcia Novais, João Palla, Maria João Eloy, Martim Lapa, Ana Mestre, Pedro Marques, Sílvia Rosado, Miguel Fernandes e Diego A. Bartolomeu.

Além de desejar dar conta do meio do design, o site
PNETdesign pretende promover um observatório do mercado do design (eventos, feiras, destaques), dar voz aos agentes e protagonistas do meio do design, destacar a actividade do design na rede (blogues e sites), sublinhar o papel das marcas de design em Portugal e acompanhar as modalidades contemporâneas da gestão do design.

As componentes do site
PNETdesign são os seguintes: Ponto de fuga (notas editoriais), Brandestaque (espaço de realce para uma marca, com ênfase para os seus criadores, atributos, posicionamento, representação e oferta no mercado), MicroQues (entrevistas a designers, representantes de marcas, donos de lojas, curadores, críticos, gestores, industriais e estilistas; modelo sucinto e adequado à rede), EDesign (nota sobre casos interessantes ao nível do ensino e investigação projectuais do design), Design do design (Selecção crítica e comentada de sites e publicações sobre design), Breves (rubrica regular de informação), OpCron (espaço privilegiado de opinião e crónica), Ergomanias (relações corpo-design), Criadores (destaque de peças de design no Header do site) e Doodleday (secção projectual destinada à edição de desenhos).

UP (Revista da TAP)/ ESAD (Escola Superior de Design de Matosinhos)/ IADE- Creative University, Lisboa/ Alquimia da Cor (Escola De Design do Porto)/ UAL (Universidade Autónoma de Lisboa)/ SAAL (Alfena, Porto)/ Herdade da Matinha/ EXPONOR-CERANOR/Parli/ Viplanos/ChiadoDesign/EscritaCriativaOnline.com/ PNETliteratura

segunda-feira, 29 de março de 2010

Os alarmes do país literário


No dia em que Maria Helena da Rocha Pereira foi anunciada como a – aliás justíssima – vencedora do Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores, a jurada Teresa Martins Marques enalteceu a carreira da ensaísta, sublinhando a importância e a pertinência do prémio, devido, entre outros factores, ao facto de vivermos “…num tempo em que somos marcados pela literatura light”.
O argumento seria secundado, nesse mesmo dia, curiosamente um chuvoso 8 de Março, na rádio, pela voz do próprio presidente da APE, o escritor José Manuel Mendes.
Em Julho do ano passado, Pedro Mexia escreveu uma interessante crónica no Público acerca de um livro de Fátima Lopes e, na circunstância, referiu o grande impacto da literatura light – e das suas derivadas – através de um curioso contraste: “Fátima Lopes, uma apresentadora de televisão, vendeu quase cem mil exemplares; já as obras do mais recente Prémio Camões nem se encontram nas livrarias”. “O mercado editorial é o que é: uma grande biblioteca fútil”.
Já este ano, a propósito do Prémio Universidade de Coimbra 2010, atribuído ao escritor Almeida Faria e ao cineasta Pedro Costa, o reitor da centenária instituição explicou o sentido e o critério das escolhas como tendo a sua origem numa real necessidade de justiça. O objectivo foi, pois, o de “repor alguma justiça quanto à exposição pública dos premiados”, devido ao facto de “a nossa sociedade” ser “muito ingrata com os nossos artistas. Esta é mais uma tentativa que fazemos para aumentar a notoriedade de nomes importantes da nossa cultura”.
A ingratidão da sociedade diante dos seus artistas e escritores de maior qualidade parece aliar-se à “biblioteca fútil” que cada vez mais caracteriza o “nosso mercado editorial”. Uma tal cadeia de factos tem levado os jurados dos nossos prémios mais prestigiados a enfatizarem a urgência de o país culto se demarcar a ferros desta atmosfera crescentemente “marcada” pelas expressões “light”.
Dir-se-ia que o país literário anda alarmado e quase entrincheirado diante de uma terrível ameaça que, na falta de mais adequada designação, é definida pela leveza ligeira do mundo “light”. Ronald Augusto sintetizou, há alguns meses na Sibila**, esta omnipotência da mediania de modo revelador: “O mercado canoniza uma forma média de literatura que pode ser representada por um estilo a meio caminho da fórmula publicitária e do literário em tom pastel. Esta literatura light, que qualquer indivíduo pode “acessar”, é tão canônica quanto à mobilidade social o possa permitir. O escritor canonizado será aquele cujo perfil se revelar mais apto a conquistar a melhor fatia do bolo durante o maior tempo possível. De resto, o mercado dinamizado amplia tanto as chances de sobrevivência, quanto de aniquilamento do nosso grande pequeno literato. Por fim, ao manter o debate “literário” em nível de atacado, o mercado, ele mesmo, é que acaba por se canonizar.”
Dir-se-ia, para não marcar este sucessivo vestígio contemporâneo de nódoas com lições de moral, que ainda um belo se vai acabar por cumprir a profecia de João de Miranda m.. Ora leia-se: “… o meu amigo gameiro ganhou o prémio literário joão de miranda m., vencedor do prémio joão tordo de literatura, que ganhou o prémio josé saramago de literatura, vencedor do prémio nobel de literatura que ganhou o prémio bertha kinsky da literatura. O meu amigo santosilva é candidato ao prémio gameiro de literatura…”.
O humor é, ao fim e ao cabo, a face mais duradoura dos grandes abismos. E a justiça – essa sonhada equidade – será sempre alheia à profundidade da falésia e ao impacto da vertigem. Nada mais resta aos nossos melhores escritores e a todos nós, portanto, do que trabalhar. Trabalhar muito. Para que novos e bons livros apareçam e tranquilizem o mais inexorável dos vícios da existência. Deixem, pois, que as distracções e o entretenimento se distraiam e se entretenham à vontade! Que a redundância viva feliz na casa que é, afinal, a sua.
(no PNETliteratura hoje)

