sexta-feira, 22 de junho de 2007

Escavações Contemporâneas - 31


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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas)
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A culpa dos filhos
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Entre os vários maus e infinitamente perdoáveis costumes da humanidade, há muitos que são os piores. Entre os muitos piores contam-se algumas das maneiras dos pais tratarem os filhos e dos filhos tratarem os pais. É um tema clássico, sobre o qual a Dra. Manuela Eanes pode ainda hoje oferecer inestimáveis prédicas e que serve perfeitamente para túrbidos exercícios de diferente espécie, como notas do dia da Rádio Renascença, inquirições psicanalíticas da infância de autores consagrados, singelos programas televisivos que nos ensinam o segredo da felicidade e outras coisas edificantes assim. Mas os maus costumes devassados são quase sempre os dos pais. Desde os mais brutais e ostensivos aos mais pérfidos e encobertos, os maus costumes dos pais discutem-se entre a mesa-redonda sobre o trabalho infantil e o psicanalista da esquina. Estão todos lá, não falta nenhum; e o esmero posto na sua descrição há-de ser uma coisa muito característica do presente estádio da nossa civilização.
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Os maus costumes dos pais são uma coisa péssima, é verdade. Mas que dizer dos maus costumes dos filhos? Não falo daqueles hábitos vulgarmente inocentes e geralmente inócuos como querer matar o pai para possuir a mãe ou não gostar da comida que vem para a mesa. Isso são pequenos problemas que, quando surgem, na maior parte dos casos se resolvem com saudável eficiência. Os maus costumes dos filhos só se tornam realmente maus e costumeiros quando os filhos têm idade para serem pais. E o pior de todos eles é este: não conseguirem tirar os pais da cabeça.
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A resposta clássica é que a culpa é dos pais. Se os filhos não conseguem tirar os pais da cabeça é porque os pais se meteram lá muito bem quando eles, coitadinhos, não tinham defesas nenhumas. Muito bem. Certamente que isto é uma grande verdade. Toda a gente sabe quanto, para o bem e para o mal, os pais se esforçam para entrarem dentro da cabeça dos filhos. Alguns dos pensamentos mais engenhosos da humanidade foram dedicados, com inacreditável dispêndio de energia e obstinada devoção, a essa melancólica tarefa. Em alguns casos exemplares, os esforços paternos são coroados de êxito. Aquela história clássica do filho que, na tentativa de imitar o pai, distinto cirurgião, se torna médico e alegremente vai matando indefesos doentes, parece que tem mesmo equivalentes reais. Mas enfim, são costumes. Quer dizer: não tem que acontecer sempre assim.
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A mania dos filhos porem a culpa de todas as desventuras pessoais na, consciente ou inconsciente, perversa acção dos pais é a forma terminal, e vulgar, de não conseguirem tirar os pais da cabeça. Há gente cuja vida inteira é dedicada à estranha missão, de uma grandeza pelo menos dúbia, que consiste em mostrar aos pais todo o mal que lhe fizeram. Nenhum vício, nenhuma desventura, nenhum desacerto escapam a esta tão misteriosa quanto inescapável causalidade. «Deixei cair a chávena de café ao chão? Pudera, com os pais que tive!» Os pais explicam todo o mal, previsível ou imprevisível, do mundo pessoal. Organizam sabiamente as infelicidades futuras como orquestraram as passadas. Servem de alibi para as mínimas imperfeições e para as máximas calamidades pessoais, guardando assim uma espécie de virgindade do eu relativamente a toda a culpa.
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Esta doutrina é uma doutrina corrente. E a verdade é que é agradável a gente imaginar-se possuído de uma inocência fundamental relativamente ao mal e ao fracasso, como se a culpa das coisas fosse intrinsecamente alheia e não pudesse deixar de o ser. Mas é um agrado de duvidoso encanto, além de ser uma estupidez. Porque o que acontece é que, a partir de uma determinada altura, toda a gente tem todas as culpas que tem que ter porque as quer ter. O grau de responsabilidade varia, é certo, em intensidade, consoante os casos e a circunstância, mas não parece possível, nas situações em que directamente nos envolvemos, apresentar uma inocência profunda e absoluta. Ou então aceita-se a moral daquela história passada com o filósofo estóico Zenão, que batia com um pau num escravo que o tinha roubado; o escravo disse-lhe: «Estava escrito no meu destino que iria roubar»; Zenão respondeu-lhe: «E também que te bateriam». A moral da história é falsa porque a ideia da responsabilidade pessoal o não é.
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Há qualquer coisa de eminentemente desagradável na atitude das pessoas que, ao longo da vida, explicam todos os seus comportamentos à custa da sua história familiar infantil. Como acham que os pais lhes estragaram a vida, fazem da vida uma acusação permanente aos pais. Os pais, de resto, às tantas já não os ouvem. Mas bem que os outros os podiam deixar em paz. Já lhes bastava terem tido os filhos que tiveram.
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(O Primeiro de Janeiro, 28 de Março de 1990)
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)