sábado, 3 de abril de 2004

Ameaça e ilusão, dois aliados de estimação



O ocidente está a começar a habituar-se a viver sob ameaça.
Até hoje, a experiência democrática do ocidente foi integrando nas malhas do sistema - e nos espaços maleáveis que o disputam - todo o tipo de contraditório, todo o tipo de intimação, todo o tipo de menor auto-estima colectiva, todo o tipo de crise e de turbulência social. A democracia tem sido um vastíssimo esteio de auto-aprendizagem, sobretudo nas fases mais diversas que se sucederam, nas últimas seis décadas, após a Segunda Grande Guerra Mundial.
O que nunca aconteceu durante esse longo período foi o todo do ocidente - apelidado de mescla de “infiéis” - ter-se tornado periodicamente alvo de mensagens ameaçadoras e primárias de cariz teo-político. Sobretudo quando a retórica quasi-medieval utilizada não é inocente, nem está dissociada da prática de um hiperterrorismo que não olha a meios e a valores, e que só pretende chacinar e alvejar de forma massificada.
Esta cenografia da morte que está a cercar o ocidente já não é um produto da ficção como foi, por exemplo, a imensa saga dos marcianos durante a década de cinquenta do século passado. Esta nova cenografia da morte também já não corresponde, de modo nenhum, àquele discurso concertado e baseado na notificação mútua que alimentou durante quarenta anos a guerra-fria. A actual cenografia mistura o tecnológico, o estratégico, o global e o alheamento a causas nobres (ou a outras) com a violência mais cega, mais brutal, mais sensacional e mediática. Com um pé nas miragens medievais e outro na contemporaneidade, a actual vaga hiperterrorista não tem face, não tem centro, nem dispõe de directórios certos. Funciona numa topografia em rede e atravessa todos os sistemas que a tecnologia ocidental pôs em marcha nos últimos vinte anos.
Para além da hiperviolência irrespondível e visível - caso do 11/09/2001 e do 11/3/2004 -, o hiperterrorismo passou também a jogar com a ameaça quase diária, utilizando as rádios, os jornais ou os vídeos enviados para televisões. O que nestas mensagens se visa já não é apenas a democracia e o ocidente, nem tão-pouco os líderes moderados do Médio-Oriente ou de outras paragens onde se pense de modo menos ortodoxo. O que nestas mensagens se visa é essencialmente a ameaça de aniquilamento. Aniquilar o outro e reduzir a nada a vida do outro e o pensar e o ser do outro (na Palestina há infelizmente, hoje em dia, quem pense deste modo em relação a Israel). A al-Qaeda tem como princípio basilar dizimar o outro. Esquartejar o que designa monossemicamente por “ausência de fé”. Matar e ameaçar matar indiscriminadamente sob o signo do tempo real em que vivemos.
É por isso que a ameaça, sob a forma de palavra, se tornou num dos eventos mais agudos do nosso quotidiano. Curiosamente, a ameaça processa-se com alguma invisibilidade - ainda ontem mais uma chegou à TV pública alemã - sobretudo porque a encaramos como uma simples peça do jogo ficcional televisivo. O problema é que essas mensagens não são simples peças de um jogo telecrático global. Também o são. Mas, em primeiro lugar, são partes de uma ofensiva real e geral que tende a criar desgaste, neurose colectiva, insegurança, medo, apelo à desistência e à imobilidade no ocidente. A estratégia do hiperterrorismo passa também por fazer confundir as dissenções normais no seio da democracia com uma disputa que conduza à mais radical perda de sentido. Este propósito que tende a fragilizar a consistência do sentido democrático não é decerto imune à prática e à retórica terroristas.
É verdade que o ocidente se está a habituar, a pouco e pouco, a viver sob este novo pano de fundo da ameaça. É verdade que o ocidente se está habituar, a pouco e pouco, a compreender que não há diálogo possível com quem se imagina num pelotão de morte a assassinar-nos a todos. Esta ameaça é de tipo novo. Faz lembrar a manipulação de pragas que eram habituais no auto-cumprimento profético a que se recorria nas guerras medievais entre cristãos e o islão. Mas a verdade é que estamos, ou devíamos estar, tão longe disso como das figuras Foz Côa.
Vencer esta ameaça é algo que começa nas nossas casas; é algo que se vence resistindo ao facilitismo e ao virar as costas aos problemas. Imaginar um mundo que não é este em que vivemos não é solução.
O pior inimigo do ocidente não é o hiperterrorismo, mas sim a ilusão de que ele não está aí. Diante de nós. Na nossa consciência, ofuscando o nosso rosto e imobilizando a nossa resistência. Porventura, o diabo sempre terá existido, mesmo quando imaginamos que ele não passa de uma simulação lúdica que se atravessou por capricho no curso fugaz da nossa vida.