terça-feira, 23 de março de 2010

Guia de Conceitos Básicos de Nuno Júdice

Recebi de Nuno Júdice o seu último livro, Guia de conceitos básicos (D. Quixote, Março, 2010). Li-o, no primeiro domingo solar de Março, como se lê qualquer livro de poemas: percorrendo a paisagem que é sempre feita de nós invisíveis, de labirintos (“falta sempre/ alguma coisa que ficou no princípio”), de epifanias (“E o rosto divino apaga-se contra o vidro/ da memória”), de analogias (“a luz do sol escorrer por entre/ as folhas, como se fosse água”), de estações variadas (“para montar armadilhas aos pássaros”) e sobretudo das manhãs que obrigam à “precisão de traço/ que os dedos inscrevem em cada sílaba”.

A leitura desta paisagem acabou por revelar-se chã e cativante: uma linguagem do dia-a-dia que não perde nunca o resplendor do luar. Uma leitura criada pelo ritmo escorreito que procura a sua matéria própria. Uma leitura que se deixa povoar por figuras luminosas: Júpiter, Vénus, várias infantas, Orestes e até o “rosto escondido pela trepadeira/ que (…) ocupa a imaginação”. Uma leitura que sugere e deriva tal como avança: com vagar e com o olhar procurando sempre outro e outro olhar: “Os que vivem devagar desenham/os seus passos no chão para onde não olham”. Um olhar feito da matéria que o fio dos poemas procurará.

Percorrer a paisagem de um livro de poesia – que se lê pela primeira vez – é pressentir a silenciosa redenção que o terá originado. Porque a poesia nasce desse devir que não tem nome, nem forma, nem desígnio. Por vezes, basta o súbito fulgor de uma imagem para acender a razão de ser de toda essa paisagem. É o que acontece, como prefiguração, no final do poema “Ressaca”, quando há ímpetos e sombras que voam “nas paredes, num sopro de gestos, formando uma procissão/ que procura o altar e um desejo sonâmbulo”.

Guia de conceitos básicos de Nuno Júdice fecha com o poema homónimo. Trata-se de uma ininterrupta injunção que descola com ironia e que ancora com cartografia certa: “Use o poema para elaborar uma estratégia/ de sobrevivência no mapa da sua vida”. Trata-se sobretudo de um remate certeiro ou de uma verdadeira cartilha “para que poema/ e vida coincidam”. Citemos duas passagens que, nesse “Guia”, intertextualizam fragmentos de linguagem ‘tech’: “Recorra/ aos dispositivos de imagem, sabendo que/ ela lhe dará um acesso rápido aos recursos/ da alma” e “Se precisar de/ substituir os sentimentos cansados/ da existência, reinstale o desejo/ no painel do corpo”.

Os termos deslizam com súbita intermitência: “dispositivos”, “painel”, “instalar”, programar ou tão-só reiniciar. De facto, a leitura que antes sugeria e derivava, no seu luar de língua viva e chã, acaba por despertar com um brilho que se anuncia paródico, reatando, apesar de tudo, as silhuetas do “desejo sonâmbulo”. E termina assim este interessantíssimo “Guia”, aclarando definitivamente as suas margens: “Escolha uma superfície/ plana: e deslize o seu olhar pelo/ estuário da estrofe” (…) “Verifique/ (…) se todas as opções estão disponíveis: e/ descubra a data e a hora em que o sonho/ se converte em realidade, para que poema/ e vida coincidam.”.

A história de uma conversão, numa palavra. Não necessariamente do sonho para a vida, porque o poema ao dizer “sonho” e ao dizer “vida”, está-nos sobretudo a dar conta da matéria da (sua) poiesis, ou seja: de uma linguagem que se reinventa a si mesma à imagem da (imperscrutável) matéria do olhar.

terça-feira, 16 de março de 2010

Mafra pós-Saramago

Foi em Mafra, no início dos anos oitenta, que Saramago levantou voo. E fê-lo à imagem de uma personagem que ele próprio criou nesse romance/memorial que acabou por posicionar o convento local como peça do nosso imaginário e não apenas como exemplo do barroco lusitano (próprio para receber Putin).

