quinta-feira, 26 de maio de 2005

O OLHO DO JAVALI
Folhetim em doze episódios
NONO EPISÓDIO
(Quase se fez luz)

Por cima da derradeira falésia, antes do último troço a percorrer que é coisa de dois sinuosos quilómetros, já é visível, a olho nu, o espectro da antena esbranquiçada que marca o lugar do mirante por todos desejado. Quem sabe se, por isso, o tenham, um dia, baptizado como proibido, inacessível, nefasto, aziago. Mas, no fundo, sempre desejado. Na terra da infância de Rui, havia uma ladeira chamada da Boa-morte e, na aldeia natal de Maia, existia um caminho antigo a que chamavam o Trago do homem morto. E, no entanto, jamais a boa lua deixara de alumiar esses lugares, em dias frios de equinócio ou solstício, em dias de mau presságio, ou em dias de auspício duvidoso. Para ambos, tudo, mas tudo havia sido terra benzida pelos deuses mais antigos e pelas lendas e fábulas que, em tempos de ouro, traduziam aos homens as boas acções, as dignas posturas e os bons exemplos da vida.
Rui e Maia não o terão confessado um ao outro, mas entenderam-no por um qualquer mistério que se entreabriu nesse lapso que o olhar deixou transparecer, na hora da verdade. Na hora em que o mistério aclarou a sua própria dúvida e a luz se fez. Na hora em que a compreensão se resumiu a umas quantas opções subitamente disponíveis e evidentes. E foi então, sem palavras, esquecendo mesmo encontros marcados e viagens agendadas, que Rui e Maia terão entendido que aquele pico, aquele cume da derradeira falésia não era senão o destino mais provável de uma coincidência e de uma remota cumplicidade que, apesar de - quem sabe ? - provocadas, reflectiam o fruto de um perturbador reconhecimento e de uma concórdia de espírito, no mínimo inexplicável. Fizera-se luz e a montanha, por dádiva singular, acompanhara-a.


Próximo Episódio: “A penumbra da via láctea a emergir do nada. Os uivos ao longe. Os raros ramos das últimas árvores estriados pelas audaciosas brisas. As curvas e contracurvas até ao augurado mirante proibido