sexta-feira, 29 de junho de 2007

Escavações Contemporâneas - 34


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas)
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Le Pen por cá*
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A recente visita de Le Pen e de mais quinze deputados de extrema-direita a Portugal provocou a reacção que era de supor. Organizaram-se as coisas de modo a que toda a gente ficasse ciente que nós, portugueses, puros e democratas até pelo menos à décima quinta geração, não consentimos que o nosso território e a alma da nação sofram a mácula de tão abjecta presença. Ou melhor, consentimos desta vez por uma inexplicável falha da nossa excepcional legislação; mas de futuro, supõe-se, seremos mais avisados. Desde Francisco Louçã ao Presidente da República (num incomum momento de infelicidade), quase toda a gente, de consequência ou sem ela, aproveitou para demonstrar a beleza e a brancura da sua alma. Tirando a excepção habitual de Paulo Portas, no Independente, e o que escreveu José António Saraiva no Expresso, as manifestações de bom senso foram menos que poucas.

Não há nisto motivo particular para surpresa. Que o folclore por cá é assim, é um facto irrecusável, como é irrecusável que a gente que foi com Le Pen a Sesimbra, democraticamente eleita e tudo, não oferece os mais belos exemplos de elevação moral e de humanismo profundo. Nem nós nem eles nos distinguimos particularmente pela tolerância. Mas há pelo menos três perguntas que se podem fazer no seguimento do episódio. A primeira é: porque é que a esquerda adora a exibição da indignação e não se esquece nunca de lançar a mão ao que quer que seja, se se trata de fazer crer o advento do Mal iminente? Depois: porque é que a esquerda reduz tudo o que é fenómeno social a informação política? Por fim, porque é que — e é um dos maiores paradoxos do nosso tempo— o comunismo (enquanto doutrina sobre a justiça, a felicidade, o bem e a história) aparece, apesar de tudo o que se sabe, moralmente mais aceitável que os arremedos ideológicos de gente como Le Pen? Convém notar que «a esquerda», nestas perguntas, é quase tudo cá, porque a direita que há, por falta de princípios próprios, em matéria destas declarações segue-a em tom menor.

A esquerda tem a paixão da indignação, ou pelo menos finge que a tem. Era uma coisa da juventude; agora arrisca-se a ser uma coisa da senilidade. Era da juventude quando a esquerda herdava, com uma legitimidade sempre conflituosa mas efectiva a vocação da liberdade e a possível reflexão sobre esta. Tomou-se da senilidade depois de a esquerda encobrir, consciente ou inconscientemente, durante décadas, os maiores crimes em seu nome perpetrados, crimes mais extensos, para falar simplesmente, do que aqueles praticados pelas ditaduras «de direita». Simbólico disto — na sua insignificância mesma - é um artigo publicado há uns tempos no Público, secção local de Lisboa. O autor, Carlos Pinhão, tendo tomado um táxi, pedira ao motorista, um homem de menos de trinta anos, para o levar à rua Dias Coelho, parece que na Mouraria. Por qualquer razão, no meio de uma conversa que demonstrava, no máximo, o pouco interesse do homem por matérias políticas, Carlos Pinhão perguntou-lhe se sabia quem tinha sido Dias Coelho. Depois de saber que o outro não fazia ideia, a sua ira, pelo menos a confiar na crónica que escreveu, foi imensa: exigiu ao motorista que parasse ali mesmo, no lugar da infeliz confissão, e saiu do táxi. «Então o senhor não conhece o nome dos mártires da Pide? — O país está à beira do fascismo», era a inconsciente e económica moral da indignada história. O ser patética não lhe retira o carácter exemplar. É mesmo exemplar até mais não.

Mesmo quando tem razão, a esquerda acaba por não ter. E isto porque a sua dedicação à cegueira é prodigiosa. A redução de tudo o que é social ao político — reveladora de incompreensão tanto do que é social como do que é político — é a consequência imediata. Os fenómenos do «hooliganismo» ou dos skinheads são, para a esquerda, imediatamente políticos: exactamente como os cabelos compridos no tempo de Marcelo Caetano. Ao querer puxar toda a brasa à sua sardinha, desrespeitando a verdade e a verosimilhança, a esquerda vai acabar por se queimar. Tudo o que pode é arranjar uns mártires auto-fabricados. Dir-se-á que um militante do PSR foi assassinado por um bando de skinheads. Eis alguma coisa que, independentemente do horror e da tragédia que não se pode desrespeitar, precisa de ser relativizado. Ao reduzir tudo ao político, a esquerda cria paixões políticas violentas. Nomeadamente no caso do PSR, a extraordinária e despropositada projecção de que usufrui nos meios de comunicação social é particularmente proporcionadora disso. E quem semeia ventos colhe tempestades.

Apesar de tudo — e tudo é a imensidão descomunal que se podia saber desde, pelo menos, os anos 30, e que se não pode deixar de saber hoje —, a ideologia comunista permanece moralmente mais aceitável do que a de direita estilo Le Pen, para não falar da outra mais extrema. Isto revela uma extraordinária capacidade de distinguir a teoria da prática num caso e de a confundir no outro. O facto de o comunismo ter provocado muitos mais mortos do que o nazismo, fascismo e herdeiros juntos, não anula automaticamente o reconhecimento de alguma elevação nessa doutrina; e certamente que o mesmo se não dirá relativamente ao fascismo, ou melhor: não o dirá ninguém com quem se possa falar. Mesmo quem, por razões filosóficas e políticas, julgue o marxismo a expressão de um erro profundo e o condene como tal, não sai provavelmente deste paradoxo. Porque se trata efectivamente de um paradoxo: contendo já o marxismo o germe do mais terrível totalitarismo de sempre (ou antes, para ser mais correcto e justo: contendo a ideia de comunismo «científico» já esse germe), a «bondade» da doutrina é ainda aceitável, mesmo que descrita como «ilusão» ou erro. O mais certo é tal dever-se à paixão intelectual pela beleza e racionalidade das teorias, paixão que evidentemente não encontra objecto em ideologias estilo Le Pen. Mas a descomunal desproporção entre o deve e o haver em ambos os casos não deixa que tal explicação possa ser satisfatória. Porque não é, mesmo que seja verdadeira.
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*O Primeiro de Janeiro, 15 de Julho de 1990
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)