No passado fim-de-semana, nem Putin, nem Saramago, nem a sua diva voadora por lá se encontraram. Mas podiam ter ungido com as suas bênçãos o último remoque de Santana Lopes. De facto, quem não se sente não é filho de boa gente e Santana, ainda a tentar libertar-se do despedimento do primeiro de Dezembro de 2004, não podia deixar de fazer o que fez: como foi atacadíssimo pelos seus pares estando em S. Bento, jamais idêntico precipício se poderia vir a repetir.

Daí que, apesar das opiniões veementemente contrárias dos três actuais candidatos à liderança (foi o que expressaram às televisões após a conclusão do conclave), a reunião de Mafra tenha aprovado a inacreditável resolução da "rolha".

Ninguém poderá proclamar em vão o santo nome do PSD e do seu líder máximo 60 dias antes do voto. Agora imagine-se que o impropério acontece no sexagésimo primeiro dia? A questão e o debate possível em torno dela fazem lembrar o referendo do aborto (é "crime" ao fim de que... semana?).

Numerar os dias e as semanas para incendiar os ânimos e lançar coimas como se lançam dardos é sinal de delírio. No mínimo! Mesmo sem jogadores chineses na formação, Mafra cumpriu (copiosamente) esse fulgor único. Assinale-se a proeza.

(hoje no Expresso)

sábado, 13 de março de 2010

Quando o risível procura bigode

Chega a ser delicioso auscultar os filósofos que se entretêm com a filosofia do futebol, de que Rui Santos é Wittgenstein e de que Rui Moreira é uma espécie de pragmático William James.

A discussão em torno do desporto, em Portugal, é matéria que mereceria mais estudos. O futebol, por exemplo, foi criando ao longo dos anos um verdadeiro 'establishment' (paralelo ao da classe política) que se manifesta com grande impacto nos media, para além de desenvolver alteridades e rituais necessários à sua conservação e de municiar um abundante mercado (de que nunca se separa bem o que é invisível do que o não é).

O peso deste 'establishment' é hoje muito maior do que era há um quarto de século e é muitíssimo maior do que era no 'tempo da outra senhora'. A tendência é claramente crescente. Repita-se: não do espectáculo, do peso das camisolas ou dos afectos espontâneos pelo génio da bola, mas do 'establishment': essa amálgama de dirigentes, estruturas e vozes cruzadas que contracenam com um mercado (aparentemente) sem fundo e com uma aparição omnipresente nos media.

O modo como estes factos se revelam noutros países europeus não será muito diferente, mas creio que há especificidades portuguesas. Uma delas é o número de jornais e de programas de televisão por habitante (a contrastar com o esvaziamento da larga maioria dos estádios); outra é a proporção com que as abordagens do futebol - à imagem da Grécia, de alguma Espanha ou Itália - se propagam no espaço público. Haverá neste gáudio que as pessoas adoram (bem sentadinhas nos seus sofás) alguma psicanálise que 'serve' de modo profícuo a filosofia pátria.

Não gosto de dar lições de 'dever ser' ou de "ética", como agora se diz nas "Comissões" de redundância parlamentar, e não sou admirador das doutrinas políticas que o fazem. As pessoas devem ter o que gostam, desde que não ameacem as liberdades de terceiros. E por vezes chega a ser delicioso auscultar os filósofos que se entretêm com a filosofia do futebol, de que Rui Santos é Wittgenstein e de que Rui Moreira é uma espécie de pragmático William James.

De todos os programas de televisão que se dedicam ao "fenómeno do futebol" há um que se destaca em meu entender: o "Mais Futebol" que vai para o ar no serão das sextas-feiras na TVI24. É o único que carbura o tema com humor - desde logo pela apresentação cativante de Cláudia Lopes -, é o único que não faz esquematicamente coincidir o painel com partidos/clubes e é ainda o único que tem rubricas de sadia dessacralização da coisa futebolística (a "Bola na barra", por exemplo). Além do mais, foi apenas neste programa que ouvi argumentos de compreensão do que se passou no recente Portugal-China, realizado em Coimbra.

Este jogo de treino da selecção teve ingredientes novos a que o 'establishment' reagiu do mesmo modo que os políticos reagem a contratempos terríveis (estilo... "Afinal o PM não falou verdade no parlamento!"). O facto de parte razoável da assistência ter proposto uma interacção menos estadista/clubista com o desenrolar do jogo feriu realmente grande parte do 'establishment' (os dirigentes lamentaram-se ao nível de uma quase 'traição nacional'). No fundo, os cartazes pediam uma selecção com bigode e os Olés celebravam, ao modo dos dadaístas, uma castiça China que atrapalhava os heróis nacionais (ainda sem bigode). Este modo irónico e sadio de ver futebol e de apelar à diversão com o futebol constituiu um sintoma novo.

