sábado, 5 de março de 2005

UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
NONO EPISÓDIO
(A súbita expiação de Edmundo)
hoje on-line na primeira hora de domingo

- Tocou-me nas costas ao de leve, enquanto apontava para Albe, e sorria, sorria, de modo transbordante, e não se cansava sobretudo de insistir, sem que tivesse sequer sido inquirido para tal
- É a minha filha, é a minha filha ! - e eu, ali, sem mais, despojado de mim, a compreender, talvez, a mais velha lição de geometria e de óptica do mundo: uma recta une, no mínimo, dois pontos, mas pode aproximar, por impoluta ilusão, muitos mais.
Refeita a lição, voltei-me a sentar na cadeira de lona, mas, minutos mais tarde, a breve apresentação fez-me ver, ou reconhecer, uma menina de vinte e poucos anos e uns olhos ávidos de aura por cumprir, de candura, de impenetrável beleza. Chamava-se Albe.

E nós, imagine-se, a falarmos de vocações a uma hora daquelas ! Era já o rosto do tempo, diante de nós, a desafiar o tédio. O tédio de tudo o que ameaça tornar-se em descaminho, ou mesmo em perda, se, a certa altura, não aparecer um sinal, um gesto, um hiato súbito a minar a apatia, aliás natural, da hesitação.
Olhei para Albe e, durante uns segundos, brevíssimos e inenarráveis segundos, senti a justa noção do meu cansaço. Estava sinceramente cansado e sem grandes esperanças.

Estava cansado daquela Lisboa pindérica a cheirar a fardas cinzentas e a enxofre lentamente atiçado nos cais, de onde partiam barcos com magalas para Angola; estava cansado daquela Lisboa cheia de quixotadas submissas, licenças para isqueiros aos rodos e de fadâmedes para rimar com a nossa Moçâmedes, como diria o poeta; estava cansado daquela Lisboa a exalar perfume de iscas e a silenciar todas as polémicas e arrojos; estava cansado daquela Lisboa a explodir de hipocrisia enlatada e onde tudo era pequenino e franzino, com excepção da recente ponte sobre o Tejo, do suave Benfica, do Joaquim Andrade do Sangalhos e dos evidentes milagres de Fátima e arredores.

(No próximo episódio, Edmundo continua a descrever a descrença que a sua vida lhe alimenta, enquanto tenta descobrir na atmosfera das súbitas férias algum sinal que lhe aponte uma nova deriva, uma nova aventura, ou um novo recomeço. Mas faltava ainda muito, quase tudo, para que um pacto com o futuro se viesse a cumprir)

Continua
*
(publicação simultânea da versão matricial em Inglês no blogue Minion)