domingo, 4 de abril de 2004

Questões incómodas a enfrentar



Portugal começa agora a desestruturar a intelligentsia acumulada nos últimos 30 anos. Não se trata de pôr em causa o que, em linguagem revolucionária, se denominou por “conquistas”, mas sim de realinhavar no tempo de hoje aquilo que se foi tornando, ano após ano, em dogma inamovível, em peso morto, ou em hábito anquilosado. Recorrendo a uma parábola da natureza, dir-se-ia que o que está em curso é uma lenta operação que consiste em podar a árvore para melhor reencontrar a fertilidade dos rebentos.
Uma das constantes mais emblemáticas destas últimas três décadas tem sido o propósito e a relevância atribuídos ao “poder local”, ao “regionalismo” e ao “interior”, três preciosas metáforas sistémicas com que a face do país trocou a sua imagem pelo espelho de princípios que constitucional e vivencialmente abençoou.
No programa Directo ao Assunto (TSF) de 4 de Abril, Saldanha Sanches confirmou, sem peias nem receios, esta escalada desestruturante. Ouçamo-lo a ele e não só (as citações não são decalcadas): “a actual descentralização é sinistra”. “Defendo a centralização, pois claro. Até porque o que se quer é um estado a funcionar bem e com muito poucos funcionários”. “O Portugal litoral, que é o que funciona, deverá inevitavelmente conduzir o país”. “Ainda que seja óptimo registar, em certas cidades médias do interior, a existência de uma boa qualidade de vida”. António Barreto, no mesmo programa, segue as pisadas de Sanches: “Tenho simpatia pelas afirmações de Saldanha Sanches. Sempre que ouço os partidos, nas pré-campanhas eleitorais a falarem da fixação de populações no interior, estremeço”. “Criar estruturas no interior sim, mas não ter em conta a liberdade das pessoas, isso é tremendo” e violentamente demagógico - acrescentaria eu. Dizia ainda Barreto, e bem, que há locais, no mundo e mesmo no país, quase sem população que são "extraordinários".
É verdade que, no fundo, o exercício radicalmente aberto da democracia apenas existe em pleno nos locais onde se verifica alguma escala e não, necessariamente, em todos os pequenos meios. A proximidade das respirações inibe a espontaneidade expressiva e sobretudo estimula a reprodução social de palavras de ordem, a compulsão e o agir dos caciquismos unívocos e poderosos. Dar exemplos, já se sabe, é sempre uma tarefa delicada. Mas é certo que esse tipo de défices está muito impregnado no mutismo do nosso país (e não apenas no interior). Esta é uma das facetas que mais suscita o problema e a reflexão de Saldanha Sanches e de António Barreto (às vezes o problema parece uma provocação, mas não nos iludamos com o teor da máscara). Mas há outras facetas. Continuemos.
Diga-se que, em muito do autarcismo mais acaciano - esse liliputiano mundo de funcionários amiúde à procura de um holofote -, só parece existir interesse “pelas minhas coisinhas, pela minha terrinha e pela minha micro-escala”. Foi o arquitecto Graça Dias quem afirmou, há não muito tempo, que “ser-se regionalista pode implicar ser-se reaccionário”. “Tão reaccionário como ser-se racista”. A denegação do outro, regional ou étnica, quando assumida corrosivamente na base do autarcismo acaciano, pode de facto ser terrível e conduzir ao alheamento mútuo das partes que deviam interagir na malha democrática. Não há fumo sem fogo. Esta é, pois, a outra faceta, levada talvez ao limite, por outro autor desestruturador.
É bem possível que Graça Dias e Saldanha Sanches exagerem. Estão no seu papel e esse é democraticamente legítimo, acrescentemos. Talvez António Barreto, mais comedido, se sinta confortável nesta desestruturação do que é pesado e porventura viciante e vicioso, nas últimas três décadas por nós vividas em Portugal.
Seja como for, nas suas variadas facetas, o problema está a pôr-se e não deve merecer, sobretudo por parte das esquerdas (mas não só), aquele tipo de tratamento que é próprio das avestruzes. Fazer de conta que o problema não existe. Iludir-se com a modorra da continuidade. Redimir-se apenas com o espírito comemorativo. Repetir e ritualizar meros jargões convenientes. Conservar e ilidir mundos possíveis. Silenciar a discussão. Banir o diálogo. Esquecer o presente.
O autismo não é uma emoção.