A Coimbra que filtrou, em 1969, o Maio de 68 parecia ter voltado a acordar da sua letargia. Não para o velho Tomás, mas para a nova carcaça da nossa vida pública: o 'establishment' do futebol. É bom que haja um "Mais Futebol" e é bom que haja a Coimbra que soube tirar partido do que, também, deve ser a performance do futebol!
e
Hoje no Expresso

quinta-feira, 11 de março de 2010

Mau hálito político ou má sina?

O país da Expo foi um país frondoso, pelo menos por cima do tapete. Toda a década de noventa, a primeira que vivi em Portugal depois de um longa estada no estrangeiro, significou crescimento, recuperação e sobretudo mentalidade positiva. A "geração rasca", a crise da ponte 25 Abril, já no final do cavaquismo, e as diversões em torno do Padre Frederico em nada se comparam com o que realmente havia de ficar para a história: a Expo, a descoberta das TVs privadas (e de um novo tipo de pluralismo) e a importância crescente da tecnologia no dia-a-dia.

O nosso 09/11 foi prenunciado pelo pântano de Guterres que, depois, mergulharia nas águas paradas do Caso Casa Pia. Era a primeira vez que o país se via (massificada e mediaticamente) ao espelho, como se o precipício se abrisse e concordasse em género e número com a governação. Um apocalipse lento. Em 2004, Sampaio cortou a direito e, fora da formatação dos media clássicos, os blogues desenhavam uma nova contracorrente da afirmação pública. Provavelmente, foi esse o esteio mais sadio e livre da década.

A segunda metade destes últimos dez anos trouxe até nós o hábito socrático. A "História" tornou-se repentinamente num dia-a-dia conhecido, a que não faltou a maioria absoluta de 2005 - em muito esculpida pela deserção de Durão e pelo animatógrafo de Santana - e a psicanálise tecnológica. Mas o "Subprime" e a crise dos mercados acabariam por fragilizar e fazer ruir o trabalho de casa desse governo (em 2007, o défice descera realmente abaixo dos 3%). Os muitos falsetes e sombras da personalidade de Sócrates (licenciatura, projectos, Freeport, etc.) contracenaram, de repente, com casos como os do BCP e BPN. À esquerda e à direita, passe a ligeireza do esquematismo, o dedo acusador cruzou direcções e sulcou destinos pouco saudáveis. Era a entrada em cena da fase em que estamos a viver e que é caracterizada pelo profundo "mau hálito político".

E assim chegámos, no ano passado, a um novo parlamento a clamar por equilíbrio num país que o havia, entretanto, perdido. De repente, aquilo que o caso Casa Pia significara para o pasmo dos portugueses passou a ser revestido pelo tom judicioso (e de alguma vingança mútua) das comissões de inquérito do nosso Parlamento. Ética, TVI e outros tópicos congregam hoje grande parte do que se diz e do que se fala. Tal como aconteceu em 2003-2004, regressámos agora às águas paradas dos novos casos Casa Pia e às governações liofilizadas que folgam - fazem questão disso! - em acompanhá-las. Será esta a nossa sina?
(hoje no Expresso)

terça-feira, 9 de março de 2010

Benfica: a marca, o mito e o mais

O Benfica é, em Portugal, muito mais do que um simples clube. E é-o, em muita medida também, fora de portas. Basta ter vivido uns anos fora do país para o compreender.

Sem que necessite de saudosismos ou de um ininterrupto apelo da história, a identidade do Benfica reactualiza-se no dia-a-dia de modo perene, mesmo durante os ciclos desportivamente menos rentáveis. Ao fim e ao cabo, o Benfica corresponde - como dirão os teóricos da publicidade e do "branding" - a um caso singularíssimo de marca, edificado entre o imaginário comunitário do "core" e a autenticidade do património. Um caso em que a marca e o mito confluem.

Creio que a especificidade deste factor dita um outro que acaba por marcar, de modo indelével, o desporto entre nós: em Portugal, existe o Benfica de um lado e, do outro lado, todos os outros clubes. Mesmo os outros grandes clubes. Esta é uma realidade muitas vezes metaforizada (ou parodiada) pela famosa galáxia dos "seis milhões". Mas as metáforas, até no campo dos provérbios e dos ditados populares, falam sempre verdade. Daí as fricções, os afectos, as emoções superlativas, as euforias e os muitos contrapontos que a marca e o mito Benfica inelutavelmente criam. No seu território e nos alheios.

Vejamos: o Sporting é um grande clube e o Porto um clube grande. O segundo mais circunscrito do que o primeiro. Sociologicamente, o SCP tem uma índole bem mais nacional do que o FCP, apesar de, nas últimas décadas, os sucessos desportivos terem sido mais azuis do que verdes.

