sexta-feira, 5 de março de 2010

Variantes portuguesas do kitsch

Sempre que tento escutar o verbo e a linha política de Passos Coelho, há algo de anómalo que me atropela a compreensão. É que não consigo reter absolutamente nada.

Desde meados dos anos oitenta que retenho o que Kundera escreveu acerca do kitsch. Há coisas que a memória guarda, outras não. O primeiro de Maio soviético ou a música de fundo de um restaurante de luxo (suíço) eram exemplos romanescos que o autor dava para explicar essas simetrias açucaradas, onde tudo aparecia arrumadinho, sem pó, nem grandes distracções.

Um dia destes, vi um episódio do CSI Miami e não consegui deixar de estranhar a fisionomia das agentes policiais. E logo me lembrei de Kundera. São realmente esbeltas, bonitas e portadoras daquele appeal que é mais comum nas modelos pré-anoréxicas ou nas divas que não se entretêm em excesso com nicotina, coca e outros explosivos. De facto, as polícias e investigadoras do CSI Miami são umas ninfas dos mares dos trópicos, mas, convenhamos, totalmente irreais em qualquer esquadra do planeta.

Kundera tê-las-ia colocado de bandeira com foice e martelo na mão a atravessar as ditosas sombras do Kremlin. Kundera tê-las-ia colocado a levitar sob os estuques de um restaurante suíço de eleição, onde o sussurrar da sedução contracena com o langor de uns violinos em tons rosa.

Mas não se pense que este espectro perfectível e envernizado é coisa apenas de encenação revolucionária, de time out ou de filmes policiais. Não, nada disso. O nosso Sócrates adora esse ambiente de brilhos bem cerzidos. Desde que nos governa, há já cinco anos, que não esconde o seu amor por salas onde a penumbra se harmoniza com um power point, devidamente enquadrado com figurações tecnológicas e uma plateia sentadinha, silenciosa e sagaz na sua nata capacidade de escutar a voz - diz-se sedosa - do PM.

Kundera tê-lo-ia, muito provavelmente, sentado num dos Labs do CSI e teria colocado a bandeira vermelha na bandeja de um restaurante de Genebra para rever o sorriso do cordato comensal. Quem sabe? Saberá, talvez, Passos Coelho que parece enveredar pela mesma saga. Com efeito, sempre que tento escutar o verbo e a linha política de Passos Coelho, há algo de anómalo que me atropela a compreensão. É que não consigo reter absolutamente nada. De Rangel, ainda capto algo sobre educação e de Aguiar Branco ainda capto algo ligado à prosódica, ou seja, ao tom de voz. Mas em Passos Coelho o que se capta é essencialmente uma variante (talvez regional) do kitsch.

Trata-se de uma concordância em género e número entre a pose, o recorte da frase, o listar do casaco e o fio mais ou menos ritmado de cada período. É o que fica: uma disposição em que a imagem aparece sempre muito centrada, nada desfocada, sem perturbações ou redundâncias. Passos Coelho não tem os dotes oratórios de Nemésio, mas consegue, sem power points, tecnologias e verves sedosas, quase o mesmo efeito a que Sócrates sofisticadamente nos habituou. Quando Passos Coelho fala, a compreensão aloja-se num sótão vizinho, exila-se, dissipa-se. Fica à mostra apenas aquilo que Kundera mais gostaria de ter visto: o peso e a leveza apaixonados um pelo outro, anulando-se um ao outro, numa alquimia da qual não restaria mais nada. Nadinha.
(hoje no Expresso)