segunda-feira, 12 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 31

Mapa da internet de Bill Cheswick e Hal Burch*
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A blogosfera situa-se na rede virtual e processa-se a todo o momento neste mapa que Bill Cheswick e Hal Burch têm estado a implementar desde 2000 (“The Internet Mapping Project”, sediado desde 2000 na Lumeta Corporation). O mapa tem o fascínio da cartografia de um oceano de galáxias: há nele um encanto estético neural e ao mesmo tempo espacial e mitológico.
Há naqueles traços segmentados, imprecisos e multidireccionais algo do nosso sorriso, do nosso espanto, da nossa estranheza e afirmação. Nota-se, tal como acontece na blogosfera, que há um número desmedido de nós pouco conectados e um número limitado densamente conectado. A comunicação expande-se permanentemente na rede e cada novo “link” é sempre um nova ‘linha de fuga’ e um novo arremesso na direcção do ‘para lá de’ (a expansão da rede segue o princípio da “retroacção positiva”: como uma bola de neve onde o efeito e a causa se geram espontânea e mutuamente).
Entre cada nó da rede, independentemente do caminho seguido, a viagem é muito breve (a distância média entre nós é, hoje em dia, calculada em cerca de 11,2 nós - método de Barabási). A “complexidade” de Neumann (i.e., uma realidade que não pode ser traduzida por um modelo – conceito de 1965) está agora a transformar-se num novo tipo de enquadramento que pode ser determinado através de cálculos formais, o que quer dizer que a expansão da rede (dos grafos) já não é de facto um devir puramente aleatório.
Para que a construção deste mapa esteja a ser possível – vislumbra-se nele qualquer coisa semelhante às grandes invenções e descobertas - , há que evocar aqui um protocolo hoje já histórico. Chamou-se inicialmente TCP (“Transmission-control protocol”, mais tarde conhecido por TCP/IP), foi criado em 1974 por R. Kahn e V. Cerf e veio permitir a comunicação entre redes de natureza diversa (a noção de rede vinha já sendo perseguida desde os tempos cibernéticos de McCulloch, Neumann e Wiener).
Articulado com este protocolo, que foi essencial para o aparecimento da internet tal como hoje a entendemos, surgiriam depois, entre outros, um conjunto de protocolos que tornaram possíveis, por exemplo, a rede virtual “WWW” (o protocolo “HTTP”) e o correio electrónico (os protocolos “SMTP” e “MINE”). Mas uma coisa é certa: todos estes protocolos que iam unindo ‘routers’ e ‘hosts’ só se preocuparam, desde o início, com o livre e aberto transporte de ‘bits’ (de informação) e nunca com os seus conteúdos. Uma tal opção constituiu – e constitui ainda hoje – um desses raríssimos factores-chave que são capazes de legitimar e significar uma era e que, para além disso, se tornam fundamentais, entre outros, para repensar o significado da liberdade e da democracia nestes novos meios.
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As implicações de todos estes factos são inúmeras, mas poderão ser resumidas, aqui, em apenas três linhas de força:
a) Em primeiro lugar, o agenciamento da rede reduziu-se sempre a ‘tipos expressivos’ (na linguagem de Hjelmslev, o lado material da comunicação), sendo os seus únicos conteúdos (o lado imaterial da comunicação, segundo o mesmo autor), aparentemente, o protocolo e a mobilidade, ou seja: a passagem seja de que tipo de informação for (voltarei a este tema);
b) Em segundo lugar, pressupondo o TCP/IP a criação de um espaço público, ele acaba por dissociar a rede de todo o tipo de propriedade como sempre a compreendemos (pelo menos, desde os legados de Locke): i.e., de modo territorial;
c) Em terceiro lugar, como notou recentemente António Machuco Rosa*, o protocolo TCP/IP permite ainda que a internet seja um meio essencialmente auto-organizado e vocacionado para o crescimento espontâneo, “imprevisível e não-regulado”.
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A blogosfera é um campo dentro deste vastíssimo campo que se alarga à medida que se expressa. Raramente um novo medium criou uma cartografia que ele próprio, em tempo real de auto-enunciação, ia agenciando. Quando Vasco da Gama ou Colombo processavam as suas cartografias, o mar já lá estava. Quanto Gutemberg, Muybridge ou os irmãos Lumière processaram as suas escritas, as gramáticas rapidamente se foram cristalizando. A semelhança apenas surge quando nos confrontamos, ou com as viagens espaciais, ou com as viagens neurais e ‘cyborguizadas’. A blogosfera é, pois, um dos poucos entrepostos contemporâneos que religa a expressão individual (e uma agenda de proximidade) à descoberta de um espaço onde é medium.
A adequação da linguagem ao novo meio - que tenho vindo a designar por “expressão” - é um dado paralelo à materialidade da comunicação da rede que se está a estatuir publicamente num universo vocacionado para o crescimento. A auto-organização do meio faz com que a gramática e a linguagem emergentes se equiparem às águas de duas nascentes que se tornam subitamente caudalosas, mas sem uma ligação estanque e previsível entre si.
Estamos a viver uma novidade e um estado de quase pasmo, embora sem os instrumentos que no-los permitissem auscultar com total ponderabilidade: é essa uma das virtudes da contemporaneidade. Por outras palavras: sobreviver entre a cartografia e a permanente expansão do cartografado. O ‘ritmo’ vertiginoso da expressão que se veicula na rede (o “tom” dos blogues incluído) só não é mais intenso do que a capacidade da própria rede em crescer. A ideia clássica de circumnavegação nada tem, pois, a ver com esta aventura que é ver o mar cada vez maior a envolver as caravelas de uma descoberta que parece sempre iminente e calculada!
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*The Internet Mapping Project de Bill Cheswick e Hal Burch, projecto desenvolvido desde 2000 na Lumeta Corporation.
*5 Lições sobre Comunicação, Redes e Tecnologias da Informação: da Cibernética ao Copyright, Vega, Lisboa, 2006.