Mas o que diferencia estes dois clubes do Benfica é que o Benfica, sendo um clube, não é, de facto, apenas um clube. Aliás o SCP e o FCP são - e foram sempre - os primeiros a confirmarem esse facto, mesmo durante os tempos em que o devir desportivo do Benfica não foi o melhor. E isso porque as identidades do SCP e do FCP, sobretudo deste último, se têm construído, ao longo dos anos, como referência ao Benfica. Uma referência essencialmente antinómica.

Pinto da Costa inventou, desde os anos setenta, esse registo que passa pela afirmação da identidade através de um discurso "Contra". Não uma afirmação genuína e positiva, mas antes a enunciação de um processo de crescimento feito a pensar no Benfica e nele obsessivamente referenciado. Também o SCP não tem conseguido, ao longo dos anos, dissociar-se do chamado princípio dos vasos comunicantes da Segunda Circular. Daí que as crises verde e brancas contenham sempre algo que poderíamos designar por 'imagem contrastante'. O discurso do cirurgião Eduardo Barroso é das melhores psicanálises a este respeito.

FCP e SCP sempre enfatizaram e valorizaram, a seu modo, o Benfica. E assim o fizeram e fazem, porque a realidade a tal os condiciona. Um pouco como a luta centenária da Pepsi contra a Coca.

O Benfica tem com o país um pacto profundo. Uma panóplia vastíssima de reconhecimento, uma dimensão - rara entre nós até pela escala - que une o pragmatismo da marca à transparência do mito. Para o melhor e para o pior assim é. Benfiquistas e não benfiquistas partilham esta espécie de "coração independente" a que apenas os artistas e os poetas - eventualmente - saberão dar forma.
(Hoje no Expresso)

segunda-feira, 8 de março de 2010

Marcelo conventual

Marcelo é um doce. Há anos e anos que tem a melhor comunicação à sua disposição. Há anos e anos que marca, em boa medida, o tempo político em Portugal.

Filomena Mónica tem toda a razão nesta 'Questão Marcelo'. Com efeito, mesmo para quem vive afastado da televisão, o "professor" é uma verdadeira ilha nas condicionadas e previsíveis verves da nossa praça.

Marcelo conhece a capoeira toda e, ainda que não seja totalmente livre, sabe que palavras suas a mais ou a menos não lhe causarão aquelas feridas que são próprias de um pequeno mundo onde tudo e todos se conhecem.

Há quem diga que o Marcelo segrega maldade com tons amenos de baunilha. Há quem diga que Marcelo concatena ideias e imagens com mais chama do que um processador Fujitsu.

E o que dizer da intensidade das suas leituras e das associações rápidas de nomes, atributos e notas? ~

as eleições para a liderança do PSD, há, neste momento, uma evidência geral: todos os três candidatos parecem integrar o argumento de O Homem Invisível. Não o original de H. G. Wells, mas um outro que possibilita que o público consiga ver, através da invisibilidade de Aguiar Branco, Passos Coelho e Rangel, o único protagonista real na eleição: Marcelo Rebelo de Sousa.

Se Marcelo avança ou não avança, ninguém sabe.

Ao longo desta semana, ir-se-á desvendar o clímax do novo argumento do O Homem Invisível. Jardim e Menezes - olha quem! - já anteviram uma parte significativa das filmagens. Mas a rodagem de um filme é sempre um caminho tortuoso e cheio de potenciais contratempos.

Marcelo é um doce. Um típico doce português, algo conventual. Há anos e anos que respira nas nossas casas. Há anos e anos que sopra a lenta fogueira da nossa labareda política. Há anos e anos que todos lhe auguram o altar maior do poder.

Mas ninguém se esquece que Marcelo conta já duas derrotas políticas de fundo no seu CV: já claudicou como líder do PSD e já claudicou como candidato à mais importante autarquia do país. A penumbra convive com a luz, mas também convive - e de que modo - com a sombra.

Hoje no Expresso

sábado, 6 de março de 2010

Sacralização do livro

A imprensa de ontem tratou com carinho da destruição em massa de livros. O caso surgiu associado a uma editora que não carece de publicidade. A ministra da cultura recorreu ao termo "massacre" para descrever a situação e um dos senadores do nosso espírito mais ou menos desprevenido, Manuel Alegre, confessou-se "triste". O cenário não deixa de ser patético. Com todo o respeito pelos estados de alma próprios e alheios.

O clímax ressoou nas quase mitológicas palavras de Gabriela Canavilhas, quando referiu que a "importância do livro ultrapassa a noção de mercadoria". É um facto que herdamos culturalmente uma visão sagrada do livro. A ministra terá, pois, toda a razão. Confessemo-lo.

Em Ezequiel (3,1), o profeta ingere um rolo escrito que é imune aos sentidos e à impureza dos humanos e recebe depois ordens para comunicar o sentido dessas letras junto à "Casa de Israel" (3,4). O Apocalipse canónico do Novo Testamento apresenta-se como o duplo terreno de um Livro celeste, recebido por João através de um anjo intermediário (Ap 5,1). Na variante islâmica, a revelação é traduzida pelo "Tanzíl" (5,52) que remete para a ideia de 'descida do céu' do Livro eterno e único (a raiz do verbo "descer" é precisamente /NZL/).

Enfim, uma mercadoria não tem alma mas o livro, esse, seguramente tem. Aliás, basta ir ao grande banco do estado para aferirmos dos resultados de uma recente campanha de recuperação de livros usados. Eles ali estão a dormir nos seus escaparates, entregues ao desinteresse e à impaciência dos clientes e aforradores, muitas vezes carregadinhos e pó e de irremediável solidão. Não era melhor fazer aquilo por que, hoje em dia, mais se clama que é... a reciclagem? Sim, ser-se íntimo das causas do ambiente. E ser-se, em primeiro lugar, racional.

Num mercado em que a produção de livro é a todos os títulos irracional, quase um livro por hora, o que se poderia esperar? Que as empresas se endividassem com milhares de metros quadrados de armazéns apenas por causa de Ezequiel, João ou Maomé? Creio que não. Quem tem uma empresa sabe o que significa a palavra despesa. O que acontece bem menos nos corredores do estado e sobretudo na arejada brisa das mentes que herdam, desde finais de setecentos, o impoluto selo de "intelectual".

As pessoas lêem se lhes apetece, quando precisam e se gostam. A liberdade vive por cima e nos antípodas das cinzas das inquisições. De qualquer modo, o consumo de livros é, hoje em dia, desproporcionado face aos níveis de leitura. Ao mercado cabe resolver os desajustes e irracionalidades por si criados. De paternalismo e 'descidas do céu' - sem força da gravidade a animar a parada - está o inferno cheio.

(hoje no Expresso)

sexta-feira, 5 de março de 2010

Variantes portuguesas do kitsch

Sempre que tento escutar o verbo e a linha política de Passos Coelho, há algo de anómalo que me atropela a compreensão. É que não consigo reter absolutamente nada.

Desde meados dos anos oitenta que retenho o que Kundera escreveu acerca do kitsch. Há coisas que a memória guarda, outras não. O primeiro de Maio soviético ou a música de fundo de um restaurante de luxo (suíço) eram exemplos romanescos que o autor dava para explicar essas simetrias açucaradas, onde tudo aparecia arrumadinho, sem pó, nem grandes distracções.

Um dia destes, vi um episódio do CSI Miami e não consegui deixar de estranhar a fisionomia das agentes policiais. E logo me lembrei de Kundera. São realmente esbeltas, bonitas e portadoras daquele appeal que é mais comum nas modelos pré-anoréxicas ou nas divas que não se entretêm em excesso com nicotina, coca e outros explosivos. De facto, as polícias e investigadoras do CSI Miami são umas ninfas dos mares dos trópicos, mas, convenhamos, totalmente irreais em qualquer esquadra do planeta.

Kundera tê-las-ia colocado de bandeira com foice e martelo na mão a atravessar as ditosas sombras do Kremlin. Kundera tê-las-ia colocado a levitar sob os estuques de um restaurante suíço de eleição, onde o sussurrar da sedução contracena com o langor de uns violinos em tons rosa.

Mas não se pense que este espectro perfectível e envernizado é coisa apenas de encenação revolucionária, de time out ou de filmes policiais. Não, nada disso. O nosso Sócrates adora esse ambiente de brilhos bem cerzidos. Desde que nos governa, há já cinco anos, que não esconde o seu amor por salas onde a penumbra se harmoniza com um power point, devidamente enquadrado com figurações tecnológicas e uma plateia sentadinha, silenciosa e sagaz na sua nata capacidade de escutar a voz - diz-se sedosa - do PM.

Kundera tê-lo-ia, muito provavelmente, sentado num dos Labs do CSI e teria colocado a bandeira vermelha na bandeja de um restaurante de Genebra para rever o sorriso do cordato comensal. Quem sabe? Saberá, talvez, Passos Coelho que parece enveredar pela mesma saga. Com efeito, sempre que tento escutar o verbo e a linha política de Passos Coelho, há algo de anómalo que me atropela a compreensão. É que não consigo reter absolutamente nada. De Rangel, ainda capto algo sobre educação e de Aguiar Branco ainda capto algo ligado à prosódica, ou seja, ao tom de voz. Mas em Passos Coelho o que se capta é essencialmente uma variante (talvez regional) do kitsch.

Trata-se de uma concordância em género e número entre a pose, o recorte da frase, o listar do casaco e o fio mais ou menos ritmado de cada período. É o que fica: uma disposição em que a imagem aparece sempre muito centrada, nada desfocada, sem perturbações ou redundâncias. Passos Coelho não tem os dotes oratórios de Nemésio, mas consegue, sem power points, tecnologias e verves sedosas, quase o mesmo efeito a que Sócrates sofisticadamente nos habituou. Quando Passos Coelho fala, a compreensão aloja-se num sótão vizinho, exila-se, dissipa-se. Fica à mostra apenas aquilo que Kundera mais gostaria de ter visto: o peso e a leveza apaixonados um pelo outro, anulando-se um ao outro, numa alquimia da qual não restaria mais nada. Nadinha.
(hoje no Expresso)

quinta-feira, 4 de março de 2010

O futebol e a nação das quinas

Quando era criança, era comum ler ou ouvir dizer "Tudo pela Nação". O pregão era levado muito a sério. O que eu, na altura, não sabia é que o conceito - de Nação - vinha do século XVIII e tinha traduzido, de início, a alma vivida por uma comunidade e reflectida na língua, nas tradições e sobretudo numa espécie de voz partilhada de modo quase místico. Certos apaniguados de Salazar, ele nem tanto, adoravam encenar um certo misticismo milenar. Como se Portugal fosse a esperança do mundo.

Na segunda metade do século XX a cultura foi-se emancipando da era das civilizações e a Nação foi sendo silenciada ou referida com novos sentidos bem mais prosaicos. O 25 de Abril redescobriu por cá a República - porventura de modo excessivo, quando o que necessitámos era de democracia e liberdade - e quase remeteu a Nação (bem menos o atributo "nacional") a epíteto reaccionário. Recentemente, o ciclone global gerou novas tensões e a Nação, já tão desmobilizada e desacreditada, passou a reaparecer em actividades que simulam a épica sem o ser. É o caso do futebol.

A nossa senhora de Scolari e a euforia verde e vermelha de 2004 corresponderam a um novo tipo de Nação: um frémito colectivo sem grandes precedentes, ou tão-só uma espécie de uníssono expressionista pronto a ser galvanizado pelos fantasmas da bola. Pouco depois do 11 de Setembro, acreditou-se, de facto, em terras lusitanas, na Renascença de Scolari e na sua novíssima Nação como alternativas possíveis ao desaire (o pântano guterrista, a Casa Pia, a fuga de Durão, a epifania Santana Lopes, os eufemismos da justiça e os muitos casos Sócrates). O fenómeno floresceu até acabar, como tudo na vida, por esvaziar.

O jogo de ontem contra a China foi a grande prova disso mesmo. O público deleitou-se a assobiar a "Nação das Quinas", enquanto ia gritando "Olés" aos tímidos avanços da grande fábrica do mundo. Ainda por cima com duas grandes penalidades que ficaram por marcar. O carisma salvífico de Queiroz, mais propício a lances de aeroporto do que a ecos proféticos à Frederico Barbarossa, dissolveu-se no frio coimbrão. E nesse esvair dos heróis, a bola parecia um meteorito perdido e sem direcção. Um verdadeiro peso.

Confesso que raramente vibrei com a selecção "nacional". Talvez por isso tenha achado graça, ontem, à Questão Coimbrã.

(hoje no Expresso)

quarta-feira, 3 de março de 2010

Christopher Hitchens e o Oceano Atlântico

Vivemos ao sabor da contingência. Se Christopher Hitchens não tivesse estado em Portugal, não teríamos falado de ateísmo. Trata-se de um procedimento mais geral e bem português: somos anfitriões com dons especulares. E, neste caso, a primeira pessoa do plural apenas refere uma mão cheia de pessoas, porque as demais têm mais que fazer a atravessar a ponte, a ir ao hiper ou a atrair a si um oceano qualquer de calorias.

Mas o ateísmo tem que se lhe diga, porque postula um mundo sem deus (ou sem deuses), quando deus (ou os deuses) corresponde a uma das imagens fulcrais com que o homem soube, um dia, traduzir a sua experiência, os seus medos - como tão bem explicou Blumenberg - a sua inquietação e sobretudo o fruto da sua impotência no planeta. É fácil ser saramaguês (a expressão é literária e tem origem em Eugénio Lisboa) e profundamente matérico e repetir o que os semióticos soletram de cátedra, ou seja: que tudo o que se passa na crença dos humanos é fruto da cultura que incorporam e das imagens que, ao longo do tempo, nela se acamam.

Somos falados através de imagens, ritos, ruminações e repetições prosaicas. Mais do que falar, somos falados - e pensados - através de linguagens e mil e uma regras, a maior parte delas voláteis e pouco eficazes (tal como a miríade de imagens que compõe o "proto-si", explicado por Damásio em O Sentimento de Si).
O ser humano habita uma espécie de voz passiva, pretensamente amiga do ambiente (das leis da natureza), mas propensa a equívocos e a solavancos do espírito. Negar deus (ou os deuses) é o mesmo que negar o Oceano Atlântico: ele está lá, no flagrante do olhar de cada um de nós, Tal como está deus (ou os deuses) na impiedosa sucessão de marés vivas com que sempre catapultou o olhar profundo dos humanos. Confesso-o eu que nem sou crente.

Hoje no Expresso

terça-feira, 2 de março de 2010

Accionistas da nossa preguiça?

Daniel Oliveira , com o generoso empenho que se lhe conhece de querer desinflamar os males do mundo através de uma justiça quase pura e sem remoques, tem tendência a criar um adversário que simboliza a fonte de todos os males e um conjunto tácito de razões que explicam os aromas do inferno. Nada de mal neste modo de criar diagnósticos. A melhor ficção passeia-se por oposições fixas, guerras entre mundos antagónicos, efabulações carregadas de névoa e redenção. Nada a dizer, pois então.

No seu mais recente texto "Segurança é desemprego, trabalhador é explorador", Daniel Oliveira refere um estudo da OCDE que aponta Portugal como "o país com menor mobilidade social" e conclui, no final do segundo parágrafo, que, segundo os maus da fita ("os nossos liberais de algibeira"), o facto se fica a dever à "sobrevivência de alguns trabalhadores "privilegiados" que ainda têm direitos". Como se em Portugal existisse uma tentação liberal com poder, importância e tradição e como se alguém desejasse com afinco, determinação e sentido último de vida retirar os direitos a quem trabalha.

Não creio que esta fasquia pressuponha um critério sereno (o adjectivo é cordato!). Pressuporá um ambiente manifestatário e alegórico, cheio de curiosos "hossanas" ao norte da Europa (hoje uma sombra do que era, quando vivi na Holanda... nos anos oitenta) e de 'unhas de fora' face a tudo o que seja anglo-saxónico. O sul da Europa, coitado, esse, cheio de maus exemplos, é que estraga tudo. E se ligarmos a Grécia a Portugal a coisa dá choque. De qualquer modo, à parte alguns esquematismos, creio que a falta de mobilidade é muito mais uma questão "cultural" (explicação francesa, dir-se-á) que se poderia sintetizar através do facto de termos sempre sido (secularmente) accionistas da nossa própria preguiça e da nossa falta de iniciativa.

Explico melhor: para um bom português, interessa muito menos o risco de criar uma pequena empresa que proponha um serviço inovador e útil (só criei a minha depois dos cinquenta anos...) do que tentar entrar - através de uma suave e ancestral 'dança com lobos' - em algum lado que "dê segurança" (numa repartição, num politécnico, numa câmara municipal ou num esquema familiarmente assistido). Modos de sobrevivência particularmente estáveis que tanto valem para a filha de um ministro (o que disse eu?) como para o mais incauto morador da Madragoa ou do concelho de Góis. Era verdadeiro o axioma de Vico que referia, na sua Scienza Nuova de 1725, terem as "ideias uniformes, nascidas entre povos que não se conhecem, um fundo comum de verdade".
(publicado hoje no Expresso)

segunda-feira, 1 de março de 2010

Jardim vs. jardins

Todos sabemos que a catarse das antigas tragédias gregas corresponde hoje à função dos media, do mesmo modo que o discurso épico corresponde hoje à função dos discursos persuasivos, seja o publicitário, o das omnipresentes RPs e sobretudo os registos políticos do poder. Ora, quando vemos lado a lado Jardim e Sócrates, o que estamos a ver é o súbito casamento entre estes dois universos aparentemente irreconciliáveis. Um abismo que apenas se tornou possível, devido ao modo como a tragédia da natureza (sem coro nem libertação) acabou por atrair o 'ter que ser' sorridente da reconstrução. Da avassaladora torrente de lama à quase utópica Festa da Flor; da noite em que as ruas do Funchal conheceram o inferno às asas de anjo agora partilhadas por Sócrates e Jardim. Quem diria? Qualquer mortal, desde que não banhado pela ilusão que hoje constrói, de lés a lés, a própria natureza do mundo em que vivemos.

Corrente

Atmosfera quente na Póvoa. O calor de Inverno, temperado pela ameaça iminente de temporal. Nesta maresia de afectos se reencontram escritores há onze anos. Outros há menos tempo. Pelos corredores e passos perdidos passeiam-se jornalistas, editores, farejadores e olheiros da coisa literária. Diz que disse, ambiente cordial, conhecimentos rápidos. Um tempo quase fora do tempo. Bastante público, muitos lançamentos, alardes sigilosos. As mesas herdaram o prazer da palavra. E a névoa do que não se disse invadiu outras constelações. Por isso, houve – e há – sempre muito bar, muita confissão e muita noite. Elevadores de sonho. Foi assim na minha fugaz passagem pelo Corrente d´Escritas.
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P.S. - Já tenho um blogue com entrevistas (sobretudo) acerca de escrita criativa: aqui.